segunda-feira, 5 de outubro de 2020

O aniversário de Döblin


 14 de agosto de 1943

Helli organizou uma festa para comemorar os 65 anos de Döblin. Heinrich Mann dirigiu-lhe uma bela saudação, Kortner, Lorre, Granach leram trechos dos livros dele. Blandine Ebinger cantou chansons berlinenses, Steuermann executou um tema de Eisler ao piano, e no fim Döblin fez um discurso contra o relativismo moral e a favor de padrões fixos de natureza religiosa, e com isso melindrou os sentimentos irreligiosos da maioria dos convidados. Uma sensação incômoda se apossou dos seus ouvintes mais racionais, algo como o indulgente horror experimentado quando um companheiro de prisão sucumbe à tortura e fala.

O fato é que Döblin recebeu alguns golpes duríssimos, a perda de dois filhos na França, uma epopeia de 2.400 páginas que nenhum editor publicará, angina pectoris (a grande curadora de almas) e a vida ao lado de uma mulher incrivelmente tola e vulgar. O declamador Hardt cometeu um lapso revelador. Estava recitando a "Oração de Zoroastro" de Kleist e, em vez de dizer "que eu tenha forças para relevar os erros e as tolices de minha espécie", trocou "espécie" por "esposa" no apelo solene: Döblin e a mulher tinham passado o fim de semana na casa de Hardt. 

Quando Döblin começou a dizer que, a exemplo de muitos outros escritores, também ele era culpado da ascensão dos nazistas ("O senhor não disse, Sr. Thomas Mann, que ele é como um irmão, ainda que um mau irmão?", perguntou à primeira fila) e depois continuou obstinadamente a perguntar por que era assim, por um momento tive a infantil convicção de que ele diria "porque acobertei os crimes da classe dirigente, desencorajei os oprimidos, iludi com canções os famintos" etc, mas tudo que fez foi anunciar com teimosia, sem arrependimento ou pesar, "porque não procurei Deus".

(Bertolt Brecht, Diário de trabalho, volume II, 1941-1947, trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo, Rocco, 2005, p. 194-195)

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