sábado, 13 de novembro de 2010

Dia de Sontag

Estou escrevendo num pequeno quarto em Paris, sentada numa cadeira de vime diante da máquina de escrever e perto de uma janela que dá para o jardim; atrás de mim há uma cama e uma mesa de cabeceira; no chão e debaixo da mesa, manuscritos, cadernos e dois ou três livros. Que eu esteja vivendo e trabalhando por mais de um ano num quarto tão simples e pequeno, apesar de a princípio não o ter planejado ou sequer cogitado, sem dúvida responde a alguma necessidade de despojamento, de fechar as portas por uns tempos, começar de novo com o mínimo possível. Nesta Paris em que vivo agora, a América é o mais próximo de todos os lugares longínquos. Mas nesses períodos nos quais eu praticamente não saio - e nos últimos meses tem havido muitos dias e noites abençoados em que não tenho vontade de deixar a máquina de escrever, a não ser para dormir -, cada manhã alguém me traz o Herald Tribune de Paris, com sua monstruosa colagem de "notícias" da América, comprimidas, distorcidas, mais estranhas do que nunca, vistas desta distância.

(Susan Sontag, 1972 - "Sobre Paul Goodman", Sob o signo de Saturno)
Minha mãe era um desses escritores que trabalhava com um olho imaginativamente voltado para a posteridade. Eu devia acrescentar que, em razão de seu medo imoderado da extinção - em nenhuma parte dela, mesmo nos derradeiros dias de agonia, houve a menor ambivalência, a menor aceitação -, tal pensamento não só não representava um consolo escasso como não representava consolo nenhum. Ela não queria partir. Não tenho a pretensão de saber tudo que ela sentiu enquanto morria, deitada durante três meses em dois leitos sucessivos, em dois quartos de hospital, enquanto seu corpo se tornava uma imensa ferida, mas pelo menos isso eu posso afirmar com segurança. Ela se interessava por tudo. De fato, se eu tivesse de escolher uma única palavra para evocá-la, seria avidez. Ela queria experimentar tudo, provar tudo, ir a toda parte, fazer tudo. Seu apartamento, que era uma espécie de reificação do que a sua cabeça continha, estava entupido, à beira da explosão, por uma coleção, espantosamente disparatada, de objetos, impressos, fotos e, é claro, livros, livros intermináveis.
(David Rieff, 2007 - "Introdução", Ao mesmo tempo, de Susan Sontag)
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Todo o texto de Rieff, o filho de Susan Sontag, é interessante e tocante. Todo o texto de Sontag sobre Goodman é interessante e tocante, este é apenas o primeiro parágrafo (e está incompleto). Goodman é o único escritor norte-americano que ela afirma ter lido com prazer tudo que havia escrito. Eu sinto o mesmo com Sontag, embora ainda não tenha encostado nos diários. Os ensaios de Ao mesmo tempo, lançado pela Companhia das Letras em 2008, são excelentes - e excelentes de uma forma honesta, direta, franca, agradecida, semelhantes àquele que Sebald escreveu sobre Walser na Serrote. Aliás, seria bacana uma reedição de Sob o signo de Saturno por parte da Companhia das Letras: a edição antiga da L&PM já deu o que tinha que dar; está cheia de erros tipográficos e a tradução às vezes parece um pouco manca. Rieff, em sua introdução, comenta bastante um texto de Sontag sobre Canetti, um texto antigo, que está justamente em Saturno - que conta ainda com um texto excelente sobre Benjamin (e um gigantesco sobre Artaud).

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