quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Homem em queda, 2


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E há sempre o corpo em DeLillo.
Há, claro, A artista do corpo. E no livro sobre a queda das torres vemos mais um artista, um artista que é também um artista do corpo, justamente aquele que dá título ao livro. O Homem em Queda é um sujeito que, usando um cinto de segurança, se pendura em locais públicos de Nova York. Ele imita os suicidas das torres. Ele pergunta: não é de uma ironia grotesca que tenhamos suicidas dos dois lados? A fé de um lado, o desespero do outro. Agora estão todos misturados nessa minha repetição. O Homem em Queda repete o atentado, sua instância material, seu acontecimento no corpo. A foto do corpo de um dos suicidas, o que restou de seu corpo no asfalto, circulou pela internet nos dias posteriores ao atentado. Eu recebi essa foto por e-mail.
O Homem em Queda de DeLillo, artista do corpo, fere seu próprio corpo na repetição. O uso contínuo de um material rústico e pouco apropriado redunda em dores intensas nas costas. Ele se posiciona no alto de uma passagem do metrô, uma plataforma suspensa, ao ar livre. Ele se atira quando o trem passa ao seu lado, para que os passageiros não vejam o cabo, não vejam a suspensão. Somente a queda, o salto. O baque fica por conta da imaginação.
Keith chega em casa com o rosto ferido por estilhaços. No hospital, a enfermeira lhe diz que são estilhaços orgânicos, pedaços de outras pessoas que entraram em sua carne.
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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Paul Haggis

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Uma mulher está presa. Sua mulher está presa. Condenada por homicídio. Você sabe que é mentira. Elabora um plano e a tira da cadeia. Vocês estão em fuga, na rodovia. Acabaram de deixar o filho para trás. Ele tem seis anos. Era para ele estar em um lugar e não estava. Isso atrasou tudo e foi preciso deixá-lo para trás. Quando a mulher fica sabendo disso, solta o cinto de segurança e abre a porta. Você está dirigindo e só a vê caindo em direção ao asfalto. O carro rodopia enquanto você puxa o seu braço, com força. O carro rodopia, quatro, seis vezes. Vem um caminhão. Ele freia, passa a centímetros da cabeça da mulher. Ela estava com metade do corpo para fora. Essa é a segunda tentativa de suicídio dela. O carro para no acostamento, bruscamente. A mulher está em choque. Você está incrédulo. Silêncio. Ela sai do carro. Senta no chão, com as costas apoiadas no carro. A porta continua aberta. Ele sai do carro. Senta ao seu lado, exatamente na mesma posição. As pernas esticadas para frente. Os dois olham para o nada, atônitos. As mãos estão próximas. As palmas para baixo, apoiando na terra. Um leve movimento no dedo mínimo. O dedo se ergue. Os dedos se tocam. Há uma carícia, tênue. Você levanta, determinado. Não há uma palavra sequer. Nenhum dos dois fala. Levantam, entram no carro, dão a volta e vão buscar o menino.

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Homem em queda

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Todas as palavras que exprimem a inevitabilidade pareciam encher a sala, pensa Lianne, durante um dos encontros do grupo de escrita terapêutica, que reúne pessoas comuns, pessoas da vizinhança. Lianne é a ex-esposa de Keith, que estava no trabalho quando os aviões atingiram as torres. E Keith trabalhava justamente em uma das torres. Ele simplesmente apareceu na porta de casa, coberto de fuligem. Estamos em Homem em queda, de Don DeLillo, e as palavras são sempre materiais, objetos, ferramentas. Uma palavra mais crispada é sempre uma provocação – assim como alguém afirma, lá pelo meio do livro, que as torres, altas, duplas e absurdas, eram provocações, provocações à destruição, feitas para o fim, desde o início.
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Lianne não consegue ver o cachorro da vizinha sem pensar em seu nome: Marko, com K. As crianças, os anjos da história em DeLillo, escutam o nome de Bin Laden nos noticiários e nas conversas dos adultos e o nome que entendem é: Bill Lawton, um nome estranho, o nome de ninguém, um código, uma tentativa de transformar um outro completamente invisível (Bin Laden) em uma ameaça real (Bill Lawton). As pessoas, Don DeLillo entre elas (Don DeLillo no comando de todas elas), procuram preencher as lacunas do real com palavras, palavras que vão sorteando ao acaso, cruzando umas com as outras, testando, experimentando – como se um aglomerado de palavras pudesse não apenas encher uma sala, mas reconstruir uma torre, depois a segunda torre e, em seguida, reconstruir todas as pessoas (os amigos, vizinhos, parceiros de pôquer) que sumiram, reconstruir o corpo daqueles que se lançaram ao chão, alguns de mãos dadas.
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Como fazer com que alguém que não esteve lá saiba como foi estar lá? Talvez só com as palavras.
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Três anos depois da queda das torres, já no fim do livro, o filho de Lianne e Keith está em uma passeata em Nova York, com sua mãe. É um protesto contra a política externa de Bush. O menino recebe um folheto sobre o islã. Algumas frases em árabe estão lá, transliteradas. O menino repete e repete, olha para a mãe, pede para ela tentar. Os dois repetem as frases em árabe, sem saber se estão fazendo certo, pronunciando corretamente, dando as ênfases nos locais apropriados. Eles apenas testam as palavras, como num ritual.
No livro Um antropólogo em Marte, Oliver Sacks inclui um relato chamado “Uma vida de cirurgião”, no qual conta a história de um cirurgião que tem a Síndrome de Tourette. A síndrome se manifesta através de tiques nervosos, mímicas involuntárias, repetição de atos e palavras de outros, repetição compulsiva de xingamentos e obscenidades, movimentos abruptos, como lançar-se ao chão, lançar objetos nas paredes, tendência irreprimível de tocar nos outros. Sacks conta que, na hora das cirurgias, o médico abandonava completamente seus tiques, bastante freqüentes em todas as outras atividades. Ele costumava repetir, sem razão aparente e nas horas mais estapafúrdias, três expressões: Hi, there!, Hi, Patty! e Hideous!. Um de seus filhos, na tentativa de assimilar a Síndrome ao cotidiano e, desta forma, ajudar seu pai, fazia uma coleção de palavras. O touréttico sente atração especial por palavras atípicas, sonoras e pouco utilizadas. Sacks conta que a lista feita pelo filho do médico já havia chegado a mais de duzentas palavras – sendo que 22 delas estavam “em uso”, ou seja, volta e meia surgiam nos rompantes tourétticos do pai. Geralmente são nomes, como: Slavek Hurka, Oginga Odinga, Boris Blank, Floyd Flake, Babaloo Mandel, Morris Gook, Lubor Zink, entre outros, normalmente recolhidos em programas de televisão.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Um autor!

Sabemos que Gombrowicz e Borges não se gostavam. Houve até um jantar na casa de Bioy Casares, que não deu certo. Witold gostava de circular pelos becos e pelos bares da periferia, atrás de garotos e de estímulos – Borges, por outro lado, se guardava para as enciclopédias. Ferdydurke está recheado de menções às nádegas masculinas. Na edição brasileira, pela Companhia das Letras, além de um prefácio de Susan Sontag, há uma nota do tradutor no final. Ele diz que duas palavras são fundamentais para entender o romance de Gombrowicz: geba e pupa, a primeira traduzida por “fuças” e a segunda por “bumbum”.
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No prólogo de O informe de Brodie, que Borges data de 19 de abril de 1970, está escrito: O exercício das letras é misterioso; o que opinamos é efêmero e opto pela tese platônica da Musa e não pela de Poe, que acreditou, ou fingiu acreditar, que a escrita de um poema é uma operação da inteligência. Sempre a benfazeja relativização típica de Borges: Poe poderia estar fingindo, no fim das contas, quando escreveu sua explicação para seu próprio poema – e fingiu simplesmente porque era a coisa certa a fazer com relação àquele texto específico, era o que ele pedia. No primeiro capítulo de Ferdydurke, publicado na Polônia em 1937, Józio, o protagonista, está em sua casa, tentando escrever seu romance imaturo, quando recebe a visita de Pimko: doutor em filosofia e professor, um culto filólogo da Cracóvia, baixinho, miudinho, careca, com óculos, calças listradas, paletó, unhas largas e amareladas e sapatos de couro amarelo.
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Se Józio for Dante, Pimko é seu Virgílio – pois o leva para a escola e para o contato com outros malucos. Mas, ainda na casa de Józio, Pimko vê os rascunhos do romance sobre a mesa e exclama, exultante: Mas o que vejo? – exclamou ao ver os meus rascunhos espalhados sobre a mesa. – Não só um sobrinho, mas também um autor! Vejo que estamos tentando nossa sorte com as Musas, não é verdade? Ta, ta, ta, um autor! Já vou examinar tudo e encorajá-lo...
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Toda empáfia e certeza de um especialista, íntimo das “Musas”, este é Pimko, o amarelado (velho, passado, envelhecido, excessivamente maduro – todos os elementos contra os quais está Ferdydurke). O professor está lá para dar a palavra final: “Já vou examinar tudo e encoraja-lo...”. Burocrata da criação, agente da homogeneização – é claro que seu “encorajar” serve apenas para controlar os arroubos imaturos de Józio. E, com algumas décadas de antecipação, temos Gombrowicz fazendo pouco do autor e de seus salamaleques: “Ta, ta, ta um autor!”.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A Rússia e o demônio

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Mikhail Bulgakov era médico, e serviu no exército como médico, antes da Revolução de 1917. Outros que serviram em combate como médicos: Nietzsche, Louis Aragon, André Breton, Tchekhov. Ao longo da década de 1920 e 1930, Bulgakov enfrentou muitos problemas para publicar seus textos e arranjar emprego. Em 1929, Bulgakov pediu ajuda a Górki na tentativa de obter autorização para viajar ao exterior em busca de trabalho. “Tudo me foi proibido”, escreveu Bulgakov. “Estou na miséria, acossado, em completa solidão”. No ano seguinte, Bulgakov escreveu uma longa carta a Stálin, solicitando um emprego, pedindo clemência, desculpando-se por existir, por escrever as coisas que escrevia, por não ser suficiente ao regime, à nação. Bulgakov, como a grande maioria dos escritores russos da época, nutria sentimentos ambíguos com relação a Stálin – o grande líder, o restaurador da nação, era também fonte de medo e insegurança (por vezes de terror). O sentimento do dever e a exaltação do auto-sacrifício se misturam ao instinto de sobrevivência, à autocomiseração, ao desamparo. Um dia, o telefone tocou. Disseram a Bulgakov que Stálin queria lhe falar. Ele desligou, pensando que era um trote (um trótski). Ligaram novamente, Bulgakov acreditou e, como num sonho, conversou com o Chefe. Seu emprego no Teatro estava garantido, a carta surtira efeito. Ao fim de oito anos nesse cargo, contudo, quase vinte trabalhos de Bulgakov – principalmente peças – foram recusados. Ele demorou a perceber que o cargo servia como mordaça e coleira, e não como um voto de confiança. Chegou a escrever uma peça sobre a vida de Stálin, colocando o grande líder como personagem, no centro do palco, representando sua ascensão vitoriosa, suas origens. Toda a trupe preparada, figurinos e cenários nos ajustes finais, o autor animado com a tão aguardada volta por cima e, de repente, eis que chega a notícia: Stálin havia vetado o projeto. Considerou um absurdo a representação de sua figura de forma tão heróica. Bulgakov, depois disso, adoeceu. Adoeceu dos nervos, adoeceu do corpo. Gastou suas últimas energias revisando O mestre e Margarida, ditando mudanças e ajustes para sua esposa. Mesmo sabendo que não teria (tão cedo) chances de publicação, Bulgakov, mesmo morrendo, seguiu com sua história da tomada da Rússia pelo demônio.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Outros filhos

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Muitos filhos tiveram papel fundamental na carreira literária de seus pais e mães. Uma história literária alternativa poderia surgir do acompanhamento dessas vidas: o filho de Macedonio, Adolfo de Obieta; o filho de Susan Sontag, David Rieff; a filha de Isaac Bábel, Nathalie Bábel; Dmitri, o filho de Nabokov; a filha psicótica de Joyce (que nunca mencionam o nome: Lucia, Lucia Joyce). Coetzee perdeu um filho adulto, num acidente de carro. Os filhos especiais de Kenzaburo Oe e Cristóvão Tezza. Duchamp só soube que tinha uma filha quando ela já era grande, em um encontro totalmente por acaso na escada de um metrô.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Bellow e o filho

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Saul Bellow conta, em um texto sobre seus anos em Paris, um dos encontros que teve com Arthur Koestler pelas ruas da cidade. Bellow estava com seu filho pequeno, Koestler estava sozinho. Bellow conta que a surpresa de Koestler foi dupla: 1) ele tinha um filho (e pequeno, ainda por cima - algo em torno de 4, 5 anos); 2) ele havia levado o filho para morar com ele em Paris. Bellow afirma que, para Koestler, poucas coisas poderiam ser mais estranhas que um filho - especialmente um filho em Paris, em uma viagem que se pretendia literária, cultural. Bellow não leva a surpresa de Koestler muito a sério. Ou ainda: com o passar dos anos, distante de Paris e distante daquele encontro, escrevendo sobre o acontecimento, tenha decidido não levar muito a sério a mensagem de Koestler: sinto muito, amigo, mas você não vai conseguir aproveitar Paris com esse pestinha a tiracolo. Bellow estava escrevendo Henderson, o rei da chuva, que é dedicado a seu filho.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Prazer do fato, prazer do texto


Dizem que o crítico é aquele que não perde o gosto pela literatura, que não perde de vista o jogo com a literatura, ou seja, a dança da montagem e da combinação (a esquiva, o risco de morte da tauromaquia). Aquele que registra sua biografia nos textos que lê. Aquele que procura o texto onde ele não está, ou está pela metade, tropeçando. É um movimento um pouco esquizofrênico, delirante (que sai da lira, sai do sulco, do trilho, da trilha), porque está sempre além do texto, buscando dados, detalhes, elementos (fatos), ao mesmo tempo em que se cola a ele, ao texto, investigando suas comissuras, na esperança da grande descoberta (como a batata no bolso de Leopold Bloom, que Ricardo Piglia faz questão de ler, faz questão de fincar sua bandeira (em O último leitor - que é o crítico, afinal de contas)). Encanta o crítico a descoberta da situação específica na qual Kafka escreveu determinado texto, durante alguma temporada no sanatório, ou no auge de algum romance epistolar (um amor de ficção, como era de seu feitio). Ou saber o ano em que Bolaño trabalhou como vigia noturno num camping (ou como vendedor de bijuterias) e que texto surgiu então, ou qual texto transmite o fato (e se viveu aquilo para ter o que escrever, ou se escreveu para viver novamente). Ou saber do texto que Faulkner escreveu em vinte e poucos dias, trabalhando também como vigia noturno (ou a noite em claro de Fernando Pessoa, escrevendo poemas em pé, usando o tampo de uma cômoda). E imagino que encante o crítico também as repetições vocabulares de Thomas Bernhard e seu estilo entrópico, estafante - ou aquilo que Benjamin chamou de "estilo asmático" de Proust, ou seja, o momento em que o texto captura o corpo e emula suas ondulações (como em Palahniuk, Javier Marías ou Raduan Nassar, para citar exemplos distantes entre si mas próximos quando se trata de "somatizar" a escritura). Que memória é essa, que não se decide entre fato e texto? Não se decide porque não pode, porque é impossível. Essa memória não é minha, mas é feita por mim, costurada por mim.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

1984

Nos derradeiros meses do século XX, dei um jeito de obter um visto para entrar na Coreia do Norte. Designada por muitos como "o último Estado stalinista do mundo", a Coreia do Norte pode também facilmente ser apontada como o protótipo mundial do Estado stalinista. Fundada sob a proteção de Stálin e Mao e tornada ainda mais hermética e isolada por uma península repartida que, por assim dizer, "trancou-a em si mesma", no final do ano 2000 a República Democrática Popular da Coreia ainda ostentava as características enumeradas a seguir. Em cada edifício público uma gigantesca figura do "Grande Líder" Kim Il Sung, o defunto que ainda detém o cargo de presidente num governo que, por isso, pode ser chamado de necrocracia ou mausolocracia. Crianças marcham em formação para a escola, entoando canções em louvor do mencionado Líder. Fotografias do Líder exibidas obrigatoriamente em todas as casas. Um broche de lapela com as feições do Líder, de uso obrigatório para todos os cidadãos. Alto-falantes e rádios transmitindo continuamente propaganda do Líder e do Partido. Uma sociedade interminavelmente mobilizada para a guerra, com propaganda histérica e intensamente chauvinista e xenofóbica. Proibição total de notícias do exterior e de contato com outros países. Insistência absoluta, em todos os livros e em todas as publicações, sobre uma visão unânime de um passado miserável, um presente laborioso e um futuro radiante. Clima generalizado de escassez e fome, mitigadas apenas por alimentos abomináveis e em quantidades limitadas. Arquitetura suntuosa e opressiva. Contínua ênfase em esportes e exercícios em massa. Total repressão a tudo que se relacione a libido. Jornais sem notícias, lojas sem mercadorias e aeroporto quase sem aviões. Uma vasta rede de túneis no subsolo da capital, ligando diferentes bunkers do partido, da polícia e das Forças Armadas. Obviamente só havia uma palavra para designar tudo isso, e ela era empregada por todos os jornalistas, todos os diplomatas e todos os visitantes estrangeiros. Foi a única vez na minha vida de escritor em que me cansei do termo "orwelliano". Em alguns aspectos, o pesadelo norte-coreano fica aquém da distopia de Orwell. Em alguns aspectos, porém, é infinitamente mais proibitivo.

Christopher Hitchens. A vitória de Orwell, p. 79-80
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Esse livro de Hitchens, lançado esse ano pela Companhia das Letras, é excelente. Sempre limitei Orwell a um número específico de livros e a uma atuação política bem restrita. Mas o caso é que estava enganado por ignorância, e o livro de Hitchens, além de brilhantemente escrito, é informativo e, principalmente, combativo. Ele não esconde sua admiração por Orwell e toma posição numa batalha que engloba várias frentes - da literatura à política, da esquerda à direita, da Europa aos Estados Unidos, não há recanto que Orwell tenha deixado em paz. O interessante é que Hitchens manobra tanto a minúcia do texto quanto a reconstrução histórica. Ou seja, faz uma releitura criteriosa de Orwell (ao mesmo tempo em que faz a leitura também das leituras, aqueles que comentaram Orwell sob as mais variadas reivindicações) e situa seus textos dentro de contingências muito específicas, que misturam a vida pessoal de Orwell com a história política do Ocidente (principalmente em seu contato com o Oriente).

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A arca de Nabokov

Nabokov e Saul Bellow publicaram textos na Partisan Review na mesma época, principalmente entre 1948 e 1951. A PR estava sediada em Nova York e juntava uma miscelânea de intelectuais antistalinistas e profundamente interessados no modernismo literário. George Orwell também colaborou com a revista durante a mesma época (seus dois últimos anos de vida). Nabokov publicou versões iniciais do que seriam capítulos de sua autobiografia, Speak, memory (A pessoa em questão, na tradução brasileira da Companhia das Letras). Nabokov, assim como o Bellow de anteontem, também menciona uma arca. Ele não diz se a arca atravessou o oceano, como aconteceu no caso de Bellow, mas é certo que os objetos guardados ali dentro estão no exílio. Nossa edição conta com um caderno interno de fotos, e uma das últimas, tirada em fevereiro de 1929, mostra Nabokov escrevendo. Ele conta que sua mulher tirou a foto sem que ele percebesse. Nabokov estava escrevendo A defesa Lujin, em um quarto de hotel na França. "Um maço meio vazio de Gauloises pode ser percebido entre o vidro de tinta e um cinzeiro abarrotado", ele escreve na generosa descrição e contextualização que faz para a foto. Nabokov chama a atenção, também, para o quadriculado da toalha sobre a mesa, para as fotos de família, para os quatro volumes de um dicionário crítico do russo. E então ele fala de seu "porta-penas", robusto e marrom, cuja ponta "já foi bastante mastigada". Esse porta-penas, "amado instrumento de madeira de carvalho", foi usado por Nabokov para escrever tudo que escreveu durante seus vinte anos de perambulação europeia - os primeiros contos e poemas, escritos em russo, publicados em jornais de exilados (em Berlim, em Paris), Machenka, O riso no escuro, etc. O porta-penas de Nabokov, esse companheiro fiel (ainda que tantas vezes mordido), sumiu na mudança para os Estados Unidos. Mas Nabokov finaliza a legenda imaginando o reencontro: "um dia ainda hei de redescobrir numa das arcas armazenadas num guarda-móveis de Ithaca, estado de Nova York".

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

1973

Em 1973 encerra-se uma onda modernista. Morrem Tarsila do Amaral e Maria Martins, mas também Pablo Neruda e Pablo Picasso, W. H. Auden e Carlo Emilio Gadda; Hans Kelsen, Jacques Maritain e Leo Strauss; o antropólogo Evans-Pritchard, o escultor Jacques Lipschitz e o situacionista Asger Jorn. Daniel Bell publica The Coming of Post-Industrial Society e Stephen Hawking, The Large-Scale Structure of Space-Time. Lillian Hellman lança sua autobiografia, Pentimento, e Thomas Pynchon, seu romance Gravity's Rainbow. No Rio de Janeiro, Michel Foucault leciona o curso sobre A verdade e as formas jurídicas. Hélio Pellegrino entrevista-o no Jornal do Brasil: “Em torno de Édipo” e, no Jornal de Minas, registra-se sua palestra em Belo Horizonte, “Foucault, o filósofo está falando. Pense”. Nesse mesmo ano, Anselm Kiefer realiza Father, Son, Holy Ghost, o artista Philip Guston, nascido Goldstein, de raízes igualmente ucranianas, como Lispector, volta a certa figuração pop em Painting, Smoking, Eating, e Robert Rauschenberg, inspirado em São Francisco de Assis, propõe a instalação Sor Aqua, placas de metal refletindo-se, suspensas, numa banheira com água. Em 1971, Clarice Lispector concluíra um manuscrito intitulado Objeto gritante, que, revisado e reduzido, seria publicado, em 73, com novo título, Água viva, onde buscaria fixar o in-existente, deter o fluxo do tempo, congelar o que foi feito pra fluir, estendendo assim, infinitamente, o presente, o instante-já.

Direto do programa da disciplina do professor Raul Antelo, para o próximo semestre.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

A arca russa de Saul Bellow


Saul Bellow nasceu em 1915, numa cidade chamada Lachine, no Canadá. Seus pais haviam emigrado de São Petersburgo para Montreal em 1913. Bellow conta que, na mesa de jantar, o czar, a guerra, Lênin, Trotski e os bolcheviques eram mencionados com a mesma constância que os parentes deixados para trás. A família de Saul Bellow compartilhava com a família de Vladimir Nabokov a incredulidade com a queda da monarquia russa, em 1917. Em suas memórias, Nabokov escreveu que “o bolchevismo não passava de uma forma especialmente brutal e implacável da opressão bárbara – tão antiga quanto as areias do deserto – e não era nem de longe a atraente e inédita experiência revolucionária com que tantos observadores estrangeiros o confundiram”. Não sei se alguma vez se encontraram. Quando Bellow foi para a Europa, em 1947, Nabokov já estava há 7 anos nos Estados Unidos. Bellow diz que, em Montreal, os velhos achavam que os arrogantes bolcheviques logo seriam expulsos – mas os filhos estavam ávidos para se juntar à revolução. Lyova, o filho do professor de hebraico, partiu para a Rússia, ignorando as recomendações e reprimendas dos mais velhos. Nunca mais voltou. Muitos anos mais tarde, já em Chicago, na década de 1930, Saul Bellow lia Marx e Lênin com devoção e escutava as advertências de seu pai: “Não esqueça do que aconteceu com Lyova; e não só com ele, pois há anos não tenho notícias de suas tias”. Bellow relembra tudo isso em um texto de 1993 – muito distante, portanto, da infância, dos pais, dos bolcheviques e do Nobel que recebeu em 1976 (razoavelmente próximo da morte, que chegaria doze anos depois) –, publicado na revista The National Interest. Ele escreve que, mesmo diante da resistência do pai, considerava-o russo, “com agradáveis feições russas”, tanto ele quanto sua mãe. Saíram de São Petersburgo com uma arca repleta de apetrechos e ornamentos: “brocados, cartola, casaca, lençóis de linho com bordas plissadas, anáguas pretas de tafetá, penas de avestruz, botinas com botões e cano alto, fotografias, talheres de prata, velhas canetas com seus aparadores”. Bellow afirma que a única utilidade dos objetos era servir de brinquedo para as crianças – o baú era um pouco da Rússia em Chicago, e para o pequeno Saul os objetos eram mágicos, passagens que ligavam tempos e espaços.

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Walter Benjamin, no ensaio “Brinquedo e brincadeira. Observações sobre uma obra monumental”, escreve o seguinte: Um poeta contemporâneo disse que para cada homem existe uma imagem que faz o mundo inteiro desaparecer; para quantas pessoas essa imagem não surge de uma velha caixa de brinquedos?

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Coleção de areia

Estamos diante do último livro de Italo Calvino, Coleção de areia, publicado em 1984, um ano antes de sua morte. É uma coletânea de textos esparsos, dos mais variados tamanhos e sobre os mais variados assuntos: relatos de viagens e exposições, textos sobre literatura e linguagem, sobre autores específicos, sobre Idade Média e descobrimentos, coleções, máquinas, natureza e cultura. A edição da Companhia das Letras, que saiu em julho de 2010, acrescenta uma "Apresentação" que provavelmente apareceu nas reedições, depois da morte de Calvino, portanto. Trata-se de uma breve apresentação, escrita por Calvino, mas incluída sem assinatura na quarta capa da primeira edição. Um parágrafo curto, no qual Calvino escreve sobre sua obra (e sobre ele mesmo, na terceira pessoa) e revela, de forma muito sutil, um pouco de sua postura intelectual, uma mistura de leitor e escritor, arquivista e curioso. A primeira frase localiza no espaço seus últimos anos de produção: "De Paris, Italo Calvino envia de vez em quando ao jornal em que colabora um artigo sobre alguma exposição insólita" - o que remete a outra coletânea de esparsos publicada recentemente, Eremita em Paris. Ele envia "de vez em quando", quando encontra algo "insólito", quando capta alguma oscilação digna de nota no cenário intelectual. O que ele busca, contudo, é a possibilidade de "contar uma história por meio de um desfile de objetos", desde mapas e tabuletas até manequins e gravuras populares. Para Calvino (e também para Agamben, Vila-Matas, Duchamp e Walter Benjamin), a miniaturização é a cifra da história, e os objetos negligenciados dão acesso a esse enigma (por isso, teria sido excelente se a edição contasse com fotografias, fazendo das andanças de Calvino um par possível para as andanças de Sebald (e também de Canetti ou Claudio Magris, todos também carentes de iconografia)). Calvino fala que nos textos de Coleção de areia emergem "alguns traços da fisionomia do escritor", ou seja, ele está prestes a nos brindar com um autorretrato que, no gesto inicial de sua realização, omitia o próprio objeto. Ele traça sua fisionomia: "onívora curiosidade enciclopédica", "discreto afastamento de qualquer especialismo", "prazer de confiar as opiniões às entrelinhas", "meticulosidade obsessiva" e "contemplação desapaixonada da verdade do mundo". Uma política do pudor, exatamente como aquela que Benjamin via em Robert Walser. O percurso intelectual que, de repente, revela os traços do rosto de seu criador, como em Borges. Calvino diz que Coleção de areia é um inventário de "coisas vistas" - uma reflexão sobre o visível e sobre o próprio ato de ver, "incluído o ver da imaginação". Os traços da fisionomia do escritor também são encontrados no ponto mais distante de casa, e por isso Calvino termina a nota mencionando suas notas de viagens ao Irã, México e Japão.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Para trás e para adiante


Um parágrafo chama a atenção no prefácio que acompanha as novas edições das obras completas de Freud, que estão saindo pela Companhia das Letras. O tradutor Paulo César de Souza escreve que a ordem de publicação dos volumes brasileiros não é a mesma das primeiras edições alemãs, "pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois". O parágrafo termina informando que a decisão editorial foi de começar por um período intermediário e, a partir daí, "proceder para trás e para adiante". Esse movimento já é, por si só, interessante. Ao mesmo tempo em que confere uma dinâmica à obra densa e vasta de Freud, contribui para uma dessacralização, uma ventilação dessa mesma obra. O tradutor também diz que esse período intermediário, "em torno de 1915", é um período de pleno desenvolvimento das concepções de Freud - e engloba textos como "Totem e tabu", "Além do princípio do prazer" e o famoso "O estranho" (que agora se chama "O inquietante" - entrando para uma galeria de traduções que contém "Lo siniestro" e "Lo ominoso" para o espanhol, "Il perturbante" para o italiano, "L'inquiétante étrangeté" para o francês e "The uncanny" para o inglês). Essa falta contra a cronologia da edição brasileira é, portanto, um gesto consciente de apropriação crítica da obra freudiana. Dá ênfase a um período específico da produção e, dessa forma, sugere um percurso de leitura e um reposicionamento de Freud na contemporaneidade. O resultado disso é o privilégio dado a alguns textos já disponíveis, como "O mal-estar na civilização" e "Além do princípio do prazer". Não deixa de ser curiosa a preocupação com uma possível leitura de "várias coisas relevantes" ser deixada "para muito depois", principalmente se lembrarmos os quase cem anos que nos separam de alguns desses trabalhos. Mas a justificativa parece ser justamente essa: temos Freud, agora, em fragmentos não-cronológicos exatamente porque, passados cem anos, vemos legibilidades mais relevantes em momentos específicos desse trajeto. Esse posicionamento dá ainda mais força às edições, que são, de resto, impecáveis (e essa posição é progressivamente reafirmada nas criteriosas notas de tradução que aparecem nos volumes).

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Simulações romanescas


No seminário Como viver junto, Roland Barthes analisa os locais de convivência e as comunidades em diferentes momentos da história literária. No caso de A montanha mágica, por exemplo, de Thomas Mann, Barthes põe de lado a história de amor para se dedicar à dinâmica da sociabilidade do sanatório - a forma como a doença se dissemina em uma variedade de signos de troca e de acesso, a recepção de novos doentes, os desligamentos, as mortes. E o mesmo se dá nas prisões, nos monastérios, nos internatos, nas oficinas literárias. Toda literatura ocidental pode ser solicitada a partir da ferramenta do Viver-Junto.
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Barthes apresenta seu curso como "simulações romanescas de alguns espaços cotidianos" - retirando o foco da representação, por exemplo, e transferindo para a simulação, afirmando, mais uma vez, o atravessamento entre literatura e vida, morte e literatura, literatura e doença (uma vez que fala do "romanesco" e do "cotidiano" e das múltiplas intersecções entre as duas esferas).
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O curso de Barthes, proferido em 1977 no Collège de France, é uma experimentação oral, uma festa do dispêndio e do gasto. Não foi pensado para ser livro - por isso o livro que temos hoje é póstumo, descolado do tempo, fragmentado e cifrado, um amontoado enigmático de notas e comentários filológicos (que serviam apenas como baliza para a experimentação oral levada a cabo por Barthes no acontecimento de seu seminário). Como aconteceu com Saussure, Kojève, Sócrates e Bobi Bazlen, o registro ficou por conta de estranhos.
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Barthes, além de inventariar e analisar "simulações romanescas", também simula um romance em seu seminário, um romance sem narrativa, no sentido de Paul Valéry ao dizer que O discurso do método, de Descartes, foi o primeiro romance moderno, ou seja, um romanesco à margem do romance, um romanesco que funda o gênero a partir da estranheza. O sistema de suas notas, organizado em ordem alfabética mas atravessado pela quase-ilegibilidade do conteúdo delas, reproduz uma "maquete" do romanesco, uma cartografia crua do vir-a-ser do romance. Esse significante vazio é preenchido (com tempo e história) a partir da apropriação dos personagens alheios, que Barthes vai posicionando ao longo da exposição: Robinson Crusoe, Hans Castorp, Charlus, os apóstolos. É o Viver-Junto das figuras irreconciliáveis que potencializa as temporalidades no interior da maquete - e essa cacofonia é o material tanto da crítica quanto da ficção.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

México


1) Néstor García Canclini, no livro Consumidores e cidadãos, dedica um capítulo ao México, especialmente ao D.F., a Cidade do México. Fala dos jovens e das perambulações daqueles que vivem na periferia pelo centro da cidade. Fala da cidade como Babel, como polifonia caótica de vozes, espaço desmembrado - o desenvolvimento desenfreado borrou as fronteiras da metrópole.
2) Quando Canclini fala das pesquisas que fez, com sua equipe, sobre os hábitos culturais na cidade, lembro de Os detetives selvagens: a cidade como labirinto, como cartografia cifrada, como tabuleiro, no qual jovens poetas jogavam com a literatura, a vida e a aceitação. Canclini fala que, segundo os informantes, a cidade é hostil. Preferem ficar em casa, vendo televisão, do que se deslocar para usufruir das instalações públicas (cinemas, teatros, livrarias, salões de dança, museus), porque sentem que estão de fora, que estão distantes e que nada daquilo lhes diz respeito.
3) A perambulação em Detetives, aparentemente banal, é, na realidade, a emergência de um ruído social, uma insistência, uma penetração forçada nos espaços obsoletos da cidade. Mais do que vagabundagem, os jovens escritores latino-americanos de Detetives levam para o espaço geográfico o traçado poético que marca seus cadernos. Essa é a construção em camadas que Bolaño utiliza em seu romance: a dinâmica da cidade, que exclui e absorve em igual medida, transforma-se em produto da escritura, que sustenta e movimenta o corpo desses literatos anônimos.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Uma palavra

- Venha comer - chamou Nélida.
Sobre a mesa havia uma travessa de ravióli.
- Que fome - ele exclamou.
- Não sei se você gosta.
Vidal a tranquilizou: o ravióli evocava imagens de épocas felizes, dos domingos, quando era criança, e de sua mãe.
- Acredite - disse com efusiva sinceridade. - Este é melhor do que os que eu me lembro. Pensei que ninguém fosse superá-los.
Beberam vinho tinto; comeram bife à milanesa e batatas. Quando chegou o arroz-doce, Nélida disse:
- Se você não gosta, me desculpe. Ainda não conheço seus gostos.
Abraçou-a por ela ter dito ainda. Agradeceu a palavra, como a promessa de um longo futuro para os dois. Depois se calou; perguntou-se o que poderia acrescentar, do que poderia falar para não aborrecê-la. Bebeu outro copo de vinho e, quando Nélida se levantou para preparar o café, começou de novo a beijá-la.
Adolfo Bioy Casares. Diário da guerra do porco. p. 147.

A história e as máquinas

Vilém Flusser, no livro A escrita (publicado em 1987), comenta que a inteligência artificial disporá de uma consciência histórica que superará de longe a nossa. Ela fará uma história melhor, mais rápida e variada. A dinâmica da história, escreve Flusser, se intensificará em direção ao inimaginável: cada vez mais coisas acontecerão, os acontecimentos se precipitarão e serão mais diversificados. Poderemos deixar a história por conta das máquinas automáticas e tomar conta de outras coisas, escreve Flusser. As máquinas escrevem mais rápido que seres humanos.

O corpo humano está sob questionamento, atravessado por possibilidades cada vez mais possíveis de suplementação. O corpo humano é alterado, tornado impuro: para as navegações sociais e comunitárias, temos as próteses de silicone, as lipoesculturas, os enxertos, as aplicações subcutâneas; para a sobrevivência (ou a sobrevida), temos órgãos artificiais, membros remotos, manipulação genética e as múltiplas possibilidades de entrelaçamento entre as fibras musculares e os componentes feitos de silício.

Diante disso, parece não haver muito mais espaço para um “nós” isolado, separado, do tipo: as máquinas farão isso, nós faremos aquilo. Eu adoraria um chip cerebral que me livrasse da miopia, por exemplo. A distância entre desejo e ato ficará cada vez menor, justamente porque estarão integradas a velocidade de execução da máquina e a oscilação de interesses do humano. Que história é essa que Flusser afirma ser melhor e mais rápida nas “mãos” das máquinas? A história como encadeamento de fatos, simultaneidades (essa “dinâmica da história”, essas “coisas que acontecem”?)? Ou a história como escrita da história, como resgate e ordenação, resgate e montagem? Essa segunda acepção é o campo da ficção.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Teatro

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Teatro, de Bernardo Carvalho, é construído sobre um paradoxo: sua coesão interna ataca frontalmente a desordem presente na ação, no estilo e nos personagens. O texto é formado por duas partes que são contrárias, e essa dissonância não almeja uma resolução, muito pelo contrário, ela deseja permanecer incomodando. Bernardo Carvalho, a despeito de ser um escritor extremamente técnico, constrói uma narrativa que faz uma glosa incompleta de corpos incompletos. Sexualidade, linguagem, corporalidade: tudo está pela metade, ao mesmo tempo que está em excesso. Se fosse para dizer como Bataille (que está lá, junto com Sade), eu diria que há em Teatro uma negatividade sem emprego, que oscila na indeterminação do desejo dos personagens e na irresolução das derivas dramáticas (o nome dele era Ana C., começa uma das partes). Teatro pode ser lido ao lado de Copi, Genet (não o Genet de Sartre, mas o Genet reapropriado por Susan Sontag quando fala sobre o pornográfico), e toda a movimentação perversa de Carlos Wieder, principalmente no assassinato da equipe de filmagem, durante a realização do filme pornô (Estrela distante, de Bolaño). O personagem principal de Teatro, ao mesmo tempo que ocupa diferentes orifícios ao mesmo tempo, ocupa distintos corpos e distintas formas de subjetividade, que se articulam a partir de seu olhar para o mundo, que é constante, insone (como a objetiva de uma câmera).
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sábado, 13 de novembro de 2010

Dia de Sontag

Estou escrevendo num pequeno quarto em Paris, sentada numa cadeira de vime diante da máquina de escrever e perto de uma janela que dá para o jardim; atrás de mim há uma cama e uma mesa de cabeceira; no chão e debaixo da mesa, manuscritos, cadernos e dois ou três livros. Que eu esteja vivendo e trabalhando por mais de um ano num quarto tão simples e pequeno, apesar de a princípio não o ter planejado ou sequer cogitado, sem dúvida responde a alguma necessidade de despojamento, de fechar as portas por uns tempos, começar de novo com o mínimo possível. Nesta Paris em que vivo agora, a América é o mais próximo de todos os lugares longínquos. Mas nesses períodos nos quais eu praticamente não saio - e nos últimos meses tem havido muitos dias e noites abençoados em que não tenho vontade de deixar a máquina de escrever, a não ser para dormir -, cada manhã alguém me traz o Herald Tribune de Paris, com sua monstruosa colagem de "notícias" da América, comprimidas, distorcidas, mais estranhas do que nunca, vistas desta distância.

(Susan Sontag, 1972 - "Sobre Paul Goodman", Sob o signo de Saturno)
Minha mãe era um desses escritores que trabalhava com um olho imaginativamente voltado para a posteridade. Eu devia acrescentar que, em razão de seu medo imoderado da extinção - em nenhuma parte dela, mesmo nos derradeiros dias de agonia, houve a menor ambivalência, a menor aceitação -, tal pensamento não só não representava um consolo escasso como não representava consolo nenhum. Ela não queria partir. Não tenho a pretensão de saber tudo que ela sentiu enquanto morria, deitada durante três meses em dois leitos sucessivos, em dois quartos de hospital, enquanto seu corpo se tornava uma imensa ferida, mas pelo menos isso eu posso afirmar com segurança. Ela se interessava por tudo. De fato, se eu tivesse de escolher uma única palavra para evocá-la, seria avidez. Ela queria experimentar tudo, provar tudo, ir a toda parte, fazer tudo. Seu apartamento, que era uma espécie de reificação do que a sua cabeça continha, estava entupido, à beira da explosão, por uma coleção, espantosamente disparatada, de objetos, impressos, fotos e, é claro, livros, livros intermináveis.
(David Rieff, 2007 - "Introdução", Ao mesmo tempo, de Susan Sontag)
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Todo o texto de Rieff, o filho de Susan Sontag, é interessante e tocante. Todo o texto de Sontag sobre Goodman é interessante e tocante, este é apenas o primeiro parágrafo (e está incompleto). Goodman é o único escritor norte-americano que ela afirma ter lido com prazer tudo que havia escrito. Eu sinto o mesmo com Sontag, embora ainda não tenha encostado nos diários. Os ensaios de Ao mesmo tempo, lançado pela Companhia das Letras em 2008, são excelentes - e excelentes de uma forma honesta, direta, franca, agradecida, semelhantes àquele que Sebald escreveu sobre Walser na Serrote. Aliás, seria bacana uma reedição de Sob o signo de Saturno por parte da Companhia das Letras: a edição antiga da L&PM já deu o que tinha que dar; está cheia de erros tipográficos e a tradução às vezes parece um pouco manca. Rieff, em sua introdução, comenta bastante um texto de Sontag sobre Canetti, um texto antigo, que está justamente em Saturno - que conta ainda com um texto excelente sobre Benjamin (e um gigantesco sobre Artaud).

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Esquizofrenia do gênero

Fui levado a pensar nesses atravessamentos jornalísticos que aparecem em alguns livros, essa movimentação jocosa entre o factual e o ficcional, essa pretensão de dividir de forma estanque a realidade e a ficção – uma pretensão que, penso eu, é tratada de forma irônica nos dois exemplos que levantei.

Pense, por exemplo, no início de Sobre heróis e tumbas, de Ernesto Sabato. Está ali a transcrição de uma notícia de jornal, que dá a informação do suicídio misterioso de Alejandra Vidal Olmos. Temos a data, o nome do jornal, e esse posicionamento marcado no início da narrativa. Esse despiste, essa cortina de fumaça, que pretende explicar o livro de antemão, justificá-lo em sua legitimidade automática (isso é verdade, está aqui), é a sombra antitética no desenvolvimento do romance. Todas as idas e vindas de Alejandra e do bobalhão que por ela se apaixona são confrontadas com essa partícula concisa de certeza que abre o livro. Porque em todo o resto de Sobre heróis e tumbas não há certezas e não há concisão.

Ian McEwan está nessa também, e mais de uma vez. Solar termina com o pronunciamento da academia sueca quando concedeu o Nobel a Michael Beard. Ao contrário de Sabato, que coloca a sombra performática da linguagem técnica do início do romance, como um bicho nos calcanhares, McEwan prefere colocar no final, como uma espécie de esquizofrenia do gênero – eu sou levado a questionar se esse autor realmente acha que vou acreditar que, depois de 300 páginas da mais burilada ficção, tudo pode ser questionado com 3 ou 4 páginas de alheamento teórico ou referencial (sim, tudo pode ser questionado). O procedimento está também em Amor para sempre, com os artigos acadêmicos sobre a erotomania (síndrome de Clérambault). Um pouco em Reparação, mas bem pouco, porque Brione não chega a mudar radicalmente o registro, o tom. É possível questionar, também, até que ponto as menções bibliográficas, que McEwan faz sempre questão de colocar nos agradecimentos finais, acabam entrando nesse jogo de suplementaridade ficcional (um modelo radical seria a parte bibliográfica de La literatura nazi en América, de Bolaño).

Educação pela pedra

Um laudo divulgado em Santa Catarina pelo Instituto Geral de Perícias concluiu que um bebê de dez meses que foi internado no início do mês no Hospital Infantil de Joinville se engasgou com uma pedra de crack. A criança, segundo conclusão da polícia, teria pego a pedra acidentalmente, quando os pais se distraíram. Segundo uma testemunha do caso, várias pessoas usaram a droga quando o bebê se engasgou. O caso aconteceu na cidade de Araquari. A criança já deixou a UTI e está fora de perigo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O rastreador, o detetive

Uma genealogia do detetive latino-americano poderia começar (ou incluir) pela figura do gaúcho rastreador. Domingo Sarmiento, no Facundo, afirma que há um “poder microscópico” que se desenvolve na visão desses homens, uma capacidade sobrenatural de percepção que faz do gaúcho rastreador uma figura muito peculiar. O rastreador é um personagem grave, circunspecto. A consciência do saber que ele possui lhe dá certa dignidade reservada e misteriosa, inspirando respeito nos gaúchos não-especializados (digamos assim – caberia, mais adiante, quem sabe um dia, uma taxonomia da gauchesca, que incluiria o rastreador, o baqueano, o domador, o músico, etc). Todos respeitam o rastreador: o pobre, porque sabe que ele não tem interesse em caluniá-lo; o rico, porque teme que o rastreador um dia lhe falte (não colaborando na procura por um ladrão, ou na procura por um cavalo valioso). O rastreador atravessa campo e cidade, arquiva o padrão de homem e animal, não conhece distância. Como se seus olhos vissem o relevo dessa pegada que para os outros é imperceptível, escreve Sarmiento. O ladrão encontrado pelo rastreador sabe que negar seria ridículo, absurdo. Para o ladrão, a palavra do rastreador é o dedo de Deus apontando para ele, continua Sarmiento e conta a história de Calíbar, um rastreador famoso: certa vez, quando estava ausente em uma viagem a Buenos Aires, roubaram sua sela de gala. Sua mulher cobriu o rastro com um pote. Dois meses depois, Calíbar voltou para casa, soube do roubo e foi dar uma olhada no rastro, já apagado e imperceptível aos olhos. Não se falou mais do caso. Um ano e meio depois, Calíbar andava cabisbaixo pelas ruas do subúrbio, entra numa casa e encontra sua sela, já escurecida e quase inutilizada pelo uso. Tinha encontrado o rastro do ladrão, depois de tanto tempo, só com o uso da memória. Uma memória que parece não conhecer o tempo.
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O gaúcho rastreador passa o ofício para seus filhos. Essa é a única escola, irrepetível. É da ordem do paradoxo (da aporia): um conhecimento coletivo, disponível para poucos mas visível a todos, é levado adiante de forma única em cada família, sem, com isso, perder sua potência arcaica de acumulação. Sarmiento escreve sobre Calíbar: Quando lhe falam de sua reputação lendária, responde: ‘Já não valho nada, aí estão os meninos’. Os meninos são seus filhos, que cursaram a escola desse mestre tão famoso.
Uma especulação: Funes (Irineu Funes, o memorioso), ainda que uruguaio, ainda que definido como o Zaratustra xucro e vernáculo, era um gaúcho do interior, vestido com bombachas e alpargatas. Borges escreve que Funes era filho de Maria Clementina Funes, lavadeira do povoado. Alguns diziam que seu pai era um inglês chamado O’Connor. Muitos acreditavam, contudo, que seu pai era “um domador ou rastreador do distrito de Salto”. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos, escreveu Borges. Aborrecia-o que o cão das três e quatorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente). Funes atravessa o mundo dos homens e o mundo dos bichos, ileso. Essa menção breve, por parte de Borges, ao gaúcho rastreador é tudo menos ingênua – é o tipo de detalhe que, para Borges, dava sustentação retrospectiva ao relato, como se as conseqüências fossem mais importantes que as causas.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Blanco nocturno

Estamos em Blanco nocturno, o último livro de Ricardo Piglia. Estamos em uma cidadezinha no interior da Argentina, na província de Buenos Aires. Mataram Tony Durán, um forasteiro, com uma facada no peito. O jornalista Emilio Renzi, que é o nome que Ricardo Piglia utiliza quando aparece em seus próprios livros, está conversando com Croce, o comissário de polícia. Croce oferece a Renzi uma teoria da leitura (que é, ao mesmo tempo, uma ficção da imagem). Tudo consiste em diferenciar aquilo que é daquilo que parece ser, diz Croce. Os imbecis, diz Croce, procuram mostrar que o que é diferente é, na realidade, sempre a mesma coisa. Descobrir é ver de outro modo aquilo que ninguém percebeu. Croce faz um desenho e mostra a Renzi: um pato. Croce vira o mesmo desenho: um coelho. Reconhecemos as coisas antes de vê-las – e esse movimento viciado deve ser desnaturalizado, desfeito, profanado, abandonado. Compreender não é descobrir fatos, nem extrair inferências lógicas, muito menos construir teorias; trata-se somente de adotar o ponto de vista adequado para perceber a imagem.

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Croce também diz a Renzi: um policial não vê a mesma imagem que um jornalista. Eu sei que vocês escrevem com o firme propósito de informar-se depois, diz Croce. Essa inversão é muito interessante, coloca o efeito antes da causa e lembra as investigações de Wittgenstein – o processo da linguagem como evento filosófico, a linguagem como matriz do homem. E Wittgenstein foi professor de Tardewski, o polonês perdido na Argentina em Respiração artificial; e Wittgenstein é, junto com Hitler e Borges, o filósofo mais citado em Respiração artificial, de modo que estamos em casa. Essa inversão lembra também uma frase de Osvaldo Lamborghini: primeiro publicar, depois escrever, uma postura que é retomada e desenvolvida por César Aira (quando fala no “dispositivo que permite à obra fazer-se por si só”, ou ainda, o investimento na literatura como um propósito falido). As conseqüências são mais importantes que as causas, afirma Croce, depois de descobrir o assassino e afirmar que as investigações iriam continuar.

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Croce é muito semelhante ao delegado Espinosa, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, ao Adamsberg, de Fred Vargas, e ao comissário Morvan, de Saer (A pesquisa). Certamente existem outros, mas esses são realmente muito semelhantes: lentos, contemplativos, oscilando melancolicamente entre a resignação e a angústia, desajustados no tempo e no espaço – e isso é fundamental, porque tudo começa antes para eles (antes do cadáver, antes do crime), e termina antes também (a resolução é sempre para os outros, eles apenas comunicam algo que sempre souberam).

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O curioso é que Piglia insere um terceiro elemento em um cenário que há anos era formado por apenas dois: o detetive e o policial. Em 29 de abril de 1998, em um debate realizado em Princeton, Piglia distingue o detetive do policial, reforçando que este último é um representante do Estado nas ruas, é uma extensão do Estado, um dos avatares do Estado, o policial está institucionalizado. O detetive, por outro lado, é uma figura inventada, construída na ficção como um técnico da interpretação, um virtuose da interpretação. É claro que as coisas se complicam, porque o detetive existe tanto na literatura quanto no mundo, e o policial pode muito bem ser uma instância de contato entre a lei e o submundo, entre a lei e seu contrário. Emilio Renzi, essa figura que inaugura o relato para Piglia, que torna o relato possível, é uma mistura de jornalista e crítico literário: dois espaços discursivos que dependem da resolução do crime para sobreviver. Em Blanco nocturno surge a figura do comissário: eles são os verdadeiros pesos pesados, diz alguém; mais de quarenta anos, já engordaram, viram de tudo e tem muitas mortes nas costas – são os especialistas do mal, sempre circulando pela noite, entre putas e políticos, com acesso à grana fácil porque todos o querem agradar; estão entre a lei e o crime, voando a meia altura, metade-metade – se mudarem a dose, não sobrevivem; eles fazem política o tempo todo e nunca se metem com política, são heróis clandestinos, nunca estão totalmente visíveis; fazem o que tem que fazer e permanecem, acima das mudanças, são eternos, estão desde sempre.


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Desvarios sobre a série

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Existe coragem em Don Juan?
Derrida falou bastante da homossexualidade viril que marca o discurso ocidental - a amizade que só é possível entre homens, um medo da feminilidade, ou o feminino como vazio (o vazio que é vazio desde sempre, não o vazio que é vazio por extração, subtração).
Aparentemente não há medo da feminilidade (femi-niilidade) em Don Juan. Ele segue adiante, conquista após conquista, como um colecionador. Lacan diz que essa busca é sempre fim porque Don Juan quer a mulher com falo - a mulher impossível, o impossível em suma, ou talvez uma mãe primária, originária. Don Juan quer tomar todas as mulheres do pai - as que ele teve e as que nunca poderia ter. Mas a única inacessível é, obviamente, a mãe. A mãe, por não estar disponível, tem o falo - o impossível.
Don Juan mata o pai a partir da série. Por onde passa a lei se não há regressão? Por onde passa a lei se o sujeito só segue adiante?
É completamente lícito pensar em César Aira.
César Aira é o Don Juan da literatura contemporânea: sua superfertilidade está em íntima ligação com uma inoperância cada vez mais perigosamente cultivada. Sua escritura é auto-imune. A impossibilidade da obra completa é cada vez mais violenta - e o pesadelo que engendra é a imagem do escritor satisfeito, acariciando as lombadas de seus livros, uma coleção que é só aparentemente dispersa, ele diz que não guarda, que não se importa (como os manuscritos de Macedonio), mas, no fundo (no fundo do pesadelo), no fundo da biblioteca, ele reservou uma seção especial para seus escritos, para suas edições (aqui estão as traduções ao alemão, etc)
Estão deixando sementes para trás? É um desperdício ou um investimento?
César Aira já foi menina e já foi freira - há uma coragem feminina, um investimento no vazio. Na lista dos escritores prediletos, feita no Diário da hepatite, só há franceses. Mas fica a questão: superfertilidade ou inoperância? Às vezes parece que tem muito a perder e por isso permanece (deixando o dispositivo de autor funcionando sozinho). Às vezes parece que não tem nada a perder, e por isso continua trabalhando, criando.
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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Solar


1) Solar retoma um caminho que Ian McEwan havia deixado de lado nos últimos livros. Isso porque Solar não é carregado de melancolia e negatividade, como são Reparação e Na praia. Este último livro está muito mais próximo da carga irônica de Amsterdam, por exemplo. E nesses dois livros, Solar e Amsterdam, há o salutar procedimento de abordar a questão da criatividade e da criação (e de como é a vida de alguém que lida com esses referenciais) sem recorrer, necessariamente, à figura do escritor (sempre tão à mão: Bech no beco, Operação Shylock, Pierre Menard, Leviatã, Todas as almas, Verão em Baden-Baden, O mal de Montano, etc). Esse movimento aparentemente banal de renovação temática é fundamental na literatura contemporânea: para McEwan, são os músicos em Amsterdam e o cientista de Solar (e o médico em Sábado, e o jornalista de divulgação científica de Amor para sempre), e outros exemplos abundam: músicos em Bernhard e Jelinek (que estava na frente de uma partitura no vídeo que fez para a cerimônia do Nobel de Literatura), artistas plásticos para Alan Pauls (O passado), Don DeLillo (A artista do corpo) e Bernardo Carvalho (As iniciais, o conto “A valorização”). Sophie Calle para Paul Auster e Vila-Matas, Cindy Sherman para Mario Bellatin.
2) Solar, na realidade, é hilário. Como não lembrar da tira de bacon usada como marca-página, encontrada dentro do livro muitos meses depois? Ou do debate de Michael Beard com as feministas, com os pós-modernos? Ou a cena em que ele precisa urinar, no meio do gelo, quarenta graus negativos, com três trajes sobrepostos e a grande probabilidade de congelar sua preciosa extremidade? Solar é, também, uma bela desmistificação do Prêmio Nobel – a incompetência e a preguiça do protagonista mostram que as premiações são contingências atravessadas por critérios que estão muito aquém da relevância histórica ou da potência intelectual (como na conhecida discussão da Literatura nazi na América (ou nas reflexões de George Steiner (Extraterritorial) sobre as escolhas “políticas” de Céline ou Ezra Pound): ser um literato não salva ninguém de ser um monstro, muito pelo contrário: às vezes é um pré-requisito).
3) Ainda falta a McEwan um romance que seja, simultaneamente, irônico, trágico e “científico” (no sentido que Solar, A criança no tempo e Sábado são “científicos”, ou seja, preocupados com as técnicas de controle do tempo e do espaço (e do homem no meio disso), porque muitos são peças únicas (Reparação, O jardim de cimento), e outros são híbridos somente até certo ponto (A criança no tempo, trágico e científico; Na praia, trágico e irônico). 
4) McEwan usa o aparato discursivo das ciências de forma muito bem equilibrada em Solar – o que não é nenhuma novidade: o terreno já vem sendo preparado desde A criança no tempo, com suas intervenções sobre as dimensões desconhecidas e as possibilidades narrativas dessas estranhezas. Porque essa é a chave: McEwan é um grande curioso, lê as revistas especializadas, conversa com cientistas, participa de congressos e seminários, mas seu foco é sempre a literatura e a narrativa, ou ainda, de que forma essas inovações do pensamento abstrato podem renovar a linguagem e seu ritmo de trabalho dentro da ficção. Existem outros da mesma turma, igualmente competentes: Michel Houellebecq (A possibilidade de uma ilha, Partículas elementares), Kazuo Ishiguro (Não me abandone jamais) e, o maior de todos, Thomas Pynchon (O arco-íris da gravidade) – aproveito a oportunidade para deixar registrada minha admiração por um romance recente, e bem pouco falado, que desliza pelo mesmo campo: Um louco sonha a máquina universal, de Janna Levin. Um cruzamento do que poderíamos chamar de técnicas e artes do pós-humano.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Paul-Michel, 6

Há um pensamento do testemunho que vai de Monsieur Teste até Vigiar e punir – e Paul-Michel fala muito de Paul Valéry no debate que promove, na revista Tel Quel, em setembro de 1963: Uma nova literatura?, com Sollers, Gandillac e outros (um pouco mais sobre o testemunho em Monsieur Teste, aqui). O testemunho, a testemunha: aquele que está posicionado para ver, um terceiro, às vezes buscando a neutralidade, a palavra final; às vezes irremediavelmente próximo e participante, um sobrevivente. Para Paul-Michel, trata-se do desejo de movimento que acompanha todo olhar: não só vigiar, mas também punir, ou ainda, tocar, violentar, marcar aquilo que chega à vista, e, a partir do contato, gerar movimento, gerar mais e mais material para o olhar. A punição incita o movimento, e o movimento é o alimento do olhar (assim como a proibição é a cortina de fumaça para o fazer falar). O que é ver e falar?, pergunta Paul-Michel no debate de Tel Quel, fazendo referência às obras de Raymond Roussel, Bataille e Blanchot. Suas obras se situam exatamente na dimensão dessa pequena conjunção, desse e, disso que está entre pensar e falar; suas obras são esse intermediário, esse espaço simultaneamente vazio e pleno do pensamento que fala, da fala que pensa, responde Paul-Michel. Uma das lições a tirar da observação da conjunção (daquilo que liga separando) é que, na maioria das vezes, na intervenção da punição está dito mais sobre quem pune do que sobre quem é punido: aquilo que é contemplado também contempla, retorna. Paul-Michel observa que, em Bataille, é o olho fora da órbita, sempre exposto, que nos olha; e, em Sade, é o cu em riste que testemunha.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Uma presença se anuncia

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Pouco depois das três da tarde, Hitler e Braun se retiraram para seus aposentos. A certa altura entre três e meia e quatro horas, um único tiro de pistola foi disparado. Quando os ajudantes de Hitler abriram a porta, depararam com o cheiro cáustico de cianeto e a visão de Braun estendida no sofá, seus sapatos arrumados ao lado. Hitler estava tombado perto dela com uma só bala na cabeça e uma poça de sangue do tamanho de um prato no chão. Foram envoltos em lençóis e carregados pela escada estreita ao jardim da chancelaria, onde foram colocados numa cova rasa, encharcados com 95 litros de gasolina e cremados. Uma testemunha lembra que viu o vestido de seda azul de Braun se desfazer, revelando por um breve instante sua pele branca e macia, que aos poucos se carbonizou em meio às chamas. Os quartos do bunker de Hitler também foram encharcados de gasolina e incendiados, mas as chamas rapidamente perderam força e morreram naquele espaço estreito e sem ar.
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Timothy W. Ryback. A biblioteca esquecida de Hitler. p. 259.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Paul-Michel, 5

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Paul-Michel publica O nascimento da clínica em 1963. O livro não tem a menor repercussão. Afinal de contas, esse sujeito é médico? historiador? filósofo? Que coisa mais bizarra, dizem. Mas o livro não passa despercebido a Jacques Lacan, que numa sessão de seu concorrido seminário discorre longamente sobre o livro ignorado de Paul-Michel. Nos dias seguintes, algumas dezenas de exemplares são vendidos. O contato entre os dois se dá, via amigos em comum. Paul-Michel janta várias vezes na casa dos Lacan, sem estabelecer com eles laços mais estreitos. Sylvia Lacan, a esposa de Jacques, se lembra de uma frase proferida por Paul-Michel em sua casa na rue de Lille: Não haverá civilização enquanto o casamento entre homens não for admitido. A partir do próprio Lacan, e também de Lévi-Strauss, Paul-Michel pôde realizar toda a sua empreitada arqueológica na obra que, finalmente, lhe valeu a celebridade - As palavras e as coisas, três anos distante de O nascimento da clínica. O curioso é que, dez anos depois, o cenário muda completamente - a amizade morna vira combate intelectual direto. Agora, em 1976, é contra Lacan que ele empreende a pesquisa genealógica de A vontade de saber. Paul-Michel pretende uma arqueologia da psicanálise. Pretende uma ruptura com Lacan, mas, também, uma ruptura com todos os que se opõem a suas análises: ideologias da liberação, freudo-marxismo, teorias do desejo, legados de Sade e Bataille. São doutrinas contraditórias, mas solidárias umas às outras, explica Paul-Michel: estão presas nos mesmos dispositivos de saber e poder.
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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Dois textos

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1) O primeiro deles é sobre Herta Müller, escrito no calor da hora, no fim de dezembro do ano passado e um pouco de janeiro desse ano. Surge agora, quando Vargas Llosa é a bola da vez. Não vou escrever sobre Vargas Llosa, não me interessa. Mas escrevi sobre Herta Müller, eis o texto. O título é um pouco longo, mas gosto da ideia de pensar a ficção como um suplemento da história - nem antes, nem depois, nem mais, nem menos. Saiu em uma revista da PUC do Rio de Janeiro, Revista Escrita.
2) O segundo é bem mais legal, pela simples razão de ser um texto sobre Sebald, e é sempre bom falar de Sebald. Trata-se de uma aproximação entre Sebald e Orhan Pamuk, especialmente no que diz respeito ao uso das imagens durante a narrativa. Por isso o título: Palavra e imagem nas escritas do presente. A hipótese de união entre os dois escritores, desenvolvida a partir de um fragmento do Adorno, me deixou particularmente satisfeito. Eis o texto. Saiu na Revista Raído, da Universidade Federal da Grande Dourados.
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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Paul-Michel, 4

Nos últimos anos da década de 1970, Paul-Michel não se questiona apenas sobre a matéria e o conteúdo dos livros que está escrevendo. Preocupa-se também com a forma e de modo mais genérico com os problemas da edição. Nesse momento, essa é até uma de suas preocupações essenciais. Paul-Michel acha que a difusão exagerada dos livros de pesquisa prejudica a recepção e gera uma série de incompreensões. Paul-Michel argumenta que quando uma obra ultrapassa o círculo de seus verdadeiros destinatários, ou seja, os pesquisadores que conhecem os problemas abordados e as tradições teóricas às quais se refere, esse livro não produz mais efeitos de saber e sim efeitos de opinião. A principal preocupação de Paul-Michel é evitar os efeitos de opinião. Paul-Michel quer que seus novos livros, publicados pela Gallimard, sejam o ponto de partida para uma coleção que restitua as pesquisas rigorosas, um pouco sufocadas pelas condições da edição e da circulação das ideias. Ele implica com o tratamento preguiçoso das notas de rodapé e da falta de rigor com as informações bibliográficas, entre outros elementos. Paul-Michel tinha em mente as reedições constantes de seu próprio trabalho. Em poucos meses, As palavras e as coisas já ultrapassava os 50 mil exemplares vendidos - e o mesmo aconteceria com Vigiar e punir, alguns anos mais tarde. Paul-Michel sempre recusou a publicação em livro de seus artigos de jornal, feitos, geralmente, no calor da hora de algum evento político muito específico - exemplo interessante dessa dinâmica que rege aquilo que um pensador pode expôr num jornal e aquilo que reserva para seus artigos, seus livros. Quantidade de leitores não traz qualidade de leitura, dizia Paul-Michel.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Paul-Michel, 3

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Paul-Michel, já professor, depois de um tempo dando aulas na Suécia, resolve experimentar a Polônia. Estamos no fim da década de 1950. Paul-Michel, nessa época, ocupou uma série de cargos burocráticos em recantos franceses ao redor do mundo. Dizia, também, que sua sina era vagar pelo mundo, sem estabelecer morada fixa, especialmente na França. Alguns anos depois, tudo mudaria, mas, em outubro de 1958, ele desembarca em Varsóvia. Ele estava lá na função de leitor de um centro de cultura francesa recém-criado no interior da universidade. As relações Leste/Oeste estavam tensas, e a ida de Paul-Michel era mais um elemento em uma campanha de harmonização. Paul-Michel precisa cuidar do tal centro, e começa a providenciar mesas, cadeiras, livros, revistas. Paul-Michel também dá aulas e pronuncia conferências na universidade, onde está ligado ao Instituto de Línguas Românicas da Faculdade de Filosofia Moderna. Oferece um curso sobre teatro francês contemporâneo. Imediatamente seduz os estudantes e seus colegas pela inteligência, pela seriedade, pela gentileza. Paul-Michel se envolve cada vez mais, cria laços. Pronuncia uma série de conferências sobre Apollinaire - uma homenagem ao quadragésimo aniversário de morte do poeta. Faz uma turnê pelo país, de Gdansk a Cracóvia. Nenhum dos muitos projetos que tinha em mente teve continuidade, pois Paul-Michel precisou deixar às pressas o território polonês. A história é muito confusa, mas parece comum nos países do Leste: Paul-Michel conhece um rapaz com o qual começa a viver dias felizes naquele país triste e sufocante. Mas o jovem trabalha para a polícia, que procura se infiltrar nos serviços diplomáticos ocidentais. Certa manhã, o superior de Paul-Michel o alerta: Você precisa sair da Polônia. Paul-Michel, surpreso, pergunta: Quando? A resposta: Nas próximas horas.
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sábado, 9 de outubro de 2010

Paul-Michel, 2

Paul-Michel, além de distribuir murros em seus colegas, gostava muito de ler. Todos lembram com nitidez de sua incrível capacidade de trabalho. Conseguia fazer muitas coisas ao mesmo tempo, levar adiante projetos simultâneos. Lia, escrevia, lecionava. Fazia fichas de forma meticulosa e as organizava em caixas, por assunto, autor e ano. Aos cinqüenta anos, Paul-Michel afirmava ter em casa, guardadas, as fichas que fizera aos vinte anos de idade, na Escola Normal Superior. Nessa época, Paul-Michel começa a aprender alemão para poder ler Heidegger no original. É curioso, também, que suas leituras de filosofia, nessa época, são acompanhadas por leituras de psicologia, intensas na mesma medida. Paul-Michel trabalhou como psicólogo (em um hospital e também em uma prisão), quase como um técnico de psicologia, dos 26 aos 29 anos: examinava internos, detectava traumatismos cranianos, epilepsias larvais, distúrbios neurológicos, aplicava testes de Rorschach, etc. Portanto, além de Marx, Hegel, Nietzsche e Heidegger, Paul-Michel também lê Freud, Binswanger, Marie Bonaparte e Margaret Mead. Mas também consome literatura, e de forma compulsiva. Kafka, que sua geração descobre com entusiasmo e que ele lê em alemão, para se familiarizar com a língua recente. Paul-Michel é um ardoroso divulgador de Faulkner, Gide (que nem precisava tanto assim), Genet, Sade. Paul-Michel começou a ler Bataille e Blanchot por causa de Sartre – que publicou, em 1948, Situações I. Cinco anos mais tarde, em Paris, Paul-Michel assiste a estréia de Esperando Godot. Paul-Michel, muitos anos depois, diria aos entrevistadores: Nessa época eu sonhava ser Blanchot.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Paul-Michel, 1

As coisas, no começo, não foram fáceis para Paul-Michel. Paul porque era o nome do pai (e do avó, e do bisavô). Michel porque a mãe teimou. Paul-Michel nasceu e cresceu em uma cidadezinha escrota no interior da França: Poitiers, que trocou por Paris quando foi se preparar para a Escola Normal Superior (por volta de seus dezoito anos). Paul-Michel era instável, solitário, arisco. Nutria um ódio intenso pelo pai – por isso que, quando finalmente pôde, livrou-se do primeiro nome. Em 1948, já interno da Escola, angustiado pela convivência forçada e pelo clima de competição e vigilância intelectual constantes, tenta o suicídio. Não teve sucesso, mas isso não o impediu de ensaiar o gesto muitas outras vezes ao longo da vida. Paul-Michel era um suicida frustrado e, por isso, Paul-Michel era obcecado pela idéia do suicídio. Depois da tentativa, e depois de uma longa série de conversas, o psiquiatra da Escola (uma das sumidades da psiquiatria francesa) se limita a dizer que os distúrbios provinham de uma homossexualidade muito mal vivida e muito mal assumida. E, de fato, ao voltar de suas expedições noturnas pelos pontos de encontro ou bares homossexuais, o jovem Paul-Michel fica prostrado durante horas, doente, aniquilado pela vergonha. Se não tivesse saído de Poitiers para se enfiar nesse ninho de cobras que é a Escola, nada disso estaria acontecendo. Mas, se nada disso estivesse acontecendo, ele não teria acesso ao quarto isolado da enfermaria, distante dos outros. E às vezes ele pensa: podia ter virado as costas no momento do exame e ter ido embora, não ter mais aparecido nesse lugar deprimente, ter virado as costas quando eles abriram a porta da sala da argüição e disseram Senhor Foucault, é sua vez.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tabucchi, Lisboa

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1) Dizem que lá pela metade da década de 1990, talvez 1994, 1995, Antonio Tabucchi andava por Lisboa, andava pelos cafés da Baixa, andava pelos lugares que Fernando Pessoa costumava frequentar. Tabucchi usava um pequeno bigode e estava bem mais magro - fazia parte do esforço para caber em ternos retos e miúdos como os que usava Pessoa.
2) Tabucchi, dizem, estava outrando - buscava os restos de Pessoa, ao mesmo tempo em que procurava chamar Pessoa para si, como em uma possessão. Os que viram Tabucchi em Lisboa, por volta de 1994, 1995, afirmam que ele se movia com passos rápidos, olhos baixos, alheio.
3) Tabucchi estava escrevendo Os três últimos dias de Fernando Pessoa, e Lisboa lhe servia de laboratório. Neste livro, Fernando Pessoa recebe a visita de seus heterônimos antes de morrer. Depois de outrar fantasma - ser Fernando Pessoa -, Tabucchi, já do outro lado, retira mais uma camada e solicita os fantasmas de um fantasma. Que língua falam os mortos que retornam à força?, pergunta Tabucchi. Ou, como diria Roberto Bolaño: Que livro você teria coragem de dar a um condenado à morte?
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terça-feira, 5 de outubro de 2010

Kafka: a convivência impossível

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Kafka desperta o que há de melhor nos críticos. Melhor porque estão na angústia, no desespero permanente de só poder dizer, continuar, repisar, de novo e de novo. Que escolha infeliz, essa, dizem eles. Escolho: Kafka; e não há nada além disso, para sempre. Coetzee, Sebald, Piglia, Bloom, Benjamin, Borges: estão todos lá, prefigurados, antecipados, condensados, perdidos no informe, na derrisão kafkiana. Há um Kafka para cada um que se aproxima - uma porta que leva o nome de cada um, uma extensa escadaria que leva a um lugar conhecido apenas por esse que sobe. Alguns lembram que ele ria quando lia seus textos; talvez isso os dê um pouco de paz. Sebald gostava de pensar nos últimos dias; Kafka na sacada do sanatório, tossindo sangue. Piglia prefere os arroubos de paixão - a paixão mediada (possibilitada) pela ficção - e esse é um dos caminhos escolhidos também por Canetti. Alguns dizem que não há divisão entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos; um dia, tudo fica transparente. A partir disso, vale o esforço de encontrar uma linguagem (Josefina) que dê conta dessa convivência impossível (o caçador Graco).
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sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Quantas mortes mais

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1) Saer começou a escrever O grande em 1999. Quando morreu, em 2005, o livro ficou inacabado. O último capítulo ficou com apenas uma frase e o penúltimo, ainda que completo (com o mesmo tamanho dos anteriores, etc), não foi revisado e, por isso mesmo, apresenta alguns cortes bruscos, algumas lacunas (o que não fica nada mau; talvez seja o capítulo mais interessante do livro, justamente por seu caráter provisório - o disforme deixa o ficcional mais atraente).
2) Saer começou a escrever O grande depois de ler Os detetives selvagens - Bolaño havia recebido o Rómulo Gallegos poucos meses antes. Esse contato se faz sentir, fortemente (de resto, é impossível ficar indiferente diante de Os detetives selvagens ("sabia que estava diante de uma obra-prima", disse o editor Herralde); pode-se imaginar, diante disso, o misto de surpresa, deslumbramento, inveja e incredulidade que pode ter sentido Saer diante do livro, do autor e do prêmio - elementos que ofereciam uma oportunidade completamente indesejada de repensar seu próprio percurso, sua obra, seu estilo, os livros que ainda desejava escrever (e talvez esse desejo tenha sido a parte mais atingida no processo)).
3) No penúltimo capítulo de O grande (aquele, o mais interessante), aparece a transcrição do manuscrito que ilumina o contexto histórico e cultural do movimento precisionista - ou seja, a versão saeriana do real-visceralismo (o movimento literário de Os detetives). O precisionismo percorre todo o livro de Saer - é o instrumento narrativo que lhe permite voltar aos anos 1940, 50 e 60 na Argentina (bem como a possibilidade de pensar a sobrevivência desses anos na Argentina do início do século XXI).
4) Saer cria tudo, com calma, com a acumulação progressiva que lhe é tão característica: as revistas literárias, os nomes dos participantes e dos diferentes grupos, os fundadores, os desertores, os visionários, as intrigas, os títulos dos livros, os títulos dos poemas, as motivações, as justificativas políticas, as desculpas estéticas, os precursores, os manifestos, as palavras de ordem, enfim, tudo que arma o precisionismo e seu entorno.
5) Nunca antes na história de sua obra Saer foi tão detido e específico na radiografia de um movimento literário quanto em O grande - tão meticuloso na tarefa de conferir vida própria a figuras que, na página seguinte, já não existirão. O grande não leva o nome em vão: é o maior livro de Saer, levado adiante teimosamente, e seria ainda maior se a morte não o tivesse interrompido (lembre-se do capítulo final com uma única frase).
6) O grande trava uma luta feroz com Os detetives selvagens. O resultado é um produto estranho tanto para os leitores de Saer quanto aos leitores de Bolaño, uma interrupção, uma suspensão. O que mostra que só há choro e ranger de dentes na vida do leitor de um autor só - um leitor marcado por pertecimentos rijos (auto-impostos, ainda por cima). Os personagens-fetiche de Saer, presentes, evidentemente, em O grande, estão ali, mas não confortáveis como sempre estiveram. O lugar, agora, é dos fantasmas - desses homens menores que nunca mais aparecerão.
7) Saer acompanhou a morte de Bolaño durante a escrita de O grande - estava no ponto médio, aquele ponto que já abandonou o início há tempos, mas que ainda não vê sequer sinal do fim (o fim é a angústia rotineira, o pão de cada dia). E no fim, no verdadeiro fim, no inelutável fim, deitado na cama do hospital, Saer pode ter pensado: por deus, quantas mortes mais esse livro terá que ver?
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