segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Detritos


1)
Andrzej Kusniewicz publica Lição de língua morta em 1977, mesmo ano dos Fragmentos de um discurso amoroso, de Barthes, e de Alguien que anda por ahí, de Cortázar. Assim como em seu romance anterior, O rei das duas Sicílias, de 1970, Kusniewicz retorna ao Império Austro-Húngaro e à I Guerra Mundial. Como já escreveu Sergio Pitol sobre esses escritores "nascidos sob a órbita habsbúrgica", "o triestino Italo Svevo, o croata Miroslav Krleza, o polonês Bruno Schulz", que mostram "a decomposição e a precariedade de seu mundo", "um pesadelo atroz crescia atrás das impecáveis fachadas da administração; a rotina convertia o prazer em uma careta muito parecida com a da dor. Onde se escrevia plenitude, se anunciava o vazio. No interior do museu em que corria a vida, reinava a morte".

2) Kusniewicz, em seu romance Lição de língua morta, se ocupa de um mundo que será, de certa forma, a base do mundo de artistas como Joseph Cornell ou Sebald (que se ocupam dos resíduos e detritos de um mundo que não existe mais, já destruído). Durante a I Guerra Mundial, cenário do romance de Kusniewicz, o mundo ainda está sendo destruído, vive o processo de destruição, e seu protagonista acompanha esse processo de uma perspectiva privilegiada:

- não se preocupa com as glórias militares porque sabe que está condenado;
- sabe que, caso sobreviva à guerra, a tuberculose certamente o matará;
- por um acaso feliz nos meandros da burocracia militar, ele trabalha longe do fronte;
- trabalha nos "esquadrões punitivos" que atuam atrás das linhas, caçando sabotadores, resistentes e desertores;

3) Não é só o mundo tal como se conhece que está à beira da destruição no romance; é também a própria guerra, veículo e justificativa da destruição, que se encaminha para seu final, seu esvaziamento - de certa forma, conteúdo e continente se mesclam, cruzam seus registros: o alívio pelo fim da guerra se mescla ao terror diante do fim do mundo tal como se conhece. De certa forma, o romance de Kusniewicz começa exatamente no ponto em que A montanha mágica, de Thomas Mann (romance publicado em 1924), termina: acompanhamos toda a vida de Hans Castorp no sanatório e somos surpreendidos com a guerra e com sua partida para a batalha; em Kusniewicz, por outro lado, vivemos a guerra com o tenente Kiekeritz, e tanto sua tuberculose quanto sua vida prévia são detalhes muito eventualmente evocados. 

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