Um parágrafo chama a atenção no prefácio que acompanha as novas edições das obras completas de Freud, que estão saindo pela Companhia das Letras. O tradutor Paulo César de Souza escreve que a ordem de publicação dos volumes brasileiros não é a mesma das primeiras edições alemãs, "pois isso implicaria deixar várias coisas relevantes para muito depois". O parágrafo termina informando que a decisão editorial foi de começar por um período intermediário e, a partir daí, "proceder para trás e para adiante". Esse movimento já é, por si só, interessante. Ao mesmo tempo em que confere uma dinâmica à obra densa e vasta de Freud, contribui para uma dessacralização, uma ventilação dessa mesma obra. O tradutor também diz que esse período intermediário, "em torno de 1915", é um período de pleno desenvolvimento das concepções de Freud - e engloba textos como "Totem e tabu", "Além do princípio do prazer" e o famoso "O estranho" (que agora se chama "O inquietante" - entrando para uma galeria de traduções que contém "Lo siniestro" e "Lo ominoso" para o espanhol, "Il perturbante" para o italiano, "L'inquiétante étrangeté" para o francês e "The uncanny" para o inglês). Essa falta contra a cronologia da edição brasileira é, portanto, um gesto consciente de apropriação crítica da obra freudiana. Dá ênfase a um período específico da produção e, dessa forma, sugere um percurso de leitura e um reposicionamento de Freud na contemporaneidade. O resultado disso é o privilégio dado a alguns textos já disponíveis, como "O mal-estar na civilização" e "Além do princípio do prazer". Não deixa de ser curiosa a preocupação com uma possível leitura de "várias coisas relevantes" ser deixada "para muito depois", principalmente se lembrarmos os quase cem anos que nos separam de alguns desses trabalhos. Mas a justificativa parece ser justamente essa: temos Freud, agora, em fragmentos não-cronológicos exatamente porque, passados cem anos, vemos legibilidades mais relevantes em momentos específicos desse trajeto. Esse posicionamento dá ainda mais força às edições, que são, de resto, impecáveis (e essa posição é progressivamente reafirmada nas criteriosas notas de tradução que aparecem nos volumes).
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