sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Riso-esquizo


"Aqueles que leem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, é como se não lessem Nietzsche. Isto não é verdadeiro somente em relação a Nietzsche, mas em relação a todos os autores que fazem precisamente este mesmo horizonte de nossa contracultura. O que mostra nossa decadência, nossa degenerescência, é a maneira pela qual experimentamos a necessidade de situar a angústia, a solidão, a culpabilidade, o drama da comunicação, todo o trágico da interioridade.

Mesmo Max Brod conta como os ouvintes eram tomados pelo riso quando Kafka lia O Processo. E Beckett também é difícil de ler sem rir, sem passar de um momento de alegria a outro. O riso, e não o significante. O riso-esquizo ou a alegria revolucionária é o que sobressai dos grandes livros, ao invés de angústias de nosso pequeno narcisismo ou terrores de nossa culpabilidade. Pode-se chamar isso de 'cômico do além-do-humano', ou então 'palhaço de Deus', há sempre uma alegria indescritível que jorra dos grandes livros, mesmo quando eles falam de coisas feias, desesperadoras ou terríveis"

(Gilles Deleuze, "Pensamento nômade", in Nietzsche hoje? (seleção e apresentação de Scarlett Marton), São Paulo, Brasiliense, 1985, p. 63-64)
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"Nossa companheira, a esposa de um oficial da Marinha, tinha fugido de Vladivostok assustada com o cólera, e agora, já um pouco mais tranquila, fazia o caminho de volta. Tinha um caráter invejável. Bastava o motivo mais irrelevante para ela desatar a risada mais sincera e jovial, e ria até rebentar, até chorar; começou a contar alguma coisa, com sua dicção diferente, que velarizava o r e o l, e de repente gargalhou, a alegria jorrava em esguichos e, quando olhei para a dama, comecei a rir também e, depois de mim, Irákli e o japonês rira. 'Puxa!', disse o comandante, rendendo-se afinal, também contagiado pelo riso.

Com certeza, no estreito da Tartária, lugar em geral soturno, nunca antes foram ouvidas tantas gargalhadas. Na manhã do dia seguinte, no convés, o hieromonge, a dama, o japonês e eu nos reunimos para conversar. De novo, as risadas, e pouco faltou para que as baleias, pondo o focinho para fora da água e olhando para nós, começassem a gargalhar"

(Anton Tchékhov, A ilha de Sacalina, trad. Rubens Figueiredo, São Paulo, Todavia, 2018, p. 197)

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