Uma genealogia do detetive latino-americano poderia começar (ou incluir) pela figura do gaúcho rastreador. Domingo Sarmiento, no Facundo, afirma que há um “poder microscópico” que se desenvolve na visão desses homens, uma capacidade sobrenatural de percepção que faz do gaúcho rastreador uma figura muito peculiar. O rastreador é um personagem grave, circunspecto. A consciência do saber que ele possui lhe dá certa dignidade reservada e misteriosa, inspirando respeito nos gaúchos não-especializados (digamos assim – caberia, mais adiante, quem sabe um dia, uma taxonomia da gauchesca, que incluiria o rastreador, o baqueano, o domador, o músico, etc). Todos respeitam o rastreador: o pobre, porque sabe que ele não tem interesse em caluniá-lo; o rico, porque teme que o rastreador um dia lhe falte (não colaborando na procura por um ladrão, ou na procura por um cavalo valioso). O rastreador atravessa campo e cidade, arquiva o padrão de homem e animal, não conhece distância. Como se seus olhos vissem o relevo dessa pegada que para os outros é imperceptível, escreve Sarmiento. O ladrão encontrado pelo rastreador sabe que negar seria ridículo, absurdo. Para o ladrão, a palavra do rastreador é o dedo de Deus apontando para ele, continua Sarmiento e conta a história de Calíbar, um rastreador famoso: certa vez, quando estava ausente em uma viagem a Buenos Aires, roubaram sua sela de gala. Sua mulher cobriu o rastro com um pote. Dois meses depois, Calíbar voltou para casa, soube do roubo e foi dar uma olhada no rastro, já apagado e imperceptível aos olhos. Não se falou mais do caso. Um ano e meio depois, Calíbar andava cabisbaixo pelas ruas do subúrbio, entra numa casa e encontra sua sela, já escurecida e quase inutilizada pelo uso. Tinha encontrado o rastro do ladrão, depois de tanto tempo, só com o uso da memória. Uma memória que parece não conhecer o tempo.
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O gaúcho rastreador passa o ofício para seus filhos. Essa é a única escola, irrepetível. É da ordem do paradoxo (da aporia): um conhecimento coletivo, disponível para poucos mas visível a todos, é levado adiante de forma única em cada família, sem, com isso, perder sua potência arcaica de acumulação. Sarmiento escreve sobre Calíbar: Quando lhe falam de sua reputação lendária, responde: ‘Já não valho nada, aí estão os meninos’. Os meninos são seus filhos, que cursaram a escola desse mestre tão famoso.
Uma especulação: Funes (Irineu Funes, o memorioso), ainda que uruguaio, ainda que definido como o Zaratustra xucro e vernáculo, era um gaúcho do interior, vestido com bombachas e alpargatas. Borges escreve que Funes era filho de Maria Clementina Funes, lavadeira do povoado. Alguns diziam que seu pai era um inglês chamado O’Connor. Muitos acreditavam, contudo, que seu pai era “um domador ou rastreador do distrito de Salto”. No abarrotado mundo de Funes não havia senão pormenores, quase imediatos, escreveu Borges. Aborrecia-o que o cão das três e quatorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome que o cão das três e quarto (visto de frente). Funes atravessa o mundo dos homens e o mundo dos bichos, ileso. Essa menção breve, por parte de Borges, ao gaúcho rastreador é tudo menos ingênua – é o tipo de detalhe que, para Borges, dava sustentação retrospectiva ao relato, como se as conseqüências fossem mais importantes que as causas.
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