sábado, 16 de novembro de 2024

Adestradores


Ainda em De genio Socratis, bem depois da passagem na qual se fala do daimon de Sócrates como um espirro, outro personagem relembra o que um oráculo teria dito ao pai de Sócrates quando este era ainda criança (20, 589, E): devia deixá-lo fazer o que quisesse, sem limitar ou guiar seus impulsos, garantindo sua plena liberdade, pois o menino já tinha dentro de si um guia melhor que qualquer mestre ou pedagogo.

Por fim, outro personagem, ampliando a questão (24, 594, B), levanta a hipótese de que os deuses marcam os melhores de nós, como um adestrador escolhe um cavalo dentro de um grupo de cavalos; os escolhidos recebem mensagens por símbolos, incompreensíveis para o restante do rebanho; assim como a maioria dos cães não entende o chamado do treinador, mas o cão escolhido sabe obedecer a um determinado assovio. "Tenho a impressão de que também Homero conhecia essa diferença", diz o personagem de Plutarco, citando o verso: "Heleno, querido filho de Príamo, entendeu dentro de si a decisão que agradava aos deuses em seus conselhos" (Ilíada, VII, 44-45). 

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Sócrates e o espirro


Em sua narrativa De genio Socratis (tradução latina do grego Perí tou Sōkrátous daimoníou), Plutarco não apenas retoma a figura de Sócrates, mas o faz a partir do modelo oferecido pelo Fédon platônico: uma reflexão especulativa acerca do destino das almas após a morte. Na narrativa de Plutarco, Sócrates aparece eventualmente como tema de conversação de um grupo de conjurados que prepara uma insurreição contra os tiranos que tomaram o poder em Tebas (o que faz pensar em certas histórias de Jorge Luis Borges ou de Leonardo Sciascia). 

Em certa passagem (11, 581, B), um dos personagens relata algo que ouviu de um megarense: a informação de que o "gênio" de Sócrates (seu daimon, a energia sobrenatural que o guiava e protegia) era, na verdade, um espirro: se alguém espirrava à sua direita, ou atrás, ou à frente, Sócrates sabia que devia agir; se o espirro viesse da esquerda, sabia que devia ficar quieto e não fazer nada (o mesmo personagem chega à conclusão, no andamento de sua fala, que a ideia toda é ridícula e não combina com aquilo que sabemos sobre Sócrates).

terça-feira, 12 de novembro de 2024

De que texto se trata?


1) Vernant e Vidal-Naquet, no segundo volume de Mito e tragédia na Grécia antiga (p. 222-223), falam do Édipo rei de Sófocles, representado em Atenas por volta de 420 a.C. De que texto se trata?, eles se perguntam. "Ninguém gravou a representação de Atenas": a história da tradição se iniciou assim que os copistas começaram a copiar os manuscritos. O texto, portanto, não é de Sófocles, mas de um copista, de um editor bizantino, Manuel Moscopoulos (comentador e gramático que viveu no final do século XIII e início do século XIV).

2) O célebre manuscrito Laurentianus (uma cópia em minúsculas de um texto escrito em unciais, como precisam os autores) permite quando muito retornar ao codex do século V d. C., de que ele é uma cópia. Mais longe, é preciso postular um volumen da alta época imperial, que não é o texto de Sófocles, mas a interpretação de um filólogo da época de Adriano (Publius Aelius Hadrianus, imperador romano de 117 a 138). 

3) O texto de Sófocles não precisa esperar o período romano para se tornar clássico ou escolar: já com Licurgo os três grandes trágicos já estão classificados como tais (Ésquilo, Eurípides, Sófocles, como registra Aristófanes nas Rãs, de 406). Licurgo já está quase um século distante da maioria das obras no período trágico - e foi ele quem instaurou a lei das "versões oficiais", ou seja, a lei que determinava que os textos das obras dos três grandes trágicos deveriam ser custodiados nos Arquivos da cidade, evitando, assim, modificações espúrias. 

domingo, 10 de novembro de 2024

O final é o começo



1) No último capítulo de Mimesis, dedicado a uma análise da "meia marrom" em Virginia Woolf (uma passagem do romance Ao farol), Auerbach fala não apenas de Woolf, Joyce e Proust, mas da cena modernista de uma forma geral - chega a comentar, por exemplo, que existem certos romancistas que, apesar de já esteticamente "prontos" (ou "maduros"), utilizam ad hoc algumas das técnicas vanguardistas (o principal exemplo de Auerbach é Thomas Mann). Trata-se, contudo, de um capítulo de despedida e, por isso, complexo e heterogêneo - Auerbach chega a fazer um paralelo com Homero, retomando a cena do reconhecimento de Ulisses por conta de sua cicatriz (Auerbach, portanto, liga o ponto final ao ponto inicial de seu projeto).

2) O paralelo com Ulisses pode ser produtivo, na medida em que Auerbach, exilado e irrequieto (além de cosmopolita e poliglota), tomava como próprio o destino do errante. Ulisses, ao voltar para casa, antes de voltar ao leito que ele próprio construiu (a partir da árvore que nasce no lugar onde está o quarto), conta a Penélope como aprendeu, pelas palavras de Tirésias no inferno, que ele precisa - mesmo depois do retorno - seguir viagem. Ao retomar o início de Mimesis no final de Mimesis, Auerbach mostra, de forma enviesada, que o trabalho deve continuar, que o "final" é apenas um "começo" deslocado (Ulisses precisa seguir viagem já no dia seguinte, depois da noite de amor com a esposa, até encontrar alguém que não reconheça o remo - que deve, necessariamente, levar consigo - como um remo, e sim como uma "pá para grãos"). 

3) Tanto é verdade que o fim de Mimesis marca um recomeço que Auerbach define o próprio trabalho como uma filologia feita a partir dos moldes vanguardistas (e justamente porque Auerbach não sabe a direção do romance contemporâneo, também não sabe a direção exata de seu próprio trabalho). Em outras palavras, ele afirma que seu trabalho não é totalizante ou histórico, e sim a investigação de certos detalhes, certas cenas e certos problemas - algo que, de resto, é exemplificado e evidenciado pelo próprio drama da "meia marrom" de Virginia Woolf, na qual Auerbach vê o próprio destino (analisar toda uma existência condensada em uma cena, um detalhe: a cicatriz, a meia marrom, o carneiro de Dindenault na análise de Rabelais, etc). 

domingo, 3 de novembro de 2024

1919, 1929



1) No sexto parágrafo de seu ensaio sobre o surrealismo, Walter Benjamin cita Erich Auerbach, ou melhor, cita o livro de Auerbach sobre Dante (lançado em 1929, o mesmo ano do ensaio de Benjamin), especificamente a parte na qual Auerbach fala dos poetas do "estilo novo" como pertencentes a uma "sociedade secreta", dedicados a "aventuras do amor" e buscando "dádivas" que mais se assemelham a iluminações. "Iluminações", evidentemente, é a palavra-chave, já que Benjamin busca aproximar Dante e sua "sociedade secreta" da cena surrealista, que ele tenta interpretar a partir de um horizonte semelhante (a partir de Rimbaud).


2) No parágrafo seguinte, Benjamin aprofunda sua análise dos temas caros aos surrealistas - em suma, uma valorização daquilo que não é valorizado normalmente pela sociedade (roupas com mais de cinco anos, as primeiras fábricas, as primeiras construções de ferro e assim por diante), o que mantém, no pano de fundo, a aproximação com Dante e seu círculo (que revitalizam poeticamente relações cotidianas que passam inadvertidas pelas pessoas "normais"). Em seguida, surge uma segunda referência muito recente dada por Benjamin: um ensaio de Pierre Naville, "A revolução e os intelectuais", publicado em francês em 1926.

3) Naville e Auerbach surgem no ensaio de Benjamin mostrando sua faceta de intelectual atualizado e de pensador versátil e predisposto aos saltos - de Dante ao surrealismo, dos Demônios de Dostoiévski às passagens de Paris, de uma carta de Isidore Ducasse ao "aperfeiçoamento pacífico" da Força Aérea alemã. Benjamin escreve no calor da hora, marcando 1919 como uma data definidora - ele fala do início do surrealismo, mas é também o ano do Tratado de Versalhes e dos assassinatos de Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht (algo decisivo no debate sobre "pessimismo" e "otimismo" que Benjamin, muito rapidamente, apresenta no ensaio sobre o surrealismo, mas que vai aparecer também em textos como "Teorias do fascismo alemão", "Melancolia de esquerda", "Experiência e pobreza", etc).



segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Tia Carmela



1) Em uma das notas reunidas em seu livro Nero su nero, Leonardo Sciascia conta uma história siciliana da II Guerra Mundial: em uma pequena cidade na região de Agrigento chega a notícia da morte em batalha, na África, de um jovem morador do local. As autoridades decidem homenageá-lo de forma solene - era a primeira baixa registrada, tanto da cidade quanto da província -, com missa fúnebre, parada militar e discursos dos dignitários.

2) A mãe do falecido, contudo, continuava ouvindo a Rádio Londres - o que era rigorosamente proibido por lei na Itália da época -, que todos os dias anunciava os nomes dos soldados italianos feitos prisioneiros: teve a alegria de escutar não apenas o nome, mas também o sobrenome, local de nascimento, classe e matrícula. Não havia possibilidade de erro, era ele mesmo. Com a alegria, no entanto, veio a preocupação: a mãe não podia impedir o funeral sem confessar que havia escutado as transmissões radiofônicas do inimigo.

3) Sciascia escreve que a mulher experimentou o confronto do "medo supersticioso do funeral" (que poderia gerar "influxos de mau-agouro" em direção ao filho) com o "medo concreto de ser presa". Depois de passar a noite em claro pensando, acreditou ter encontrado a solução: foi ao chefe de polícia e disse a ele que tinha sonhado com seu filho, e que ele havia dito que o funeral não devia ser feito, ele estava vivo e bem em um campo inglês de prisioneiros. O chefe escutou com atenção e paciência e disse (escreve Sciascia): "Tia Carmela, esta noite tive o mesmo sonho, exatamente o mesmo... Mas o funeral precisa ser feito". "E foi feito", completa Sciascia.

sábado, 26 de outubro de 2024

Os danados



1) No prefácio do segundo volume de Mito e tragédia na Grécia Antiga (trad. Bertha Gurovitz, Brasiliense, 1991, p. 16-17), Vernant e Vidal-Naquet comentam, rapidamente, uma tradução ao francês do Édipo Rei de Sófocles. "Quando, no Édipo Rei de Sófocles", eles escrevem, "o servidor de Laio compreende que o homem que tem diante de si, soberano de Tebas, é a própria criança que, com os pés feridos, ele entregou ao pastor do rei de Corinto, ele lhe diz, de acordo com a tradução de Jean e Mayotte Bollack: 'Se és o homem que ele (o pastor de Corinto) diz que és, sabes que nasceste danado'" (são os versos 1180-1181). 

2) O problema está na palavra "danado". O que faz essa palavra aqui, perguntam Vernant e Vidal-Naquet, com a "teodiceia cristão" que veicula e sua aproximação com uma "predestinação agostiniana ou calvinista" que nada tem a ver com a "angústia trágica". A tradução (aqui e em qualquer parte; mas aqui Vernant e Vidal-Naquet denunciam o anacronismo daninho) é já uma interpretação e um deslocamento - leva Sófocles em direção a Dante, aos danados do Inferno, ao pecado, à culpa e ao medo tal como construídos pela tradição cristã. "O texto grego diz", simplesmente, informam Vernant e Vidal-Naquet, "sabes que nasceste para um destino funesto".

3) Em nota de rodapé, os autores dão mais exemplos: no verso 823 - que eles traduzem como "Nasci para o mal?" -, o casal Bollack dá a tradução: "Sou um danado de nascença?"; "observemos finalmente", acrescentam eles, "o emprego do termo 'danação' para traduzir, no verso 828, o grego ômos daimôn, 'uma divindade selvagem'". Com relação aos versos 1180-1181, a tradução de Trajano Vieira para o português é a seguinte: Se és quem ele diz, crê: nasceste para a desventura. (Perspectiva, 2001, p. 97).

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

A língua de Françoise



"Depois de ter fugido da minha família, ainda mais rápida e completamente fui deixando de usar a norma linguística de Reims - ou o que restava dela - porque estava tão em desacordo com o lugar - Paris - e o meio - pequena e média burguesia cultural - o quadro social da minha existência, onde a língua de qualquer outra região soava estranha e aquele que a empregava poderia ser designado como 'provinciano' ou 'do interior' para quem vem das províncias e que continuam a usá-la. Aprende-se isso com os olhares céticos ou os comentários sarcásticos daqueles que têm certeza da legitimidade social e da superioridade da norma linguística que empregam. Descobrimos, espantados, que esta ou aquela palavra que sempre usamos é desconhecida por aqueles com quem conversamos, e que ela ofende os ouvidos daqueles acostumados ao 'bom uso' da língua, à norma de prestígio.

Por isso, logo se compreende que se devem eliminar certos usos, certos modos de falar, certo vocabulário. A língua dos dominantes é a língua considerada legítima. O exemplo paradigmático desse sentimento de superioridade linguística por parte dos dominantes pode muito bem ser a forma como o narrador de Em busca do tempo perdido sublinha por pura diversão os erros de francês da criada da sua família, Françoise." 

(Didier Eribon, Vida, velhice e morte de uma mulher do povo, trad. Luzmara Curcino, Ayiné, 2024, p. 170) 

*

FRANÇOISE    Cozinheira da tia Léonie, em Combray, ela passa em seguida a servir os pais do herói, após a morte desta em 1894. Nascida nos anos de 1830, Françoise tem, então, mais de sessenta anos. Ela terá, junto ao herói, um papel de governanta e lhe demonstrará sempre muita simpatia. É dedicada, atenta, mas também ciumenta em relação às outras domésticas. Respeitosa das hierarquias sociais, ela não se deixa influenciar facilmente e sabe dar prova de lucidez sobre as pessoas. Em Combray, ela é a grande sacerdotisa da cozinha que sabe regalar os paladares e as imaginações.

Seu personagem é indissociável do romance campestre que contém a primeira parte de No caminho de Swann, e ainda mais por ela parecer ancorada na tradição pela sua linguagem, que ama dar a certos termos seu sentido antigo. Em Paris, ela é mais que uma simples doméstica: desempenha um papel nas relações mantidas por outros personagens. Possui a religião do dinheiro, muito mais do que a da posição social, uma das razões pelas quais ela não gosta de Albertine, que não é uma jovem rica. Sua perspicácia fez-lhe adivinhar os sentimentos dolorosos que a jovem suscita no coração do herói.

A coexistência de afetos ambivalentes, como a bondade e a crueldade, o amor e o desprezo que ela manifesta alternadamente pela auxiliar de cozinha, por Albertine ou por seus patrões faz dela um personagem complexo.

(Michel Erman, Em busca do tempo perdido. Dicionário de nomes e lugares, trad. Carla Silva, Biblioteca Azul, 2015, p. 46-47)

terça-feira, 15 de outubro de 2024

O milagre de Petrônio


Milagre, porque o Satiricon, à primeira vista, parece ter sido escrito por ocasião de alguma viagem no tempo: diríamos que é um romance realista burguês que surgiu em plena Antiguidade escravagista. Biografia quase balzaquiana do parvenu Trimalcião, negociante enriquecido, psicologia nietzschiana do grupo dos libertos, com seu ressentimento, sua sobrecompensação do desprezo de classe, seu desdém ciumento pelos outros grupos sociais... Parece milagre mas não é, e o Satiricon não é um romance: é uma sátira menipéia (cf. Auerbach, Mimesis, Paris, Gallimard, 1969, p. 35 e N. Frye, Anatomie de la Critique, trad. Durand, Gallimard, 1969, p. 376). Petrônio não constrói personagens com uma consistência balzaquiana: ele capta no ar, no fio da vida cotidiana, uma película superficial, a das conversas, das opiniões ridículas e reveladoras, das entonações e expressões que revelam todo um mundo numa frase; é a arte de comédia de costumes ou de teatro de "revista"; esta arte se interessa pelos tipos sociais e recenseia as excentricidades, bem como os tipos "morais", o Avaro, o Distraído, o Soldado Fanfarrão. É uma arte mimética, uma arte do "rôle de composition" e não existe grande distância entre Petrônio e Plauto.

Esta arte de caricaturista decepcionaria, se a julgássemos pelo romance moderno: o Satiricon daria uma impressão de negligência, de repetição (a refeição na casa de Trimalcião é interminável), de não ter nexo; mas Ubu Rei também. O desdém evidente que Petrônio sente pelos libertos que coloca em cena não é um desprezo social que tinha por eles quando escrevia; certamente, devia considerá-los como indivíduos presunçosos e subalternos, mas, se o Satiricon é satírico, não é porque Petrônio pensa isso deles, mas porque escreve uma sátira. O romance burguês não é satírico: é sério, isto é, não é nem épico ou trágico, nem cômico ou satírico; mas, como diz Auerbach, a Antiguidade ignora o sério: para falar de temas "realistas", ela só conhece o tom satírico, e não o tom sério e neutro do romance burguês; ela só pode falar de temas "grosseiros" zombando deles. 

O que atraiu o escritor Petrônio não foram os libertos na relação que mantinham com o grupo social ao qual pertenciam ele mesmo e seus leitores escolhidos: foi esta sua psicologia tão particular, um prato cheio para um caricaturista. O que permanece único é o talento de Petrônio para discernir e traduzir esta psicologia tão moderna e tão estranha às categorias mentais da Antiguidade; se Petrônio em nada anuncia Balzac e Zola, em pequena escala ele anuncia a visão psicológica da humanidade e do ressentimento que aparece em Nietzsche ou Dostoiévski.

(Paul Veyne, A elegia erótica romana: o amor, a poesia e o Ocidente, trad. Milton Meira, Brasiliense, 1985, p. 122, nota 49)

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Almost no Greek



1) Em 20 de janeiro de 1965, Arnaldo Momigliano dá uma conferência sobre Vico no Instituto Warburg (publicada no ano seguinte em History and Theory). Resgata dois termos centrais para a Scienza Nuova: "bestioni" e "eroi", ou seja, de certa forma, "plebeus" e "patrícios" (Vico está discutindo as leis agrárias da Roma primitiva). Momigliano, no percurso da conferência, comenta uma série de idiossincrasias de Vico: afirma que ele tinha uma capacidade "quase infinita" para citações errôneas e desleixadas (algo compreensível para alguém que trabalhava rodeado por seus "oito filhos napolitanos", escreve Momigliano, além dos visitantes frequentes); afirma também que Vico não lia inglês ou francês, além de não ter mais do que os rudimentos do grego, o que limitava sensivelmente sua bibliografia ("He had almost no Greek, and his knowledge of Greek history was below the standards to be expected in a learned man of the XVIII century").

2) "Minha ignorância do grego é tão perfeita quanto a de Shakespeare", escreve Borges no verbete "Epidauro" de seu Atlas.

3) No ensaio de abertura de seu livro Grécia revisitada (São Paulo, Carambaia, 2022), Frederico Lourenço menciona um exemplar da Ilíada, em grego (um manuscrito da época bizantina), hoje conservado na Biblioteca Ambrosiana de Milão, que pertenceu a Petrarca: o poeta, contudo, "nunca leu o livro que considerava o mais precioso da sua biblioteca. E a razão é fácil de apontar: Petrarca não sabia grego. Embora se tenha esforçado já tardiamente para aprender a língua de Homero e Platão, nunca chegou a saber o suficiente para ler a Ilíada no original" (p. 23).

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

La Castañeda


1) É interessante pensar a respeito das associações possíveis entre o romance de Cristina Rivera Garza e o trabalho de Georges Didi-Huberman sobre Charcot e o asilo La Salpêtrière: Nadie me verá llorar, o romance, foi publicado em 1999; Invention de l'hystérie:Charcot et l'iconographie photographique de la Salpêtrière, o trabalho de Didi-Huberman que emerge tanto de Freud quanto de Michel Foucault, é de 1982.

2) O romance de Rivera Garza é a transformação em narrativa do seu trabalho na tese de doutorado, dedicado ao hospital psiquiátrico "La Castañeda", na Cidade do México ("La Castañeda fue el centro psiquiátrico más grande de México hasta la segunda mitad del siglo XX", é o que diz o início do verbete da Wikipedia, completando: "La inauguración fue realizada por Porfirio Díaz en 1910 y su demolición se efectuó en 1968. Durante todo su período de funcionamiento el manicomio dio atención a más de 60 mil pacientes").

3) A potência do olhar em seu cruzamento com o desejo, as normas, as interdições e a dialética tensa entre repulsa e atração (que o próprio Foucault analisou na sua História da sexualidade) são elementos centrais tanto para o romance de Rivera Garza quanto para o estudo de Didi-Huberman. Não é por acaso que Rivera Garza coloca como protagonista do relato (ao lado da "mulher fatal", Matilda Burgos, a prostituta que se transforma em "louca", tendo sido, muito antes, no interior do México, uma menina que trabalhava nos campos de colheita da baunilha) um fotógrafo decadente que, em fim de carreira, se debruça sobre uma última tarefa: fotografar as internas do La Castañeda.

sábado, 28 de setembro de 2024

O horror de Marte

Virgílio entre Clio, musa da História,
e Melpomene, musa da Tragédia (séc. III d.C.)


1) Se é possível reconhecer em Guerra, de Céline, a trajetória de um soldado que se sente jogado para lá e para cá, em um encadeamento de cenas que diz respeito mais àquilo que veio depois da guerra, é possível reconhecer também um ponto de contato com Virgílio e com a Eneida, que, afinal de contas, é a história de um guerreiro que foge de sua cidade (Troia) destruída, encontrando pelo caminho os mais variados personagens (um paralelo com outro livro de Céline, De Castelo em Castelo, é possível). 

2) Iniciada em 29 a. C. e publicada dez anos depois, logo após a morte de Virgílio, a Eneida é não apenas uma sorte de arquivo de mitos e personagens, mas é também uma obra que funciona dentro de uma constelação (assim como Joyce só pode pensar o Finnegans Wake depois do Ulysses): depois das Bucólicas, canções da flauta suave, e depois das Geórgicas, canções dos trabalhos da terra, Virgílio está pronto para a Eneida, que é um pouco de tudo, mas é, sobretudo, a canção da fundação de Roma pelas mãos um guerreiro em fuga que leva, para sempre, a guerra consigo.

3) Uma coisa interessante da Eneida é que ela começa com quatro versos que, a princípio, não fazem parte do poema em si - são versos introdutórios nos quais o próprio Virgílio, de certa forma, aparece: Ille ego qui, ou seja, "Eu sou aquele que..."; a partir dessa introdução, Virgílio fala de suas canções anteriores (precisamente as Bucólicas e as Geórgicas), afirmando que chegou a hora de falar da guerra: at nunc horrentia Martis, "mas agora o horror de Marte" (os quatro versos foram conservados pelos gramáticos Donato e Sérvio, do século IV, mas foram eliminados de alguns códices).

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Guerra



1) Toda a história ao redor da publicação de Guerra, de Céline, é impressionante: décadas depois da escrita, décadas depois das guerras (tanto a Primeira, na qual Céline se feriu, quanto a Segunda, na qual atuou como colaborador/simpatizante nazista), décadas depois do roubo dos manuscritos, o livro ressurge, os manuscritos são decifrados e uma edição é feita, primeiro na França e, agora, no Brasil (tradução excelente de Rosa Freire d'Aguiar). Apesar da brevidade, Guerra mostra o mesmo Céline dos grandes livros - Morte a crédito, De castelo em castelo e assim por diante: a intensidade do estilo, a força escatológica e desencantada das imagens.

2) O ponto central do romance é a cabeça do seu protagonista, Ferdinand - o que não deixa de ser relevante e representativo da poética de Céline como um todo, muito dependente da fabulação maníaca dessa "cabeça", dessa mente, dessa imaginação tão singular. Existe um fato concreto que condiciona essa elaboração a partir da cabeça, da mente e da imaginação: Ferdinand é ferido na guerra (exatamente como o foi Céline, no dia 27 de outubro de 1914, em Poelkapelle, Bélgica), no braço e na cabeça, por conta de uma explosão. "Peguei a guerra na minha cabeça", ele escreve; "Ela está trancada na minha cabeça" (o que faz pensar nas Memórias de um doente dos nervos, de Daniel Paul Schreber, e na gravura que faz Jan Peter Tripp - como conta Sebald - da cabeça de Schreber povoada por "monstros"). 

3) Já no final do romance, por exemplo, Ferdinand reitera os efeitos do ferimento sobre sua vida pós-guerra: "Era preciso fazer o enorme esforço de não ceder à angústia de não poder dormir, nunca mais, por causa dos zumbidos que nunca terminarão, nunca a não ser junto com a vida. Peço desculpas. Insisto mas é a minha melodia. Azar, não fiquemos tristes" (Cia das Letras, 2024, p. 123). A falta de sono, de certa forma, gera o estilo peculiar do narrador (como a asma em Proust, segundo Walter Benjamin); o "zumbido" é projetado em direção ao futuro - o narrador tem certeza que o acompanhará para sempre, já que a vida, a partir do ferimento, está indissociavelmente ligada ao trauma (só a morte pode fazer algo a respeito); por fim, a "melodia": eu "insisto", diz o narrador, mas essa ladainha é "minha melodia", ou seja, sua poética, seu estilo, seu "canto" (pela via de Homero (a guerra!), "Canta para mim, ó Musa"...).

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Adorável Stendhal



1) Frequentemente, em seus escritos sobre Stendhal, Leonardo Sciascia utiliza uma frase de Paul Valéry: "on n'en finirait plus avec Stendhal", ou seja, Stendhal é inesgotável e dele nos ocuparemos para sempre. Essa frase de Valéry é a penúltima de um ensaio publicado como prefácio à edição de Lucien Leuwen (romance inacabado escrito por Stendhal em 1834, publicado postumamente em 1894), contido em um dos volumes das Obras Completas de Stendhal publicadas em 1926 (o texto de Valéry foi republicado em 1937 na Nouvelle Revue française, revista fundada em 1908).

2) Em 2003, a editora Adelphi lança na Itália o livro L'adorabile Stendhal, que reúne vários textos de Sciascia sobre Stendhal, espalhados por diversos livros (trabalho de pesquisa e compilação de Maria Andronico Sciascia, viúva do escritor). Em um dos textos do volume, intitulado "Stendhal e a Sicília", Sciascia apresenta um movimento de leitura que, nas suas mãos, é sempre produtivo: rastreia os romances de escritores sicilianos realizados sob o signo de Stendhal.

3) O primeiro autor citado por Sciascia é Giovanni Verga: sua novela Camerati, de 1883, é uma "explícita homenagem a Stendhal": a batalha de Custoza (24 de junho de 1866, Terceira Guerra de Independência Italiana) é apresentada por Verga pelo ponto de vista de um soldado, muito nos moldes da batalha de Waterloo na Cartuxa de Parma. Sciascia fala ainda de Lampedusa, que mostra seu amor por Stendhal de forma explícita nas suas Lezioni su Stendhal e, de forma implícita, em seu grande romance Il gattopardo (de 1958).

sábado, 14 de setembro de 2024

Arqueologia do descontentamento



1) Existe um sentimento de descontentamento diante da própria época, diante da própria contemporaneidade, que funciona como um fio que une e articula uma série de obras e poéticas: é possível começar com Leonardo Sciascia que, apesar de ligado à política (portanto, aos debates e às burocracias de sua época), exaltava outros tempos, outros gestos, outros interesses e sentimentos (aqueles de Voltaire, por exemplo), sempre manifestando descontentamento com o embrutecimento que diagnosticava na sociedade ao seu redor (o caso Aldo Moro é paradigmático dessa situação).

2) A partir de Sciascia, é possível prosseguir em direção àquela que é sua principal referência, Stendhal, também ele marcado pelo cultivo de um desajuste com sua própria época (e, assim como Sciascia, um descompasso que é ambivalente: Stendhal exaltou seu contemporâneo Napoleão e todas as mudanças que o Imperador desencadeou), buscando nos arquivos italianos os traços luminosos de um passado que ele reconhecia como mais condizente com sua sensibilidade (Crônicas italianas); assim como Sciascia leu Stendhal com devoção, o mesmo fez Stendhal com Montaigne: é do inventor do ensaio que fez a potência do "eu", a capacidade virtualmente infinita de dar voltas ao redor dos próprios medos e ambições, capacidade essa que é o centro da invenção ficcional do próprio Stendhal (Souvenirs d'égotisme).

3) Montaigne também é um bom exemplo da tensão entre o pertencimento do artista à própria época e seu desejo de ser sozinho, de estar isolado - Montaigne que foi prefeito de Bordeaux entre 1580 e 1581 e que também mandou construir uma torre para melhor trabalhar em solidão. E, a partir de Montaigne, é possível pensar em Plutarco, uma de suas referências constantes: vive no Império Romano (nasce por volta de 46, morre por volta de 120), mas escreve em grego; foi sacerdote, magistrado e uma espécie de diplomata; sempre atento aos meandros políticos do presente imediato, mas permanentemente ligado às camadas metafísicas da experiência (falava em Alma e em Providência).

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Richepin


"No mais das vezes, Léon Marcia permanece silencioso e imóvel, mergulhado nas lembranças: uma delas, que emerge do mais profundo de sua prodigiosa memória, há vários dias o obceca: uma conferência que, pouco antes de morrer, Jean Richepin viera fazer no sanatório; o tema era a Legenda de Napoleão. Richepin contou que, quando era pequeno, costumava-se abrir uma vez por ano o túmulo de Napoleão, diante do qual desfilavam os inválidos para ver a face do imperador embalsamado, espetáculo mais propício ao terror que à admiração, pois o rosto estava inchado e verde; daí talvez a razão de a abertura do túmulo haver sido suprimida logo após. Mas Richepin teve a oportunidade excepcional de vê-lo, empoleirado no braço do tio-avô que servira na África e para quem o comandante dos Inválidos mandara abrir especialmente o túmulo" (Georges Perec, A vida: modo de usar, trad. Ivo Barroso, Cia das Letras, 1991, p. 188-189).

"Tome agora o tempo e o espaço. Suponhamos que uma criança lhe diga: 'Eu quero ser Napoleão na Batalha de Wagram', o senhor lhe diz: 'É impossível, ele está morto'. 'Que diferença isto faz?', insiste ela. Então o senhor diz: 'Ora, você sabe, isso foi há muito tempo. O corpo de Napoleão se decompôs. Você não poderá encontrá-lo'. Se a criança é esperta, dirá: 'Suponha que reunamos de novo todos os átomos de seu corpo e seu sistema mental; então poderíamos ver Napoleão em Wagram? Por que não?'. 'Sim, isso é possível de modo empírico'. A criança diz a seguir: 'Quero ver Wagram no passado: poderíamos em princípio fazê-lo reviver? Através de uma nova invenção associar de novo os átomos e moléculas dispersos?'. O senhor fala então: 'Você não pode viajar no passado'. 'Por que não?', pergunta ela. Um positivista diria que 'viajar' é uma péssima metáfora. Tudo o que entendemos por tempo é 'antes', 'depois', 'ao mesmo tempo'. Uma entidade tal que o 'tempo' no qual você poderia viajar não existe. O senhor utiliza incorretamente a linguagem. A criança pergunta agora: 'Se é um problema de linguagem, por que não mudá-la? Então eu poderia ver Napoleão em Wagram?'" (Isaiah Berlin: com toda liberdade - entrevistas com R. Jahanbegloo, trad. Fany Kon, Perspectiva, 1996, p. 171-172)

"O mito napoleônico tem realmente dado origem às mais espantosas histórias, sempre reputadas como baseadas em fatos irrefutáveis. Kafka, por exemplo, conta que a 11 de novembro de 1911 assistiu a uma conferência sobre o tema 'La légende de Napoléon', no Rudolphinum, em que um tal Richepin, cinquentão encorpado de bela figura, cabelo ondulado largo no estilo Daudet, bem colado à cabeça, dissera, entre outras coisas, que antigamente costumavam abrir o túmulo de Napoleão uma vez por ano para que os Invalides pudessem desfilar contemplando o imperador embalsamado. Mas depois o rosto foi ficando esverdeado e manchado e interromperam o costume da abertura anual do túmulo. Segundo Kafka, o próprio Richepin vira o imperador morto, quando criança, no colo de seu tio-avô que fora militar na África e para o qual o comandante mandara abrir propositadamente o túmulo. A entrada do diário de Kafka prossegue dizendo que, a concluir a conférence, o orador jurou que mesmo dali a mil anos cada partícula de pó do seu cadáver, se tivesse consciência, estaria pronta a responder à chamada de Napoleão" (W. G. Sebald, "Pequena excursão a Ajácio", Campo santo, trad. Telma Costa, Lisboa: Quetzal, 2014, p. 12).


quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Kafka e os oradores


Um dos problemas principais enfrentados por Kafka em seus Diários (e também em sua obra narrativa de uma forma geral) é aquele da exposição do corpo individual diante do olho social e seu julgamento (seus ritos, suas interdições). Daí surge a ênfase de Kafka, no diário, na vida dos atores e seu interesse no relato das performances de profissionais bem sucedidos e, principalmente, de palestrantes (ele vai, com muita frequência, ver apresentações de trupes itinerantes - de teatro judaico, por exemplo -; vai também frequentemente assistir conferências em centros culturais - também alguns deles judaicos). Muitas das partes mais elaboradas do diário envolvem o registro do contato com oradores carismáticos – Rudolf Steiner, Karl Kraus, o militar francês Richepin, que viu o cadáver de Napoleão quando criança. Kafka mede a si mesmo e a seus personagens a partir do exemplo – vocal, corporal, aurático – desses indivíduos sedutores e estranhos (é já canônica a cena de Kafka lendo seus manuscritos para os amigos).

(o título desta entrada é uma referência ao excelente livro de Michael Baxandall, Giotto e os oradores)

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Sontag lê Leiris




1) Em uma carta enviada a Susan Sontag em 14 de janeiro de 1966, Joseph Cornell conta a ela que estava lendo com atenção e prazer seu livro Contra a interpretação, especialmente o ensaio dedicado a Michel Leiris - a resenha que Sontag havia feito ao livro que, em inglês, se chama Manhood, originalmente L'Âge d'homme, de 1939. Cornell não aprofunda, não diz exatamente quais as partes do ensaio que mais o tocaram (embora ele esteja claramente envolvido em uma cena de leitura fortemente carregada de reconhecimento e espelhismo), mas é possível inferir que se trate dos momentos em que Sontag fala que, em Leiris, mesmo os sucessos parecem fracassos e que ele tentava "eliminar" o próprio corpo (juízos que se aplicam perfeitamente à poética de Cornell).

2) Uma triangulação surpreendente: Cornell lendo Leiris através da leitura de Sontag. O fato é que Cornell era muito atraído pela literatura francesa - foi uma das poucas disciplinas nas quais se destacou quando frequentou o colégio interno e, por conta disso, a literatura francesa vai acompanhar Cornell ao longo de toda a vida (quando busca livros nas ruas, nas bancas, nos sebos; quando busca inspiração para suas caixas e colagens). Leiris nasce em 1901; Cornell, em 1903; Sontag, em 1933.

3) É curioso, contudo, notar que uma das aproximações que faz Sontag é entre Leiris e Norman Mailer - ambos envolvidos em uma "laceração" e "exposição" de suas subjetividades (o ensaio é de 1964, o que explica, em parte, a aparição de Mailer - cuja irrelevância, hoje, sessenta anos depois, é diretamente proporcional à pertinência e frescor da obra de Leiris). Algumas linhas depois dessa aproximação, já no fim do ensaio, Sontag toca um ponto importante: a conexão entre o livro de Leiris e seu contexto imediato de aparição, as vanguardas do início do século XX, a cena modernista - é esse ambiente que faz o livro de Leiris ser errático e inconcluso, pois deve ser lido como um dos elementos de um "projeto de vida", dentro do qual a literatura é uma "ação", que "leva a outras ações", escreve Sontag.   


quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Escritura documental


"En un mundo en que nos queda claro que toda literatura es literatura comprometida - en el sentido de que sus estrategias y operaciones confirman o confrontan el mundo en que esta se produce - y que, lejos de ser una vocación solitaria, la escritura es un trabajo entre muchos con el bien común que es el lenguaje, resul- ta difícil aceptar sin chistar el carácter supuestamente no mediado del testimonio. 

Mi énfasis en el documento - soporte material de un trabajo colectivo que con frecuencia involucra, al menos en el archivo institucional, la participación del Estado - cuestiona el carácter meramente oral y completo en sí, acabado en sí, de las declaraciones de los testigos presenciales de los hechos, y visibiliza, problematizando, la participación oscilante, desigual, acrónica, de los múltiples agentes que lo configuran. Y por eso a los libros que he escrito con base en noriginales, incluido y sobre todo El invencible verano de Liliana, los denomino escritura documental, y no literatura testimonial: artefactos que quieren cuestionar y producir (producir porque cuestionan) presente contra el cerco individualista de la imaginación neoliberal"


(Cristina Rivera Garza, "Los noriginales: desedimentar un feminicidio", Escrituras geológicas, Madri: Iberoamericana, 2022, p. 187)

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Ex Ponto


Joseph Brodsky, nascido em 1940, foi condenado pelas autoridades soviéticas, em 1964, a uma pena de trabalhos forçados - foi enviado para um campo próximo da cidade de Arcangel, distante pouco mais de mil quilômetros de São Petersburgo. Em 1965, já cumprindo a pena, ele escreve um poema intitulado "Ex Ponto (A última carta de Ovídio para Roma)", fazendo referências às cartas "pônticas" de Ovídio (Epistulae ex Ponto), escritas no exílio no "Ponto Euxino", território às margens do Mar Negro, extremo leste do domínio romano. O pedaço de um dos versos desse poema de Brodsky (que retiro e traduzo da versão em inglês que está aqui) diz:

aqui é o fim do mundo e, entre suas posses, não existe a liberdade

O mapa acima mostra uma reconstrução possível do percurso de Ovídio em direção ao exílio (retirado deste site): em 8 d. C. ele é condenado pelo imperador Augusto ao degredo em Tômis, na Trácia (hoje Constança, na Romênia); sai de Roma e pega uma embarcação em Brindisi, chegando na costa do que hoje é a Albânia e descendo o litoral da Grécia (os primeiros mil quilômetros são ultrapassados na altura da ilha de Zaquintos); depois da circunavegação da Grécia, passando por Monemvasia, no extremo sul, Ovídio chega a Corinto (onde completa, aproximadamente, dois mil quilômetros de percurso), de onde parte para uma das ilhas do mar Egeu, talvez Naxos; de Naxos, Ovídio parte para outra ilha, Imbros (hoje Turquia), e desta para uma terceira ilha, Samotrácia, de onde parte para desembarcar em Alexandrópolis - onde começa um longo trecho por terra até Bizâncio (hoje Istambul) (o trecho de Corinto até Bizâncio leva o percurso total para além dos três mil quilômetros). De Bizâncio, já no Mar Negro, Ovídio provavelmente navega pela costa até chegar em Tômis.

domingo, 4 de agosto de 2024

Deserto, fantasma



1) Outro aspecto sobre o uso compartilhado de Benjamin por parte de Ben Lerner e Giorgio Agamben (de um lado, o romance 10:04, de outro, o livro A comunidade que vem) diz respeito à relação que ele, Benjamin, estabelece entre duas figuras literárias do início do século XX: Franz Kafka e Robert Walser. Em A comunidade que vem, Agamben recorre aos dois escritores para falar do "limbo", da suspensão, da instabilidade de qualquer posição de certeza: Walser cria personagens extraviados, para além da perdição e da salvação; e na seção VIII do livro, intitulada "Demoníaco", Agamben aproxima os dois: Kafka e Walser nos apresentam um mundo de onde o mal na sua suprema manifestação tradicional, o demoníaco, desapareceu. 

2) Escreve Lerner no início da quarta seção de 10:04, quando o narrador chega em uma residência literária no Texas: "Eu me sentia um fantasma no híbrido verde, dirigindo lentamente por Marfa naquela escuridão. Era a minha primeira noite ali: Michael, o encarregado das casas da residência literária, que também era pintor, me pegara no aeroporto de El Paso naquela tarde e me levara num silêncio cordial durante três horas através do alto deserto" (p. 181). (essa auto-representação do narrador como fantasma o aproxima não apenas do limbo de Kafka e Walser tal como pensado por Agamben, mas também de toda a discussão que faz Cristina Rivera Garza sobre Rulfo, o deserto e Comala como limbo em seu livro Había mucha neblina o humo o no sé qué).

3) É possível ainda comentar que a parábola que Benjamin escuta de Scholem e conta para Bloch (resgata por Agamben e, depois, utilizada como epígrafe por Ben Lerner em 10:04) é retomada e reutilizada por Benjamin em seu ensaio sobre Kafka: a parábola não aparece exatamente, mas o tema messiânico está no ensaio, bem como a ideia de uma repetição do mundo que envolva uma leve diferença, uma leve mudança.   

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Idem, ipsum



1) Um ponto decisivo de aproximação entre Agamben e Lerner está exposto pelo primeiro na segunda seção da segunda parte de A comunidade que vem (seção intitulada "O irreparável"): Agamben afirma que muitas confusões em filosofia nascem da confusão entre "a mesma coisa" (idem) e "a própria coisa" (ipsum). Para Agamben, o pensamento se ocupa da "própria coisa" e não da "identidade", da aproximação sem resíduos oferecida pelo idem. A "própria coisa", escreve Agamben, não é uma "outra coisa" que transcendeu a coisa, mas também não é simplesmente a "mesma coisa". A coisa, nessa situação, força um deslocamento em direção a ela própria, em direção ao seu ser tal qual é.

2) Com essa argumentação em mente (Agamben declara logo no início de "O irreparável" que a seção é toda um comentário do § 9 de Ser e Tempo, de Heidegger, e da proposição 6.44 do Tractatus de Wittgenstein), é possível retomar a epígrafe de 10:04 por uma nova ótica: "tudo igual, só um pouco diferente", para além da parábola de Benjamin/Scholem/Bloch, seria também um comentário à relação entre o idem e o ipsum, entre "a mesma coisa" e a "própria coisa". Trata-se, no romance, de multiplicar futuros possíveis que sejam não idênticos, mas deslocamentos da coisa em direção a ela própria, já que não se trata de uma investigação (romanesca, ficcional) sobre a "identidade" (idem), mas sobre as potencialidades infinitas da "coisa" (da própria literatura ou, ainda, do próprio da literatura).

3) A cada vez que o romance tenta ser ficção ou literatura, fracassa e inicia novamente, carregando consigo, na repetição, a tentativa frustrada do passado. A atualização da tentativa, portanto, em 10:04, é o modo da narrativa mostrar como tudo pode ser igual, apenas um pouco diferente: não se trata de definir uma essência, mas de jogar com possibilidades; não se trata de possessão, mas de limites; não se trata de pressupostos, mas de exposições. 


segunda-feira, 29 de julho de 2024

Dostoiévski na Lua


Sobre os comentários de Wittgenstein sobre a viagem à Lua, uma nota relacionada, vinda de Bakhtin:

"Quanto à variedade de gênero das 'viagens fantásticas', aplicada em O sonho de um homem ridículo, é provável que Dostoiévski conhecesse a obra de Cyrano de Bergerac, O outro mundo ou História cômica dos Estados e Impérios da Lua (1647-1650). Aqui há uma descrição do paraíso terrestre na Lua, de onde o narrador foi expulso por desrespeito. Em sua viagem pela Lua ele é acompanhado pelo 'demônio de Sócrates', o que permite ao autor introduzir o elemento filosófico (no espírito do materialismo de Gassendi). Pela forma exterior, a obra de Bergerac é um autêntico romance filosófico fantástico.

É interessante a menipeia de Grimmelshausen Der fliegende Wandersmann nach dem Mond (aproximadamente 1659), cuja fonte geral foi um livro de Cyrano de Bergerac. Aqui aparece no primeiro plano o elemento utópico. Retrata-se a excepcional pureza e a justeza dos habitantes da Lua, os quais desconhecem os vícios, os crimes, a mentira, em seu país a primavera é eterna, eles vivem muito e comemoram a morte com um banquete alegre em círculos de amigos. As crianças que nascem com inclinações para o vícios são enviadas à Terra para evitar que corrompam a sociedade. Indica-se a data precisa da chegada do herói à Lua (como no sonho de Dostoiévski)"

Bakhtin, Problemas da poética de Dostoiévski, trad. Paulo Bezerra, Forense Universitária, p. 170)

quarta-feira, 17 de julho de 2024

Selenografia onírica



1) Ainda no fragmento de número 106 do seu livro Sobre a certeza, no qual Wittgenstein apresenta o breve relato de uma criança que escuta de um adulto que este viajou à Lua, é possível observar ainda outros dois elementos dignos de nota: a criança insiste e diz a ele (diante do argumento de que é impossível chegar à Lua) que pode existir um modo de chegar lá; diante disso, Wittgenstein apresenta duas possibilidades para que isso (a viagem à Lua) aconteça: adultos que pertençam a uma "tribo" que tem entre suas crenças a crença de que pessoas às vezes vão até a Lua, acrescentando ainda que isso pode ocorrer em seus sonhos.

2) Na conversa hipotética com a criança, portanto, Wittgenstein fala de "tribos" e de "sonhos", ou seja, em certo sentido, de experiências "arcaicas" da comunidade e da natureza e, em paralelo, da emergência do inconsciente e de seus processos e estratégias. Nisso tudo também é possível ver um pano de fundo de questões levantadas por Wittgenstein em outros momentos: em 1931, Wittgenstein começa a escrever Observações sobre O Ramo de Ouro de Frazer (que sairá só depois de sua morte, em 1967); alguns anos depois, em 1938, em Cambridge, Wittgenstein monta um curso sobre estética para um grupo pequeno de estudantes - nessas aulas, vai comentar suas leituras de Freud, especialmente no que diz respeito às interpretações de sonhos.

3) Um dos alunos desse pequeno grupo em Cambridge era Rush Rhees, amigo de Wittgenstein que, mais tarde, organizará, a partir de suas anotações, o ensaio "Conversations on Freud" (que pode ser encontrado no livro realizado, postumamente, a partir das notas feitas no curso de 1938). Ray Monk, biógrafo de Wittgenstein, conta que, em 1942, o filósofo vai visitar o amigo em sua casa depois de uma operação (extração de um cálculo biliar: por desconfiança dos médicos ingleses, Wittgenstein não quis tomar anestesia geral e acompanhou toda a operação utilizando um espelho); apesar de, nessa época, estar trabalhando com filosofia das matemáticas, as conversas de Wittgenstein com Rhees são sobre Freud e a interpretação dos sonhos (assim como Freud, Wittgenstein usava os próprios sonhos como material de discussão).

quinta-feira, 11 de julho de 2024

Viagem à Lua


1) No fragmento de número 106 do seu livro Sobre a certeza, Wittgenstein apresenta o breve relato de uma criança que escuta de um adulto que este viajou à Lua. O ponto central da fábula de Wittgenstein é que ele precisa convencer a criança que é impossível viajar à Lua: ela está muito distante, não é possível voar até ela e assim por diante. Todo o nosso sistema da física nos impede de acreditar nisso, escreve Wittgenstein, acreditar que é possível ir à Lua. Ele elenca impossibilidades: a força da gravidade, a falta de atmosfera. 

2) Sobre a certeza foi o último esforço filosófico de Wittgenstein. As anotações começam em 1949 e vão até 1951, ano de morte de Wittgenstein. Ele escreveu parte das notas entre abril de 1950 e fevereiro de 1951, quando morou em Oxford, na casa de sua aluna e futura editora Gertrude Anscombe (que será uma das responsáveis por Sobre a certeza depois da morte do filósofo). A última anotação de Wittgenstein é do dia 27 de abril de 1951 (ele havia feito aniversário no dia anterior, 26 de abril, 62 anos). Ele morre dois dias depois, na casa do seu médico, Edward Bevan (foi para a esposa deste, Joan, que Wittgenstein disse suas últimas palavras: Tell them I've had a wonderful life).

3) Wittgenstein, que gostava muito de ir ao cinema (e sentar na primeira fila, como informa o biógrafo Ray Monk), talvez tenha visto Viagem à Lua, de Méliès. Outro aspecto interessante na relação de Wittgenstein com uma (possível, impossível?) viagem à Lua é sua formação como engenheiro: ele chega à Victoria University of Manchester em 1908 com a intenção de estudar, entre outras coisas, aeronáutica. De certa forma, quando ele conta a fábula da criança em Sobre a certeza, não oferece um comentário exclusivamente da posição de filósofo, mas também - ainda que indiretamente - da posição de engenheiro (trata-se, para ele, também de uma impossibilidade mecânica: como voar até lá, que tipo de propulsão seria necessária, etc).   

sexta-feira, 5 de julho de 2024

"Tentei ler"


"Roland Barthes era um homem por quem eu tinha amizade, mas que jamais consegui admirar. Parecia-me que ele assumia sempre a mesma postura professoral, muito controlada, rigorosamente partidária. Uma vez encerrado o ciclo 'Mitologias', não tive mais condições de lê-lo. Depois de sua morte tentei ler seu livro sobre a fotografia, até hoje não consegui, exceto um capítulo muito bonito sobre a mãe. Essa mãe venerada, que foi sua companheira e a única heroína do deserto de sua vida. Em seguida tentei ler Fragmentos de um discurso amoroso, mas não consegui. É muito inteligente, é claro. Apontamentos amorosos, é, é isso, amorosos, eximindo-se daquele jeito, sem amar, mas coisa alguma, parece-me, nada, um encanto de homem, um encanto mesmo, de todo modo. E escritor, de todo modo. Aí está. Escritor de uma determinada escritura, imóvel, regular"

(Marguerite Duras, A vida material, trad. Heloísa Jahn, Globo, 1989, p. 38)

segunda-feira, 24 de junho de 2024

Angelus McFly



1) No final do seu romance 10:04, Ben Lerner retorna ao começo e explica o texto que estava na abertura, na epígrafe - uma espécie de performance hermenêutica que reitera o ponto principal do livro: a ideia de que o sentido nunca se oferece completamente e, nas ocasiões em que se oferece (mesmo que de forma provisória e incompleta), o faz sempre retrospectivamente ("entender" é um jogo com o tempo: estar no futuro que se transformou em presente e, dessa posição impossível, resgatar do passado todos os "futuros possíveis", todas as projeções e tentativas que foram planejadas/esboçadas, promovendo uma comparação com esse futuro que se transformou em presente). Ao reconstruir rapidamente a genealogia da epígrafe (história encontrada em um livro de Agamben, geralmente atribuída a Walter Benjamin), Lerner força o leitor a uma releitura da epígrafe e, por que não, do romance todo. 

2) Lerner, evidentemente, não dá a informação completa - ele se limita a colocar em circulação essas duas referências, Agamben e Benjamin, omitindo outros dois nomes mencionados por Agamben em A comunidade que vem: Benjamin ouviu uma "parábola sobre o reino messiânico" de Gershom Scholem, contou para Ernst Bloch e este incorporou a história ao seu livro Spuren ("vestígios", "traços", "pistas"), de 1930. Mais uma vez a cronologia é embaralhada e a própria manifestação de um exemplo (uma história sobre a criação discursiva de um mundo possível) carrega em si uma sorte de versão resumida do argumento: o passado é aquilo que acontece quando narramos, na posição impossível do presente, os vários futuros outrora imaginados.

3) "Tudo será como agora, só que um pouco diferente": Lerner usa a frase final da história que está na epígrafe ao longo de todo o romance, voltando à fonte (Walter Benjamin - embora não seja exatamente uma "volta", já que sabemos apenas no final ("Agradecimentos") que Benjamin está na epígrafe, mesmo que não-nomeado) no momento em que cita o Angelus Novus de Klee das teses sobre o conceito de história - imagem que é aproximada, por Lerner, em seu romance, do personagem Marty McFly do filme De volta para o futuro (o anjo impelido para a frente, pelos ventos do progresso, de Benjamin, se transforma, no romance de Lerner, em uma figura do cinema, em algo que diz respeito diretamente à trajetória do narrador, a um filme da infância, etc).

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Do limbo


1) "Encontrei pela primeira vez o texto que uso como epígrafe", escreve Ben Lerner na seção de "Agradecimentos" do seu romance de 2014, 10:04, "no livro A comunidade que vem, de Giorgio Agamben, traduzido do italiano por Michael Hardt. É geralmente atribuído a Walter Benjamin". O texto da epígrafe de Lerner é o seguinte: "Os hassidim contam uma história que diz que no mundo por vir tudo será precisamente como é aqui. Como o nosso quarto é agora, assim será no mundo futuro; onde dorme o nosso filho agora, é onde dormirá também no outro mundo. E as roupas que vestimos neste mundo são as que também vestiremos lá. Tudo será como agora só que um pouco diferente" (10:04, trad. Maira Parula, Rocco, 2018, p. 5).

2) Já no começo de seu livro A comunidade que vem, de 1990, na segunda seção, intitulada "Do limbo", Agamben fala das crianças a partir de Tomás de Aquino (e comento a partir das crianças por conta do trecho da epígrafe de Lerner que fala sobre o sono do filho, algo que será importante ao longo do romance): Agamben comenta que o Doctor Angelicus do século XIII postulou que a pena das crianças não batizadas no limbo não poderia ser a mesma pena daqueles que sofrem no inferno - não será uma pena aflitiva, e sim uma pena privativa, ou seja, uma privação da visão de Deus (uma carenza, escreve Agamben, uma "carência", "falta" ou "vazio" que se expande infinitamente ao longo da eternidade).

3) Essas crianças sem batismo estão suspensas, congeladas em uma ambivalência (um momento específico como 10:04?): come lettere rimaste senza destinatario, escreve Agamben ("cartas sem destinatário"), questi risorti sono rimasti senza destino (eles estão "sem destino"). beati come gli eletti, né disperati come i dannati, essi sono carichi di una letizia per sempre inesitabile: nem eleitos, nem condenados, estão carregados de uma alegria que não acaba, que não se esgota (em termos mais literais, que não pode ser vendida). Um comentário sobre a palavra risorti, usada por Agamben para se referir às crianças no limbo: tem relação não apenas com os "ressuscitados", mas guarda também um contato etimológico com a ideia daqueles que dependem de certa jurisdição, ou que procuram refúgio ou asilo (ressort, ressortum, resortire).

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Ratos e vermes



Ainda em Crepúsculo dos ídolos, de Nietzsche, e nas notas do tradutor Paulo César de Souza, chama a atenção a recorrência de certos animais: na seção final do livro, "O que devo aos antigos", Nietzsche fala de Christian August Lobeck (1781 - 1860), filólogo clássico alemão, que, "com a venerável segurança de um verme que sempre viveu entre os livros, penetrou nesse mundo de estados misteriosos e se convenceu de que era científico, sendo leviano e pueril ad nauseam" (p. 104-105). Nas notas, o tradutor informa que Nietzsche "alude à expressão Bücherwurm ('verme de livros', 'traça'), que os alemães empregam também para designar os viciados em ler ou colecionar livros" (p. 129, n. 153).
*
Já no prólogo do livro, contudo, existe a aparição importante de um animal ou, ao menos, de uma metáfora que se sustenta sobre a imagem de um animal: Nietzsche escreve: "Fazer perguntas com o martelo e talvez ouvir, como resposta, aquele célebre som oco que vem de vísceras infladas - que deleite para alguém que tem outros ouvidos por trás dos ouvidos - para mim, velho psicólogo e aliciador, ante o qual o que queria guardar silêncio tem de manifestar-se..." (p. 7-8). Nas notas, o tradutor informa que a palavra "aliciador" é, no original, Rattenfänger, "apanhador de ratos": "Nietzsche se refere ao flautista de Hamelin (Rattenfänger von Hameln, em alemão), personagem de uma conhecida fábula medieval. Com exceção dos tradutores de língua inglesa e do italiano, que usaram pied piper e incantatore, os demais verteram literalmente a expressão. Nietzsche também a usa em Além do bem e do mal, seções 205 e 295, e A gaia ciência, seção 340" (p. 112, n. 4).

terça-feira, 4 de junho de 2024

Bom-mocismo


Crepúsculo dos ídolos foi o segundo dos cinco pequenos livros que Nietzsche escreveu em 1888, seu último ano de vida mental lúcida. Das suas dez seções, a última é a melhor: "O que devo aos antigos", uma mescla de comentários autobiográficos e análise de certos textos dos "antigos" (Salústio, Horácio, Tucídides). As notas do tradutor Paulo César de Souza (na edição da Companhia das Letras) deixam a experiência de leitura ainda melhor: quando Nietzsche fala que sempre buscou uma seriedade romana no estilo, "de aere perennius", a nota informa que o trecho em latim ("mais duradouro que o bronze") vem de uma ode de Horácio, um verso que diz "Ergui um monumento mais duradouro que o bronze", "uma das citações favoritas de Nietzsche", escreve o tradutor, que a usa tanto em Humano, demasiado humano quanto em Aurora (p. 128, n. 143).

*

Em alguns momentos, o tradutor brasileiro faz com que a leitura da edição brasileira seja também, simultaneamente, a leitura de várias outras traduções: na abertura das notas ao final do livro, o tradutor informa que consultou outras oito versões de Crepúsculo dos ídolos - uma portuguesa, uma brasileira, uma espanhola, uma italiana, uma francesa, uma estadunidense e duas inglesas. Por conta disso, algumas notas apresentam também as soluções dadas nessas outras oito versões: ao traduzir Biedermännerei como "bom-mocismo", o tradutor informa que as soluções alheias (na ordem) foram as seguintes: "as ingenuidades", "lengalenga dos bons homens", "la mojigatería", "l'atteggiamento benpensante", "la lourde honnêteté", "the Philistine moralism", "the philistinism", "the smugness" (p. 129, n. 151).

quinta-feira, 30 de maio de 2024

Amizade e segredo


1) Na tarde do dia 10 de novembro de 2001, um sábado, Jacques Derrida participou de um evento chamado "Vida depois da teoria", na Universidade de Loughborough, na Inglaterra. Na manhã daquele mesmo dia, ele havia dado uma conferência intitulada "Perjúrios", na qual falou, entre outras coisas, de Paul de Man. À tarde, ele responde perguntas; uma das perguntas diz respeito à amizade que Derrida dedica a De Man: "ele ainda é meu amigo", diz Derrida, "ele está morto, mas é através da morte, ou depois da morte, que a amizade, o teste da amizade, é demanded". É preciso decidir se a fidelidade é mantida quando a pessoa não está mais presente para "verificar ou responder", diz ainda Derrida (life.after.theory, ed. Michael Payne e John Schad, Continuum, 2003, p. 28).

2) Em seguida, Derrida começa pouco a pouco a aproximar Paul de Man da categoria de unheimlich, ou seja, de "estranho" ou "inquietante" (já que a palavra indica, simultaneamente, aquilo que é caseiro/familiar [heim] com aquilo que nega essa proximidade [un]). Paul de Man é, simultaneamente, o amigo e o estranho, o familiar e o inquietante (porque mentiu, ocultou, ao mesmo tempo em que foi aberto e sincero): "ele permaneceu um segredo para mim", diz Derrida (p. 34). 

3) Derrida diz ainda que tenta ler o das Unheimliche não apenas em Freud - a referência mais frequente quando se fala em estranho/inquietante -, mas também em Heidegger: em sua obra, diz Derrida, o termo é "muito presente" e em lugares where the stakes are very high. Derrida não entra em detalhes, mas diz que em seus seminários tenta rastrear os momentos em que Heidegger usa o termo, e são sempre the most decisive moments (os organizadores da coletânea insistem, no prefácio, que Derrida respondeu as perguntas sempre em inglês). O fato de Heidegger e Freud utilizarem o mesmo termo, diz Derrida, é significativo: é o "melhor conceito" para aquilo que resiste à "consistência" e à "identidade semântica".

segunda-feira, 27 de maio de 2024

A ira



1) Em seus Adágios, livro de retalhos, coleção de frases e máximas reunidas ao longo da vida, Erasmo de Roterdã apresenta o provérbio que diz "a ira envelhece tardiamente", Ira omnium tardissime senescit. É o oposto do famoso apotegma de Aristóteles, escreve Erasmo, que, como conta Diógenes Laércio (5, 18), quando questionado sobre qual coisa envelhece mais rapidamente, respondeu: "o benefício". Cícero, juntando ambas as sentenças, disse (Pro Murena, 42): "Aquilo que agrada será esquecido; o que desagrada será lembrado". 

2) O ponto principal do provérbio é expressar a ideia de que as pessoas lembram mais das injúrias do que dos benefícios. O provérbio grego, informa Eramos, parecer ser tirado de Sófocles, que em Édipo em Colono coloca essas palavras: "A ira não conhece a velhice, exceto a morte; a dor só não atormenta os sepultos". Enfim, a matéria da ficção desde os primórdios: indivíduos que carregam ao longo da vida não apenas as injúrias, mas também os equívocos, os traumas, os deslizes, as próprias falhas, remoendo infinitamente, desejando vingança, desejando que fosse possível voltar no tempo para fazer diferente e assim por diante (nesse sentido, é interessante pensar no uso que faz Coetzee de Sófocles - com um desvio significativo por Dostoiévski).

3) Erasmo, contudo, recua ainda um pouco mais - vai em direção a Homero, que funciona como o repositório-padrão. No livro IX da Ilíada, Erasmo encontra a história da deusa Ate, que tem o hábito de provocar tumultos entre os homens, "sendo dotada de olhos penetrantes e de pés velocíssimos". As Preces seguem atrás, tentando reparar os danos, com seus "olhos estrábicos e pés claudicantes", "com o que o poeta queria aludir ao fato de que as ofensas são sempre rápidas e as reconciliações bem mais lentas, pois os homens recordam com mais frequência as injúrias" (Erasmo, 101 Adágios, tradução, seleção e notas de Newton Cunha, Perspectiva, 2024, p. 77-78). 

domingo, 19 de maio de 2024

Espalhafato



1) A administração do barulho e do silêncio na relação de Annie Ernaux com sua mãe: o volume da voz é um marcador de classe - irmãs do pai ascenderam socialmente e isso se traduz também no modo como falam (a voz baixa, os gestos contidos); a mãe é o oposto: voz forte e alta, "tudo o que fazia, fazia com barulho. Não pousava os objetos nos lugares, parecia jogá-los" (p. 29). Porém, como num gradiente estruturalista, a lição da mãe logo se inverte - era preciso fazer silêncio quando ela estava trabalhando na mercearia: "se ela ouvia muito barulho, aparecia, me dava uns tapas sem dizer nada e voltava para a mercearia" (p. 31).

2) Depois da infância, o par ruído/silêncio continua operante e determinante: as mães das colegas pequeno-burguesas eram "magras" e "discretas"; "achava minha mãe muito espalhafatosa", "sentia vergonha do seu jeito brusco de falar" (p. 37); imediatamente após a reflexão sobre esse espalhafato, Ernaux separa um detalhe saboroso: "Eu virava os olhos quando ela tirava a rolha de uma garrafa segurando-a entre as pernas" (não se trata apenas da descrição de uma cena, mas da cristalização muito precisa de uma reação a uma cena que, o leitor sente, se repete desde tempos imemoriais: uma mulher "brusca" que coloca uma garrafa entre as pernas para melhor extrair a rolha, gerando na filha uma reação de "virar os olhos" - uma recusa, uma des-identificação).

3) Na velhice, quando a mãe volta a morar sozinha depois de um período na casa da filha, o ruído volta a ser protagonista, agora ocupando a posição de "companhia": "Ligava a TV desde cedo - na época não tinha nenhum programa nesse horário, apenas música de fundo com uma cartela fixa na tela -, deixava o aparelho ligado o dia todo, olhando apenas às vezes, e à noite dormia diante dele" (p. 50). No fim, a única coisa que resta da mãe é, precisamente, o silêncio - ela já não mais está, não existe, só pode ser "ressuscitada" na página muda do livro da filha: "Não vou mais ouvir sua voz. É ela, mas também suas palavras, suas mãos, seus gestos, a maneira como ria e andava, que unem a mulher que eu sou à criança que um dia eu fui" (p. 61).

(Annie Ernaux, Uma mulher, trad. Marilia Garcia, Fósforo, 2024)

domingo, 12 de maio de 2024

Apanhar uma bolinha


1) Em linhas gerais, os diários de Kafka se organizam em três eixos de produção: em primeiro lugar, o registro do cotidiano, encontros, conversas, rascunhos de cartas (e também os sonhos, que poderiam formar uma subcategoria); em segundo lugar, o registro das ideias para sua ficção, com rascunhos de histórias e fragmentos de contos; em terceiro lugar, a preocupação com o próprio diário, que muitas vezes é tópico de reflexão (e preocupação) por parte do autor.

2) “Folheei um pouco os diários”, escreve ele em outubro de 1914 (tradução de Sergio Tellaroli). “Tive uma espécie de ideia de como uma vida como a minha se organiza”. Ou, em abril de 1912, o diário como “conhecimento completo de si mesmo”: “Poder abarcar a amplitude das próprias capacidades como quem apanha uma bolinha”. Em fevereiro do mesmo ano: “A partir de hoje, manter-me firme na escrita do diário! Escrever com regularidade! Não desistir de mim mesmo!”.

3) As emoções básicas que formam toda vida (e todo diário) marcam presença também no cotidiano de Kafka. Ele sente inveja do colega escritor Franz Werfel, mais habilidoso socialmente e bem-sucedido com seus livros; ama com devoção seu melhor amigo Max Brod, mas também se sente incomodado com ele; ama também de forma ambivalente Felice Bauer, sua noiva por duas vezes (noivado desfeito por Kafka nas duas ocasiões); respeita os pais, mas não consegue conter a angústia decorrente da falta de entendimento e comunicação dentro da família, e assim por diante.