sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Quién mierda es Onetti?



1) Em uma entrevista feita por Eduardo Galeano em 1980, Juan Carlos Onetti faz referência ao episódio que o colocou em maus lençóis com a ditadura uruguaia: presidiu um júri literário para contos que deu o primeiro prêmio para uma história que o regime qualificou de "pornográfica". "Por conta disso", conta Onetti, "me deixaram preso por três meses". O autor do conto ficou preso por quatro anos. "Chegaram telegramas do mundo todo", diz Onetti, "Até o New York Times mandou um telegrama. O chefe de polícia perguntou: Pero quién mierda es este Onetti?".

2) "Como foi a prisão?", pergunta Galeano. Onetti diz que, no início, foi muito ruim; ficou na solitária nos primeiros oito dias. "Foi Dolly quem me salvou da claustrofobia", diz Onetti, fazendo referência a sua quarta esposa (vasculhei a internet para tentar descobrir seu nome de solteira, mas não tive sucesso - só encontrei referências a "Dolly Onetti"), "ela conseguiu meter na cela alguns romances policiais". Como exatamente ocorreu esse contrabando de literatura detetivesca para dentro da prisão, Onetti não esclarece. O que fica claro é a posição central que Onetti dá ao gênero policial em sua vida de leitor: "estou preso pela curiosidade", ele diz, e é isso que o interessa na leitura.

3) Galeano, no entanto, não fica satisfeito com essa versão parcial do Onetti leitor - quer saber mais, perguntando sobre os autores "sérios". Com isso, Onetti chega a Faulkner, uma referência constante (Saer, outro escritor que não existiria sem Faulkner, escreveu linhas excelentes sobre a relação de Onetti com Faulkner): "já li páginas de Faulkner que me fizeram pensar que não era mais necessário seguir escrevendo", diz Onetti. "É tão magnífico, tão perfeito", ele insiste, acrescentando ainda que seu romance preferido de Faulkner é Absalom, Absalom! ("O som e a fúria tem muito de Joyce para meu gosto", acrescenta Onetti).  

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

A escrita como faca

Setembro de 1963

"As palavras vêm sem que eu as procure ou, ao contrário, exigem uma tensão extrema, não um esforço, e sim uma tensão, para serem ajustadas com precisão à representação mental. Quanto ao ritmo da frase, não trabalho nele, eu o escuto em mim, apenas o transcrevo. Meus rascunhos - trabalho em folhas de papel, com canetas de ponta fina - são cheios de rasura - mas isso também depende dos textos, de acréscimos, palavras escritas em cima de outras, deslocamentos de frases e parágrafos" (p. 119-120)

"Muito cedo, portanto, os livros constituíram o território do meu imaginário, da minha projeção nas histórias e nos mundos que eu não conhecia. Depois, encontrei neles o manual de instruções da vida, um manual de instruções em que eu confiava muito mais que no discurso da escola e de meus pais. Eu tendia a pensar que a realidade e a verdade se encontravam nos livros, na literatura" (p. 164)

"Quem leu O lugar sabe que dato na morte abrupta de meu pai, em 1967, essa reativação da memória, esse retorno da memória reprimida, essa volta para a minha história e a dos meus antepassados. Ao mesmo tempo, nesse exato momento tomei consciência da minha transformação pela cultura e pelo mundo burguês ao qual meu casamento me levou" (p. 166)

Annie Ernaux, A escrita como faca e outros textos, trad. Mariana Delfini, Fósforo, 2023

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Lenda privada


1) Gosto muito dessa foto que está em Leggenda privata, livro do escritor italiano Michele Mari lançado em 2017 (esse paradoxo do título é igualmente fascinante: uma "lenda", algo da ordem do comunitário, que é, também, "privada", íntima). O autor criança aparece na frente da mãe, o pai-rival tira a foto: "só por cima do meu cadáver" poderia ser o comentário de Mari, reiterando a descrição das tensões do filho com o pai. Eles não estão dentro de casa, nem fora - estão em um espaço intermediário, desconfortável. 

2) Na foto, a paisagem se funda perfeitamente com a materialidade da casa familiar: parte do horizonte está tomada por essa natureza tão convidativa; o contraste é intenso com a madeira da casa, sua cor e textura (as feições fechadas da mãe e do menino falam de um corte com relação a essa liberdade da paisagem, tão próxima e, ainda assim, tão distante). Mari atua, portanto, nesse intervalo entre geral e particular, entre o social e o privado - dinâmica que se torna visível nessas fotos que são resgatadas do álbum familiar, algo que já acontece em algumas ficções de Sebald e, mais recentemente, em certos textos híbridos de Annie Ernaux (como em Os anos).

3) A fotografia do filho e da mãe do lado de fora da casa, contudo, não oferece nada disso diretamente - depende da elaboração narrativa que faz Mari nesse livro tão sabiamente intitulado Lenda privada (é no desdobramento ficcional dos elementos oferecidos pela imagem que melhor se identifica a produtividade estética desse paradoxo do título de Mari). 

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

O material romanesco


Existe um fio subterrâneo e invisível que liga dois escritores aparentemente distantes, pertencentes a mundos muito distintos: David Markson e Milan Kundera me parecem muito próximos em certa confiança na condição inesgotável da forma romanesca. Aquilo que Kundera tem de cosmopolita e multilíngue, Markson tem de estadunidense, não apenas no que diz respeito à circunscrição específica do inglês, mas também à ligação de Markson a uma cena vanguardista que o aproxima de autores como Barthelme e Pynchon. Ainda assim, Markson e Kundera se aproximam pela via da confiança que compartilham com relação às possibilidades do romance: Kundera a partir de Cervantes e Broch, Markson a partir de Wittgenstein. 

*

Até que ponto pode ser levado o material romanesco? Até que o ponto o material romanesco pode ser identificado como tal pelo leitor? Essas são algumas das perguntas que podem surgir a partir da leitura dos romances de Markson, marcados por uma rarefação impressionante de elementos como narrador e trama. Kundera, por sua vez, interfere no discurso romanesco a partir do discurso filosófico, e vice-versa. Um movimento de oscilação que é tornado possível pela interferência, na obra de Kundera, do discurso ensaístico, que funciona como uma ferramenta de costura dos outros dois. 

sábado, 9 de dezembro de 2023

Punhal/revólver



1) Em seu conto "La muerte y la brújula", Jorge Luis Borges apresenta a morte de Daniel Simó Azevedo, "hombre de alguna fama en los antiguos arrabales del norte", um dos homens assassinados por Scharlach para envolver seu inimigo, Lönnrot, em uma trama detetivesca que é, ao mesmo tempo, uma armadilha. Ainda sobre Azevedo, Borges informa que ele era o último representante de uma geração de bandidos que sabia o manejo do punhal, mas não o do revólver. Essa passagem de uma ferramenta de trabalho a outra - do punhal para o revólver - não é apenas um dado material, mas uma espécie de símbolo usado por Borges para falar de várias metamorfoses condensadas: a imigração, a cidade em sua relação com o campo e as fronteiras, a honra, a lei, as comunidades masculinas (a passagem do punhal para o revólver é o signo de uma transformação, talvez de uma decadência).  

2) Com isso em mente, ganha nova ressonância uma cena de Roberto Arlt em seu conto "El jorobadito": o narrador, um sujeito esquisito que duvida do amor de sua noiva, um dia conhece em um café um anão corcunda que lhe parece profundamente odioso; ele tem a absurda ideia de levar o anão corcunda à casa da noiva e fazer com que ela o beije - beijar o anão corcunda, para o narrador, seria a prova de amor que dissiparia todas suas dúvidas. Quando o plano dá errado e a noiva recusa o beijo, o jorobadito, evidentemente, aproveita seu protagonismo, saca um revólver, ameaça a todos na casa da noiva e exige seu beijo: é a chance que a sociedade tem de pagar os anos de abuso que sofreu (o aparecimento do revólver é apenas o clímax da construção de um personagem odioso e perigoso). 

3) Em Borges, a passagem do punhal para o revólver aparece como um problema, como uma mudança que significa a morte de um mundo; em Arlt, o problema sequer se coloca - o revólver já é um adereço indispensável, perfeitamente integrado à narrativa e ao mundo que explora. Essa dinâmica seria uma possível confirmação textual da hipótese levantada por Ricardo Piglia em seu romance Respiração artificial de que Borges seria o último escritor argentino do século XIX e Arlt, por sua vez, o primeiro do século XX: a passagem do punhal para o revólver, em outros termos, seria também a passagem do século XIX para o século XX.

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Cenas


Em suas aulas sobre o romance argentino - as "cenas do romance argentino", transmitidas em 2012 pela TV Pública Argentina em colaboração com a Biblioteca Nacional -, Ricardo Piglia separa uma anedota, um caso curioso noticiado pela imprensa da época, uma luta ocorrida em 23 de junho de 1856, um domingo, no Teatro Argentino de Buenos Aires, para uma plateia de mil e duzentas pessoas (todos homens). Piglia fala da nacionalidade daqueles que se inscreveram para lutar com o grande campeão, "o homem mais forte do mundo", é o que diz o jornal, diz Piglia, "Míster Charles": três argentinos, três italianos, dois bascos, um irlandês, um "oriental" (ou seja, do Uruguai), um francês e um homem "de nacionalidade desconhecida" (Piglia presume que seja centro-europeu). Essa enumeração é o que dá força ao relato, levando-o àquele ponto paradoxal em que melhor se vê o artifício e, simultaneamente, a verossimilhança (como nos sapatos sem pares de Coetzee em Elizabeth Costello).  

*

A partir dessa enumeração de nacionalidades, Piglia chega à cena migratória argentina do século XIX. Em 1856, diz Piglia, o que aparece é uma cena "primitiva", já os fluxos migratórios de peso ainda estão no futuro. Ainda assim, continua Piglia, é possível encontrar rastros dessa migração nos textos da época, como o próprio Martín Fierro. Neste texto, diz Piglia, aparece o "gringo da mona", um italiano que andava com uma macaca tirando a sorte para ganhar a vida; aparece também um "inglés zanjeador", que sempre falava de "Inca la perra", uma referência à Inglaterra vinda, provavelmente, de um irlandês; Piglia acrescenta ainda que, nesse ponto do século XIX, imigrantes irlandeses e bascos chegavam à Argentina para cavar valas que serviam para separar as fronteiras das estâncias (o gaúcho achava indigna qualquer atividade que envolvesse desmontar do cavalo).

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Saer x Puig


"O tópico ideológico da sexualidade concebida à luz da psicanálise, que pretende aparecer nos romances de Puig como uma inovação e como uma infração atrevida de tabus sociais, está, na história do romance, perfeitamente datado: as grandes obras que o incorporam, Mann, Svevo, Lawrence, Musil, Breton, e também Schnitzler (a quem devemos também uma incursão ortodoxa no monólogo interior), podem ser localizadas ao redor dos anos 1920. Não é necessário acrescentar que nenhum desses autores incorre no simplismo de Puig. Como se vê, a pretensão vanguardista de Puig não é mais do que um catálogo de tópicos cuja vigência desaparece da literatura ao redor dos anos 1930. Puig não apenas é superficial: é também antiquado".

(Juan José Saer, "The Buenos Aires Affair" [1973], Ensayos, borradores inéditos 4, Seix Barral, 2015, p. 73)

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Ser idiota


Ser idiota, criar a partir da própria idiotice... Em Nouvelles Impressions du Petit Maroc, relato-ensaio escrito em abril de 1990, César Aira acessa esse tema profundamente flaubertiano (a idiotice), o que parece bastante apropriado uma vez que está em uma residência de escritores na França. A partir dessa idiotice, escreve Aira, é preciso escrever mal, é preciso escapar da facilidade imediata da língua materna: quando se escreve mal, o produto não é o texto, e sim o autor (é por isso, também, que Aira defende nesse relato-ensaio a ideia de que o escritor não deve corrigir: a correção é feita com olhar de leitor - mais do que isso, com uma estética de leitor -, que invalida e conspurca todo o projeto de escritura).

*

Outra coisa interessante que coloca Aira nesse brevíssimo livro é a relação entre guerra, turismo e literatura - com o fim do período das guerras, produtoras de relatos por excelência (e nisso há um fio subterrâneo que liga Aira em negativo à tese de Walter Benjamin sobre o silêncio dos soldados que retornam), como os romances de Ernst Jünger ou Louis-Ferdinand Céline (os exemplos são meus, não de Aira), surge a empobrecedora era do turismo. Ainda assim, mesmo na brevidade desse juízo e dessa tensão (guerra x turismo; ontem x hoje), Aira consegue nomear um escritor que, dentro dessa era (seguindo, de certa forma, seus ditames), consegue apresentar uma obra superior: Bruce Chatwin. 

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Cópia, paródia


"A história copia e parodia a história, a história plagia a literatura.

O que narra o conto de Borges 'Tema do traidor e do herói' (situado na Irlanda e com alusões a Parnell, ao Fergus de Yeats citado por Joyce no primeiro capítulo de Ulisses, aos druidas e sua doutrina da transmigração, aos ciclos de Vico), é como o assassinato 'real', histórico, do traidor-herói da emancipação, reproduz o assassinato 'literário' de Júlio César de Shakespeare segundo uma tradução do celta; também foram copiadas partes de Macbeth. O assassinato, em que participou o povo em uma reprodução dos Festspiele suíços, prefigurou por sua vez o de Lincoln. O investigador que descobre a verdade histórica entra na trama da história escrita: cala a verdade e dedica um livro, também previsto em sua escritura, à glória do herói".

(Josefina Ludmer, O gênero gauchesco, trad. Antônio Carlos Santos, Argos, 2002, p. 98-99)

sábado, 11 de novembro de 2023

A seus pés


"Joseph Brodsky havia se estabelecido nos Estados Unidos apenas recentemente - ele se tornaria cidadão americano no ano seguinte -, tendo morado em diferentes cidades europeias após ter sido expulso de sua terra natal, a União Soviética, em 1972. Tinha apenas trinta e seis anos e uma vida difícil que incluía um estado quase de inanição durante o cerco alemão de Leningrado e um ano e meio de trabalho agrícola forçado (parte de uma sentença de cinco anos por 'parasitismo social', a qual cumpriu em exílio no norte da Rússia antes que fosse comutada); o tabagismo intenso e as doenças cardíacas o envelheceram.

Era praticamente careca, faltavam-lhe dentes, tinha uma barriga enorme. Usava as mesmas roupas largas e sujas todos os dias. Mas para Susan ele era intensamente romântico. Esse foi o começo de uma amizade que duraria até a morte dele, em 1996, e naqueles primeiros dias ela estava encantada com ele. Susan fazia parte daquele grupo de literatos estadunidenses para quem escritores europeus eram sempre superiores aos locais e para quem sempre havia algo particularmente exaltado e sedutor em um escritor russo, sobretudo em um poeta russo.

Joseph Brodsky veio com elogios de, entre outros, W. H. Auden e Anna Akhmatova. Também foi um herói. Um mártir, até: um escritor feito para sofrer como um criminoso por sua arte. E todos sabiam que ele ia ganhar o Nobel. Susan estava a seus pés. Via lampejos de genialidade em cada comentário dele, nos trocadilhos que tentava fazer ('Muerto Rico') e em suas piadas casuais ('Se você quer ser citado, não cite'). Era condescendente com a pancadaria morosa dele dirigida a Tolstói (ele via Tolstói 'de modo algum equiparado a Dostoiévski', com um tipo de Margaret Mitchell erudito que ajudou a preparar o caminho para o realismo socialista) e com seus julgamentos literários estranhíssimos (a escrita de Nabokov era 'muito marinada')".

(Sigrid Nunez, Sempre Susan: um olhar sobre Susan Sontag, trad. Carla Fortino, Instante, 2023, p. 26-28)

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Os anos



1) A narrativa de Os anos, de Annie Ernaux, nos faz acompanhar o nascimento, crescimento e amadurecimento de uma mulher que conta sua história na terceira pessoa – até as últimas páginas do livro, quando a voz em terceira pessoa encontra seu “eu” no presente. Contudo, essa progressão alcança uma amplitude que faz a história expandir os próprios horizontes. Em paralelo à história dos anos de uma vida, encontramos também a história da Europa e da França, seus presidentes, suas crises de imigrantes, ataques terroristas, manchetes bombásticas da imprensa, morte de intelectuais e celebridades, enfim, um vasto contingente de detalhes que costuram a subjetividade da narradora ao cenário social mais amplo.

2) Ao longo desse percurso, muitos nomes são citados – Sartre, Simone de Beauvoir, Mitterand, Aldo Moro – e muitos eventos de ampla repercussão mencionados – da Libertação ao 11 de Setembro. Nessa perspectiva, o romance de Ernaux oferece uma sorte de retrospectiva indireta da cultura francesa ao longo da segunda metade do século XX. É possível recordar, por exemplo, o romance que Georges Perec lança em 1965, As coisas: uma história dos anos sessenta, livro de estreia do autor, com o qual vencerá o Prêmio Renaudot (que Ernaux receberá quase vinte anos depois). Encontramos em Perec o mesmo frenesi do consumo e da novidade que vemos na rememoração de Ernaux, com a diferença que Perec escreve no calor do momento.

3) O mercado de trabalho é outro personagem permanente em Os anos – a colocação profissional da narradora e de sua geração, em primeiro lugar, e, adiante, o cenário bem mais limitado reservado à geração de seus filhos. As críticas à burocratização da sociedade e o inchaço dos centros urbanos, que encontramos em Os anos, remetem a outro escritor francês que construiu sua fama inicialmente a partir de um retrato ácido desses ambientes: Michel Houellebecq. O autor, que lança Extensão do domínio da luta em 1994, pode ser visto como uma das tantas personalidades históricas que saem renovadas da narração de Os anos, tendo seus projetos pontuais de análise da realidade francesa vitalizados pelo movimento panorâmico que Ernaux oferece em sua obra.

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Chismografía


No penúltimo capítulo de A traição de Rita Hayworth, de número 15 (intitulado "Caderno de Pensamentos de Herminia, 1948"), a mulher que toma a frente da narração, Herminia, em determinado momento recusa a própria escritura e os temas que vem abordando: ¿Pero qué estoy escribiendo hoy? Esto es pura chismografía. Basta, no tengo nada edificante que decir así que mejor será callarme. São três frases absolutamente centrais para a poética de Puig, toda ela uma "chismografía" - palavra, aliás, excelente (na tradução brasileira de Glória Rodríguez - na Biblioteca do Leitor Moderno da Civilização Brasileira, edição de 1973 - está "mexericografia", uma solução sonora e vistosa). Sobre a última frase, é possível perguntar: caso tenha sido esse o caso, qual foi o percurso que levou Puig a Wittgenstein?

*

O chisme, para Edgardo Cozarinsky (escrevi sobre seu livro Museo del chisme), é uma prática universal. Uma "forma plebeia e incipiente da literatura", fruto da conversação, da mobilidade social, do viver-junto posto em discurso. O chisme diz respeito à imaginação e à transmissão oral - está ligado à literatura, mas é transitório, é reelaboração permanente, possibilidade pura. Não surpreende, portanto, que Cozarinsky cite o ensaio de Walter Benjamin sobre Leskov e o narrador, falando (com Barthes) da narração como tecido, trama interminável e renovável que articula obra e vida (daí decorre também a principal referência ficcional do ensaio de Cozarinsky, Marcel Proust). 

sábado, 28 de outubro de 2023

May Goulding


Na Antologia da Literatura Fantástica, Borges, Bioy Casares e Silvina Ocampo colocam duas passagens do Ulisses, de James Joyce: a primeira entrada é intitulada "Definição de fantasma":

O que é um fantasma?, perguntou Stephen. Um homem que se desvaneceu até se tornar impalpável, por morte, por ausência, por mudança de hábitos.

A segunda entrada é intitulada "May Goulding" e tem relação direta com a mãe de Stephen, presença fantasmática desde o início do romance (quando é postulada a "inelutável modalidade do visível" diante da mãe morta):

A mãe de Stephen, extenuada, surge rigidamente do chão, leprosa e turva, com uma coroa de flores de laranjeira murchas e um véu de noiva rasgado, o rosto gasto e sem nariz, verde de mofo sepulcral. O cabelo é liso, ralo. Fixa em Stephen as órbitas vazias aneladas de azul e abre a boca desdentada, dizendo uma silenciosa palavra.

A MÃE

(com o sorriso sutil da demência da morte)

Eu fui a bela May Goulding. Estou morta.

(Antologia da literatura fantástica: Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo [org.]. Tradução de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 218-219)

*

Duas estratégias de justaposição de elementos convergem aqui: em primeiro lugar, a estratégia dos compiladores da Antologia de posicionar Joyce em contato com outros textos, não aqueles "habituais" quando se trata do Ulisses, afastando o romance da cena modernista, digamos, em direção ao reino do fantástico, do estranho, do sobrenatural (um deslocamento atípico como aquele que Borges faz em "Kafka e seus precursores"); em segundo lugar, está embutido nos trechos escolhidos o projeto de filiação de Joyce com textos do passado pelo viés do fantasma e da aparição, um encadeamento intertextual cujo desenho aponta saltos com uma extensão de 200 anos: a Comédia de Dante (1321), o Hamlet de Shakespeare (1599), o Tristram Shandy de Sterne (1759), o Ulisses de Joyce (1922).  

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Lugar estranho


"Todos estamos dispostos a delirar, seja pelo lado histérico, seja pelo lado obsessivo; mas chega o momento decisivo de sair do delírio. Para alguns, o problema é como entrar e não conseguem isso nunca. Se acompanhamos trajetórias como a de Walter Benjamin, ou a de Freud, vemos que sua imaginação teórica se dá em momentos em que conseguem fantasiar, em que se desprendem do real. Constroem algo que não está nos 'fatos' - a aura, o inconsciente - e, com isso, chega a olhar melhor o que talvez esteja na realidade.

Se fazem isso, é porque, de alguma maneira, além de alçarem voo, houve um momento em que aterrissaram e puseram isso em uma escrita que é possível ler, que tem uma organização comunicável, ou várias ao mesmo tempo. Muitos cientistas e poetas constroem conhecimento com humor, esse outro incômodo ao real, e evitam se valentear fazendo metafísica ou misticismo. A poesia não é azar, escreveu Italo Calvino, mas 'uma tensão rumo à exatidão que fez ele próprio circular, várias vezes, por teorias e livros científicos"

(Néstor García Canclini, O mundo inteiro como lugar estranho, trad. Larissa Locoselli, Edusp, 2016, p. 141)

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Carson / Bardot



1) Em um de seus ensaios ("Desprezos", sobre Homero, Moravia e Godard), Anne Carson fala de Brigitte Bardot, de sua aparição na tela do cinema, do modo como usava o próprio corpo em cena: na abertura do filme de Godard baseado no romance de Moravia, escrever Carson, Bardot está nua sobre a cama e a câmera "zanza pelo seu corpo e se demora nas suas costas". "Bardot atua sem despreza nessa cena", escreve Carson, e continua: "Seus gestos são simples, transparentes; o tom de voz é serenamente banal. Sua conduta é inocente como a água. Mas, de alguma forma, bem no meio dessa exposição total e totalmente forçada de si, ela desaparece" (Sobre aquilo em que eu mais penso, ed. 34, 2023, trad. Sofia Nestrovski, p. 150-151).

2) No momento de maior exposição, Bardot faz o próprio corpo desaparecer, faz o próprio corpo recusar qualquer tipo de aproximação precisamente porque se faz exposto - uma sorte de surpreendente aplicação imagética do procedimento narrativo inventado por Edgar Allan Poe em "A carta roubada". Georges Didi-Huberman, em seu livro sobre Godard (Passés cités par JLG), escreve: 

Tout simplement parce qu'il permet de revoir quelque chose qui a été vu un jour - un visage, un corps, un geste, un paysage, un édifice, une ville, un acte collectif -, le cinéma apparaît comme une éminente façon de citer le passé: ce qui a été tourné un jour retourne sous nos yeux dans le temps, répétable à loisir, de la projection (p. 67)

3) Aí está a potência do cinema, tal como capturada por Carson e Didi-Huberman, por trás desse "simplesmente": parece simples, mas não é, já que o cinema permite "citar o passado" (um corpo, um gesto, um edifício), devolvendo-o ao presente, "diante nossos olhos", "sob nosso olhar". Não se trata de um retorno neutro do mesmo, como um documento "fidedigno" do que passou/aconteceu; trata-se de uma "projeção", como escreve Didi-Huberman, uma imagem no presente que guarda uma ressonância com o passado (justamente por o passado, na imagem, é "citado": vale a pena retomar o que Compagnon tem a dizer sobre a citação; ou, no que diz respeito à citação do passado pela "projeção", vale a pena retomar o que faz Billy Wilder em Five Graves to Cairo).  

domingo, 8 de outubro de 2023

O amigo de Florio



1) No segundo ensaio de seu livro Nenhuma ilha é uma ilha (intitulado "Identidade como alteridade: um debate sobre a rima na era elisabetana"), Carlo Ginzburg fala de Montaigne e da tradução dos Ensaios na Inglaterra, realizada por John Florio: "o Montaigne de Florio era o Montaigne de Shakespeare", escreve Ginzburg, indicando com isso que Shakespeare leu Montaigne em tradução e, mais do que isso, seus Ensaios foram importantes para a escrita de uma peça como A tempestade (e a partir disso, uma informação específica: foi importante para Shakespeare a leitura do ensaio de Montaigne sobre o "Novo Mundo", sobre os canibais).

2) Ginzburg, contudo, acrescenta uma nova informação, para além da leitura de Shakespeare - uma informação que diz respeito ao tradutor, Florio, que deixou a Itália, com seu pai, por motivos religiosos. Ginzburg cita o prefácio que Florio escreveu à tradução: Florio diz, aí, que na Itália alguns viam a tradução como uma subversão das universidades, citando, a esse propósito, seu "velho amigo, o Nolano", uma referência a Giordano Bruno, natural de Nola, queimado em Roma como herege em 1600 (a tradução de Florio é publicada na Inglaterra três anos depois, em 1603). 

3) Junto à menção a Giordano Bruno, incrível por si só, Florio também faz em seu prefácio um elogio da tradução: segundo ele (escreve Ginzburg), todas as ciências se originaram da tradução, uma vez que os gregos haviam aprendido todas as suas ciências dos egípcios, e os egípcios, por sua vez, tinham aprendido dos hebreus ou dos caldeus. A ideia de Ginzburg é que Montaigne caiu como uma luva na postura "aberta" que Florio compartilhava não só com o amigo Giordano Bruno, mas com outros companheiros de ofício como Samuel Daniel, autor de Defesa da rima, de 1603 (Daniel era cunhado e amigo de Florio, a quem dedicou um longo poema, no qual aparece, em determinado momento, um elogio a Montaigne).

segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Pallaksch


1) Uma questão central para Anne Carson é analisar as "relações profundas" de certos artistas com outros artistas. Quando fala de Francis Bacon, por exemplo, aponta que ele tem uma relação profunda com Rembrandt: Bacon fala em várias entrevistas como ama um de seus autorretratos (estamos no ensaio "Variações sobre o direito de permanecer calado", de 2013, no qual Carson explora vários momentos do livro de entrevistas com Bacon feito por David Sylvester - o ensaio pode ser lido no livro Sobre aquilo em que eu mais penso, tradução de Sofia Nestrovski, Editora 34, 2023).

2) Aquilo que Francis Bacon mais gosta no autorretrato de Rembrandt é o fato de perceber que os olhos não têm órbitas: um trabalho tardio de Rembrandt, contornos difusos, muito escuro. Carson diz que o olhar, aí, não está organizado do jeito habitual, a visão parecer emanar "silêncio"; e é nesse ponto do ensaio que ela alcança o problema geral, o cerne de sua argumentação (as variações sobre o direito de permanecer calado, e como essa "falta de voz" repercute na arte ao longo dos séculos).

3) Dando um salto inesperado - tão típico do ensaio, mais ainda do ensaio tal como praticado por Carson -, ela vai do silêncio de Rembrandt em direção ao silêncio de Paul Celan: um poema em louvor a Hölderlin, que termina com uma palavra intraduzível, repetida: "Pallaksch, Pallaksch". O silêncio, então, se articula com a tradução e com o intraduzível, se articula com a homenagem que Celan faz ao Hölderlin não apenas poeta, mas, sobretudo, tradutor (segundo as pessoas que o visitaram em sua torre, Hölderlin tinha inventado o termo Pallaksch e às vezes o usava para dizer Sim, às vezes para dizer Não).

sábado, 30 de setembro de 2023

Dois níveis da fabricação de si


"É paradoxal que Bourdieu - que tanto censurou Sartre por ter construído a imagem do intelectual livre, 'sem laços ou raízes', segundo a fórmula de Mannheim, e por ter relacionado o conteúdo dos seus livros, filosóficos ou literários, às suas origens de classe - tenha feito o possível, por meio do dispositivo apresentado como 'científico' em seu Esboço de autoanálise, para separar seu próprio pensamento de seus vínculos e raízes. Ele nos oferece mais uma análise da mente do que do corpo, do pensamento do que da sua inscrição social.

É uma pena que Bourdieu tenha se debruçado tão pouco sobre as disposições adquiridas na sua juventude para entender quem ele era quando entrou no espaço escolar, universitário, científico, no qual iria tentar encontrar um lugar, inventar uma posição, com base em escolhas baseadas em atrações e repulsões, que não derivam, nem todas elas, nem unicamente, da pureza de uma reflexão intelectual, e das quais se pode até mesmo dizer que são quase instintivas.

Aliás, parece-me que é assim que Bourdieu procede em seu livro sobre Heidegger, no qual a análise do habitus ocupa um lugar tão importante quanto a análise do campo filosófico, ou, mais precisamente, os dois níveis de análise são indissociáveis, e a situação que Heidegger fabrica para si próprio no espaço teórico é relacionada de maneira bastante direta às suas inclinações políticas e sociais" (Didier Eribon, A sociedade como veredito, trad. Luzmara Curcino, Ayiné, 2022, p. 95-96).

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Blá-blá-blando


"Na verdade, ao fim me parece, é no cruzamento de Derrida e Lacan que o método dos intraduzíveis pode ser melhor descrito. Derrida e Lacan são, se me permitem dizer, dois compadres que se encontram na sofística. Derrida define a desconstrução como 'mais de uma língua'. Bem longe do logos grego universalista (entenda-se cercado de 'bárbaros', blá-blá-blando com maior ou menor sabedoria) e bem perto da diversidade cara a Humboldt, aqui está, de forma mais selvagem e contemporânea, a maneira pela qual Derrida descreve seu caráter e seu trabalho:

Se eu tivesse que arriscar, Deus me livre, uma única definição de desconstrução, breve, elíptica, econômica como uma palavra de ordem, diria sem delongas: 'mais de uma língua' (Derrida, Mémoires pour Paul de Man)

Ao longo do texto verdadeiramente convincente que faz eco a essa passagem, O monolinguismo do outro, a desconstrução por Derrida de sua própria posição, que se refere a sua experiência como um jovem judeu pied-noir a quem o árabe foi ensinado na Argélia como língua estrangeira facultativa, expressa-se por uma aporia, por sinal trabalhada ou implícita numa sintaxe muito francesa (nada fácil de traduzir...), que ele enuncia assim:

1. Não falamos nunca senão uma única língua.

2. Não falamos nunca uma única língua.

Se tanto Derrida quanto Lacan estão nessa terceira dimensão da linguagem e se tornam atentos a ela, é também porque ambos estão definitivamente conscientes da dimensão do significante. Significante e performance agem juntos."


(Barbara Cassin, Elogio da tradução: complicar o universal, trad. Simone Christina Petry e Daniel Falkemback, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2022, p. 33-35)

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Brichot


1) Em seu dicionário de nomes e lugares da Recherche, de Proust, Michel Erman apresenta o verbete "Brichot", um professor da Sorbonne, nascido por volta de 1850, apelidado - no romance - de "Chochotte". Erman informa ainda que Brichot pertence ao pequeno clã dos Verdurin, em casa de quem ele tenta brilhar exibindo sua cultura universitária convencional e estéril, até mesmo pedante quando trata Ovídio de "boa mula". Quando não é pedante, é para fazer brincadeiras de gosto duvidoso; durante a Primeira Guerra Mundial, publicará artigos ultranacionalistas na imprensa.

2) Erman define Brichot como um "filólogo distinto e confinado no saber", contribuindo para esvaziar a realidade de sua parte de poesia quando levanta os erros de pronúncia dos habitantes de Combray e restabelece as etimologias em sua exatidão (mais um avatar de uma discussão plurissecular: a distância entre aqueles que se ocupam do pensamento e aqueles que se ocupam das atividades práticas, mente x corpo, e assim por diante). A cegueira que o toma, continua Erman, pode ser interpretada, no plano simbólico, como a prova de que a inteligência é inapta para apreender a realidade. Ao saber racional, o narrador oporá o poder da impressão, que é o fato de uma consciência dedicada ao mundo. 

3) Como antídoto ao filólogo pedante, é possível resgatar um filólogo brilhante e sensível, que se ocupou de Proust: "A crônica da vida interior flui com equilíbrio épico, feita que é apenas de rememoração e auto-observação. Esta é a verdadeira epopeia da alma, na qual a própria verdade envolve o leitor num sonho longo e doce, cheio de um sofrimento que também liberta e tranquiliza; este é o verdadeiro páthos da existência terrena, que nunca cessa e sempre flui, que sempre nos oprime e sempre nos impele" (Erich Auerbach, "Marcel Proust: o romance do tempo perdido", Ensaios de literatura ocidental, trad. Samuel Titan Jr, José Marcos Mariani de Macedo, ed. 34, 2007, p. 340).

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Os limites das coisas


Em seu livro sobre Manuel Puig, Alan Pauls fala de como, em A traição de Rita Hayworth, Puig desenvolve uma dialetologia do sexo, girando e retorcendo certos termos muito específicos que o leitor deve coletar, registrar e analisar: pinchar, clavar, comer, romper el carozo (p. 24). Na perspectiva que constrói Pauls, Puig alcança o Foucault da História da sexualidade muito antes do próprio Michel Foucault (nos anos em que Puig está envolvido com A traição, Foucault está finalizando e publicando As palavras e as coisas): o sexo e o corpo surgem dentro de um sistema que coloca em movimento, simultaneamente, repulsa e atração, proibição e proliferação dos discursos sobre, corpo e sexo como objetos de uma exclusão que é, também, uma afirmação.  

*

Anne Carson, como também fez Foucault, retorna aos gregos: fala de Eros como bittersweet no livro que lança em 1986, reformulação de sua tese de doutorado defendida em 1981; Carson vai atrás dessa dialetologia do sexo, do desejo e do amor, começando com o glukupikron de Safo (palavra desafiadora para a tradução, que funde o doce e o amargo). Carson fala de Tolstói e de Anna Kariênina ("o ódio começa onde o amor termina..."), fala de Lacan e de suas ideias sobre o desejo como falta e como figura do nada, fala de Sócrates e do modo como eros aparece na linguagem do filósofo: eros costurado à ironia e aos jogos de linguagem, já que, como eros, os trocadilhos debocham dos limites das coisas. 

terça-feira, 5 de setembro de 2023

Leia agora


"Em 1960, Gombrowicz se encontra com Jacobo Muchnik, um dos grandes editores da Argentina, diretor da Fabril Editora, que pu­blicou o que havia de mais interessante na li­teratura europeia e norte-americana daqueles anos, por exemplo O apanhador no campo de centeio, de Salinger, La modification, de Butor, e ainda O estaleiro, de Onetti. Então, por reco­mendação de Ernesto Sabato, que estava em vésperas de publicar Sobre heróis e tumbas na­quela editora, Muchnik recebe Gombrowicz e lhe propõe a publicação de Ferdydurke, que não era reimpresso desde 1947, nos Libros del Mirasol, uma das primeiras coleções de livros de bolso da América Latina, uma coleção po­pular muito boa, em que saíram, entre outras coisas, O som e a fúria, de Faulkner, e O longo adeus, de Chandler. Muchnik, que conta essa história com muita sinceridade em suas memórias de Gombrowicz, propõe ao escritor fazer uma edição de dez mil exemplares e lhe oferece como adianta­mento um terço dos direitos.

“Isso é o de menos”, responde Gombrowicz. “Estou disposto a autorizá-lo a fazer essa edição se o senhor se comprometer a publicar outro livro muito importante que estou escrevendo. Os senhores me fazem um contrato de edição do Diário argentino e eu os autorizo a publicar Ferdydurke.” Muchnik responde que não pode se comprometer sem ter lido o livro. E en­tão, conta Muchnik, “sem desviar os olhos de mim, Gombrowicz enfiou a mão no bolso do casaco e extraiu duas páginas datilografadas, que me estendeu por cima de minha escrivaninha”. Muchnik sugere que as deixe com ele, para que as leia. “Não”, insiste Gombrowicz em tom cortante. “Dá para ler duas páginas num instante. Leia agora. Eu espero.” Então Muchnik começa a ler na frente de Gombrowicz, e “aquele texto”, diz Muchnik,

me fisgou desde a primeira frase. Mas quando terminei de lê-lo eu disse a ele, bom, é extraordinário, mas não posso me comprometer a publicar sem antes conhecer o livro inteiro. Gombrowicz não me respondeu, levantou-se. Por cima da escrivaninha recolheu suas duas páginas, murmurou alguma coisa que não sei se foi um insulto ou uma despedida, e sem mais girou sobre os calcanhares e saiu.

Preferiu não reimprimir Ferdydurke, não receber o dinheiro do adian­tamento, de que sem dúvida estava precisando, porque queria ver o Diário argentino publicado. E há a questão daquelas duas páginas escritas em caste­lhano. Um pequeno enigma: que páginas eram, quem as traduzira? Ou Gom­browicz as escrevera diretamente em castelhano?… Algo que diz respeito à ética de nossa literatura está presente nessa cena. E a história da relação de Gombrowicz com a língua argentina contém algo que diz respeito a todos nós e a nossa tradição literária"


Ricardo Piglia, "O escritor como leitor"

(Revista Serrote, disponível aqui)

domingo, 3 de setembro de 2023

Ovídio e seu rádio


Como na maioria dos livros de Anne Carson, os fragmentos de Short Talks também se apropriam de fatos históricos e personalidades documentadas. Entre fato e ficção, a poesia trabalha no regime daquilo que “poderia ter sido”, “poderia ter acontecido”, imaginando como sensações muito específicas podem aflorar em situações de angústia ou de júbilo. Quando escreve uma fala curta sobre Ovídio, por exemplo, Carson registra: 

I see him there on a night like this but cool, the moon blowing through black streets

Eu o vejo lá numa noite como a de hoje só que fresca, a lua soprando por ruas escuras

A noite de Ovídio no exílio é “como a de hoje”, próxima, ainda que afastada pelos séculos. “Ele come e volta para o quarto. O rádio está no chão [The radio is on the floor]. O luminoso mostrador verde soa baixinho. Ovídio senta-se à mesa; pessoas no exílio escrevem tantas cartas”. Mais uma vez a interferência entre épocas, com um objeto impossível tomado como algo de cotidiano no Império Romano do início da Era Comum. “Agora Ovídio está chorando [Now Ovid is weeping]. Toda noite por volta dessa hora ele bota a tristeza como um traje [he puts on sadness like a garment] e continua escrevendo”.

*

Em seu Collected Poems in English, Joseph Brodsky incorpora cinco traduções: dois poemas de Marina Tsvetaeva, e um de Osip Mandelstam, outro de Zbigniew Herbert e, por fim, um de Wislawa Szymborska. Uma das traduções de Mandelstam é seu poema "Tristia", de 1916, que evoca o exílio de Ovídio. A tradução é uma dupla homenagem: ao poeta latino que o próprio Brodsky admirava muito, a quem, inclusive, dedicou alguns poemas próprios (poemas muitas vezes epistolares, como aqueles de Ovídio); e também uma homenagem ao seu compatriota, que Brodsky considerava o maior poeta russo do século XX.

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Um sonho ruim


Gosto do salto que dá Anne Carson em direção a Tom Stoppard em um ensaio seu sobre o sono, ou seja, "Toda saída é uma entrada (um elogio do sono", publicado originalmente em uma revista em 2004 e agora disponível, em português, na coletânea Sobre aquilo em que eu mais penso (ed. 34, 2023, trad. Sofia Nestrovski) . Ela está falando de Homero e de Odisseu, de como Odisseu enfrenta sérios problemas para dormir, e, de repente, surge Stoppard e um comentário sobre Rosencrantz e Guildenstern estão mortos:

"Nela, dois cortesãos shakespearianos se veem de repente no meio da tragédia de Hamlet e não sabem ao certo quem os introduziu no texto. Ainda assim, eles se desdobram para interpretar seus papéis, conseguem declamar as falas corretas e acabam sendo mortos na Inglaterra, como manda o enredo de Shakespeare. Não fica claro se estão dormindo ou acordados; eles dizem que se levantaram ao raiar do dia, mas agem como pessoas presas dentro de um sonho ruim. Um sonho ruim e familiar" (p. 110)

Ainda, e de novo, a célebre frase de Stephen Dedalus no Ulisses de James Joyce: History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake. A frase está no começo do romance, no segundo capítulo - no esquema dos episódios, o segundo capítulo está dedicado ao Nestor de Homero (a quem Telêmaco busca para saber mais de seu pai), a cena se passa na Escola, a cor é o Castanho, o símbolo é o Cavalo, a técnica é o Catecismo e a arte trabalhada é justamente a História. Dedalus é professor, e a primeira metade do capítulo se passa na sala de aula, ele diante dos alunos (a segunda metade no escritório do supervisor, diante do qual Dedalus emite a frase). A sala de aula é a clausura que mantém e torna possível o pesadelo.

sábado, 26 de agosto de 2023

Londres, 1967



1) Em seu livro Niño enterrado, de 2016 (Buenos Aires: Entropía), Edgardo Cozarinsky organiza uma série de fragmentos autobiográficos em breves seções de títulos variados: "Rastros", "Cinzas", "Cidades", "Profetas", "Tradução" e assim por diante. A voz narrativa fala de um homem na terceira pessoa: Cozarinsky chama a si próprio de "ele", se distancia. Ao falar de Londres e dos ingleses, de sua primeira visita a Londres, Cozarinsky conta uma anedota saborosa, incorporando-a à subseção de seu livro que intitula "Cidades onde aprendi algo". 

2) O ano é 1967, "ele" está em Londres pela primeira vez e vai almoçar em um "clube inglês" com um desconhecido, amigo de seu professor de inglês em Buenos Aires (eram anos em que um viajante ainda levava "cartas de apresentação", escreve Cozarinsky). Agasajado con sherry durante la conversación previa en la biblioteca, con claret durante el almuerzo y cognac en el café, minutos más tarde debió acudir al baño de ese exclusivo reducto para vomitar con entusiasmo. O fragmento todo parece construído com o intuito de provar a afirmativa inicial: em Londres, "ele" aprende algo sobre a "elegância moral" como uma "estética da conduta": entre outras manifestações, poner cómodo a quien no lo está (p. 46).

3) Enquanto vomita no banheiro do clube, o rapaz nota que há outra pessoa no banheiro que, para aliviar o incômodo da situação, começa a elaborar observações em voz alta a respeito do banheiro: muito sensato por parte do clube manter as instalações e não querer modernizá-las, diz o homem no banheiro, escreve Cozarinsky; tudo isso é mármore, mármore autêntico; luego, bajando la vista (aqui, a única desafinação do relato: se "ele" estava no banheiro vomitando, como sabe que o sujeito baixou a vista? Ou seria essa uma intervenção do narrador onisciente que fala "dele"?): por comparación mi pobre pito parece bastante gastado (e nesse ponto, Cozarinsky oferece o que seria o original em inglês, que "ele" teria escutado no banheiro: By comparison, my poor cock looks rather shabby). 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Simon, Ernaux



1) O nome de Claude Simon, para mim, sempre estará ligado ao de W. G. Sebald. Antes de ler os livros de Sebald, já tinha ouvido falar de Simon, sempre muito vagamente, por conta das edições brasileiras de seus livros (vistas tantas vezes em sebos) e também por conta do Nobel de Literatura recebido em 1985. Reencontro Simon por outros olhos e outro viés no livro de Didier Eribon, A sociedade como veredito, no qual ele aparece como um contraponto burguês às reflexões sociológicas mobilizadas a partir das obras de Annie Ernaux e Martine Sonnet, entre muitos outros (nas casas das classes abastadas estão as heranças, os documentos, os arquivos, as memórias; nas casas das classes trabalhadoras, não há nada).

2) Eribon cita algo que eu desconhecia completamente: um texto no qual Ernaux ataca Simon e sua visão de mundo, sua literatura, sua recusa das condições materiais de produção de vidas e textos, seu antagonismo (o de Simon) com relação a Sartre; para Ernaux, escreve Eribon, Simon representa um mundo etéreo e apartado das vicissitudes das pessoas comuns (como Sebald se posiciona entre esses dois extremos, entre Ernaux e Simon ou, ao menos, diante do Simon reconstruído pela visão de Ernaux? O Simon de Sebald é, sobretudo, o Simon de Le Jardin des Plantes, o Simon que reconfigura a forma romanesca para dar conta dos atravessamentos entre a História e a subjetividade).

3) Não compreendo esse tipo de literatura, escreve Ernaux sobre Simon, cita Eribon, que para mim é quase insuportável. Ernaux denuncia em Simon um desejo de não ser afetado ou perturbado (e o foco dela, informa Eribon, é precisamente o texto de Simon feito depois do Nobel de Literatura, em resposta a ele: o livro que Simon intitula O convite, narrando a viagem que realiza à URSS depois do prêmio). O mais interessante no movimento de Eribon é que, no mesmo gesto em que resgata a discordância de Ernaux com relação a Simon, reafirma sua própria (de Eribon) fascinação com essa mesma obra de Simon (de quem Eribon destaca precisamente o "olhar sociológico", sua capacidade de radiografar ambientes, gestos e pertencimentos).

(a imagem acima certamente corrobora tudo aquilo que tanto Eribon quanto Ernaux falam a respeito das heranças, dos laços, das permanências burguesas e do substancial lastro - econômico, afetivo, simbólico - levado adiante e aproveitado por escritores como Claude Simon: trata-se de uma dedicatória feita por Simon ao então presidente (1987) François Mitterrand)

domingo, 13 de agosto de 2023

O fio de Ariadne


Em Todos os nomes, seu romance publicado em 1997 (um ano antes de receber o Nobel de Literatura), Saramago fala de um homem que se perde no "arquivo dos mortos", um "investigador de temas heráldicos": ele só foi descoberto uma semana depois do desaparecimento, "quase nas últimas", quando também as esperanças já estavam todas perdidas. A partir desse caso, foi instaurada uma "ordem de serviço" determinando o "uso obrigatório do fio de Ariadne, designação clássica e, se me permitem dizê-lo, irónica, da corda que guardo na gaveta"; desde então, nenhum outro caso de desaparecimento foi registrado (Cia das Letras, 1997, p. 208).

Logo depois do relato desse caso e da reflexão sobre a efetividade do fio de Ariadne, o narrador de Saramago apresenta uma compreensão que o aproxima, por exemplo, do projeto de Sebald em Austerlitz: sem casos como esse, "nunca eu teria chegado a compreender a dupla absurdidade que é separar os mortos dos vivos. Em primeiro lugar, é uma absurdidade do ponto de vista arquivístico, considerando que a maneira mais fácil de encontrar os mortos seria poder procurá-los onde se encontrassem os vivos, posto que a estes, por vivos serem, os temos permanentemente diante dos olhos, mas, em segundo lugar, é também uma absurdidade do ponto de vista memorístico, porque se os mortos não estiverem no meio dos vivos acabarão mais tarde ou mais cedo por ser esquecidos, e depois, com perdão da vulgaridade da expressão, é o cabo dos trabalhos para conseguir descobri-los quando precisamos deles, como também mais tarde ou mais cedo sempre vem a acontecer" (p. 208).

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

Os berros da sra. Heidegger


"Um pouco mais tarde [1975], acompanhei Lacan por ocasião de uma visita a Heidegger em Freiburg-im-Brisgau. Ele soubera que o filósofo tinha sido vítima de um acidente vascular cerebral e declarara que desejava revê-lo antes que ele morresse. Conhecia-o de longa data, tendo-lhe feito uma primeira visita no início dos anos 1950 junto com Jean Beaufret, que fora seu analisando. Lacan traduzira para o francês um de seus textos, intitulado 'Logos', publicado em 1956 na revista La Psychanalyse. Em 1955, Heidegger fora convidado por Beaufret e Maurice de Gandillac para um colóquio em Cerisy-la-Salle. Na volta, havia parado em Guitrancourt com sua mulher, e passaram alguns dias. Lacan levara-os para visitar a região de carro, a toda velocidade como sempre, ignorando os berros da sra. Heidegger.

(...)

Os Heidegger moravam numa casa relativamente nova num bairro residencial, que não lembrava em nada as imagens de cabana na floresta que eu associava ao filósofo. Mal tínhamos entrado, a sra. Heidegger nos intimou com autoridade a calçar as pantufas que ela reservava às visitas. Fomos introduzidos na sala de estar, onde Heidegger estava estendido numa chaise longue. Sentando-se prontamente ao seu lado, Lacan começou a lhe comunicar os últimos avanços teóricos, fazendo uso dos nós borromeanos, que ele vinha desenvolvendo em seu seminário. Para ilustrar suas afirmações tirou do bolso uma folha de papel dobrada em quatro, na qual desenhou uma série de nós para mostrá-los a Heidegger, que durante esse tempo todo não emitia uma palavra e mantinha os olhos fechados.

(...)

Durante o almoço, Heidegger se mostrou um pouco mais loquaz, mas a conversa não foi muito animada. Lacan, que lia o alemão, não o falava, e nossos anfitriões dominavam mal o francês. Antes de nos despedirmos, Heidegger me presenteou com um retrato dele, no formato de um cartão-postal, no verso do qual escreveu: Zur Erinnerung an den Besuch in Freiburg im Bu. Am 2. April 1975, sem menção ao meu nome. Fiquei um pouco espantada com aquele autógrafo para fãs, que eu não solicitara, mas conservei-o devotamente. Um de seus pacientes, que viu a foto numa prateleira de minha estante, perguntou se era meu avô"

(Catherine Millot, A vida com Lacan, trad. André Telles, Zahar, 2017, p. 93-95)


terça-feira, 8 de agosto de 2023

O grupo de leitura


No livro Um otimista na América, 1959-1960, Italo Calvino fala de uma família que visita em Washington DC, a família de “F”, professor universitário casado, com duas filhas. A paz do lar é avivada, escreve Calvino, por “um ardor intenso e comunicativo”, o culto da literatura. A esposa, nos anos 1920, depois da universidade, passou um tempo em Paris e foi arrebatada; de volta à pátria, traduz poetas franceses, “daqueles mais permeados de invenções verbais, de concentração de significados”. Seu maior prazer, contudo, está no Finnegans Wake de James Joyce.

(como só tive acesso à edição brasileira, não é possível dizer se o erro na grafia do livro de James Joyce é um erro de Calvino, da edição italiana ou do tradutor ou edição brasileira: Finnegans Wake aparece como Finnegan’s Wake: Joyce removeu o sinal diacrítico do apóstrofo deliberadamente, para sugerir um processo ativo, uma multiplicidade de identidades condensada na entidade ‘Finnegan’) 

Ela organiza em sua casa, continua Calvino, um grupo de leitura de senhoras sobre o Wake: a irlandesa dá conta do folclore, a católica capta as alusões aos dogmas da Igreja, a formada em história das religiões encontra alegorias mitológicas, e a senhora F dá conta dos elementos autobiográficos.

segunda-feira, 31 de julho de 2023

Bardolatrias


O motivo dantesco da transformação/metamorfose é particularmente eloquente no caso da passagem de Virgílio a Beatriz, no caso da passagem do Purgatório ao Paraíso e no caso da passagem do latim à língua vulgar; no que diz respeito a Virgílio, essa ideia de transformação é refratada em diferentes situações, como aquela que diz respeito à transformação da Eneida em obra "santa" ou "religiosa", um texto sagrado nos moldes do Êxodo bíblico por exemplo (o que gera, no final, a grande transformação de um poema a outro, de um poeta a outro, a passagem que leva da Eneida pagã à Comédia cristã - Virgílio, como Moisés, não pode entrar na Terra Prometida). 

*

Harold Bloom retoma esse desejo de transformação/metamorfose em seu livro monumental sobre Shakespeare, especialmente no que diz respeito à tentativa de transformar um texto secular em texto sagrado. Os textos de Shakespeare, argumenta Bloom, transformaram o próprio tecido que fabrica o que é o "humano", por isso sua obra "inventa o humano": a "Alta Bardolatria Romântica", como escreve Bloom, é apenas a mais organizada das seitas (Bardolatry is excessive admiration of William Shakespeare. Shakespeare has been known as "the Bard" since the eighteenth century. One who idolizes Shakespeare is known as a bardolator), pois a "perene supremacia" de Shakespeare é incontornável, informando nossa linguagem e nossa psicologia.  

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Arrigo Beyle



1) Leio o livrinho de Romain Colomb, no original Notice sur la vie et les ouvrages de H. Beyle, mas na edição italiana a que tive acesso simplesmente Stendhal, mio cugino, Stendhal, meu primo, cheio de anedotas e revelações sobre Stendhal: o ferimento no pé em um duelo; como gostava de manter as unhas das mãos sempre muito longas e muito limpas; como a mãe de Stendhal lia Dante e Tasso em voz alta em casa em sua infância (filiação italiana absolutamente atípica na França de fins do século XVIII); como o escritor não gostava da calvície que o ameaça cada vez mais ano após ano – e como penteava o cabelo para frente, para esconder as entradas, o que se percebe claramente nos retratos. 

2) Evidentemente se destaca a figura de Napoleão, como já se destacava também em Vertigem, de Sebald, que dedica a primeira parte de seu primeiro romance à figura de Stendhal (é no confronto com o livro de Sebald que leio o livro de Colomb): é gritante também a diferença de densidade e estilo entre Colomb e Sebald, o modo como Sebald consegue condensar, já no parágrafo de abertura, sensações, medos, perspectivas, temores e fatos biográficos, com maestria e gravitas (Colomb, por sua vez, é paratático: de uma coisa a outra sem coesão ou preocupação, dispersando anedotas sem costurá-las). Colomb enfatiza como a derrota/retirada na Rússia afetou a saúde de Stendhal, prejudicando seus pulmões e seu coração, uma debilidade que o teria levado à morte prematura em 23 de março de 1842, aos 59 anos.

3) Colomb relata uma série de percepções de Stendhal com relação à língua e, especialmente, seu sotaque (o que faz pensar naquilo que Derrida escreveu sobre René Char e seu incômodo com o sotaque do poeta), de como ele chegou, ainda jovem, a Paris e fez todo o esforço possível para se livrar do sotaque de origem - mantendo, contudo, "um tom decidido e apaixonado" que revela "imediatamente a força dos sentimentos" (algo que Stendhal diz ser típico do Midi, o sul da França mediterrânica e atlântica). Em torno disso, a relação de Stendhal com as línguas, seu aprendizado do inglês, do alemão e especialmente do italiano - chegando ao ponto de instruir seus herdeiros que sua lápide deveria conter o nome Arrigo Beyle (e de fato está lá, no cemitério de Montmartre), seguido da frase: milanese, scrisse, amò, visse

sábado, 22 de julho de 2023

A lanterna de Virgílio



1) No canto XXII do Purgatório, Dante estabelece um diálogo entre dois modelos seus de poetas do passado, de um lado Estácio, do outro Virgílio, comprimidos na encosta da montanha. Entre os muitos detalhes luminosos da passagem, está uma lição de leitura, ou melhor, de "má leitura" ou de leitura "equivocada": Virgílio, que morre antes do nascimento de Cristo, pergunta a Estácio como este se tornou cristão (Publius Papinius Statius nasce em Nápoles por volta do ano 45 e morre por volta do ano 96); e Estácio responde que foi precisamente a poesia de Virgílio que o guiou pelo caminho da conversão (com isso Dante mostra que a poesia de seu guia maior pode ser cristão, de certa forma, avant la lettre).

2) A imagem criada por Dante é eloquente: na conversa que tem com Virgílio, quando explica como se deu sua conversão, Estácio afirma que o poeta maior e anterior segurou uma lanterna nas costas, algo que não tinha qualquer serventia para si próprio, mas que certamente ajudou aqueles que vinham atrás - ou seja, o próprio Estácio e outros poetas que viveram as primeiras décadas do cristianismo (uma imagem que ecoa naquela do Angelus Novus da tese IX Walter Benjamin; lembrando que Benjamin não só leu o livro de Auerbach sobre Dante - Dante como poeta do mundo terreno - como o cita em seu ensaio sobre o surrealismo, ambos de 1929 (ensaio de Benjamin e livro de Auerbach)). Estácio, portanto, força uma leitura de Virgílio e, nessa violência com o texto, inscreve sua própria experiência, a transformação de sua própria vida.

3) Estácio ainda pergunta a Virgílio por onde andam outros escritores importantes e caros a ele, como Terêncio e Plauto; estes e vários outros, responde Virgílio (como é o caso de Homero, por exemplo), estão no primeiro círculo do Inferno, onde também estou, acrescenta Virgílio. Alguns gregos estão lá também, continua Virgílio, como Eurípides, Simônides, Agatão. "Juntos conversamos com frequência sobre poesia". Essas insondáveis conexões entre tempos e textos, entre presenças e indivíduos (como Sordello e Virgílio, que se cumprimentam efusivamente sem se conhecer, apenas porque compartilham a cidade de origem), são possíveis porque Dante concebe um logos suprahistórico cristão que tudo organiza.

sábado, 8 de julho de 2023

A travessia



1) A recorrência do motivo da travessia em Sebald, algo que evoca Homero, Ulisses, a Divina comédia, e assim por diante: em Vertigem, um dos elementos de ligação entre os quatro capítulos é a evocação do caçador Graco de Kafka (um morto-vivo que roda o mundo sem poder aportar sua embarcação em lugar nenhum); ainda em Vertigem, a frase inicial do romance diz respeito precisamente a uma travessia, "em meados de maio de 1800", quando Napoleão e seus trinta e seis mil homens atravessaram o "Grande São Bernardo", empreitada considerada até então "como praticamente impossível".

2) No final de Os emigrantes, no capítulo de Max Aurach/Max Ferber (também a travessia de um nome, de uma identidade, de um afastamento com relação a Frank Auerbach), o narrador viaja a Bad Kissingen e pega uma balsa, tirando (e mostrando) uma fotografia da funcionária que guia a embarcação (uma passagem que vem imediatamente depois da visita ao cemitério, como um retorno da terra dos mortos); em Os anéis de Saturno, o narrador pega um pequeno barco para ir até Orford Ness, antigo espaço de testes secretos do governo britânico durante a guerra fria (uma paisagem pós-apocalíptica, escreve o narrador, talvez a imagem do nosso mundo depois do fim). 

3) De uma perspectiva biográfica, há certamente a travessia que leva do professor ao escritor, os decisivos anos da década de 1980, nos quais Sebald começa a publicar seus exercícios narrativos em revistas. É possível pensar ainda em uma travessia anterior, igualmente decisiva, aquela do Canal da Mancha, que o leva como jovem professor/estudante a Manchester em 1966 (essa primeira travessia leva também do alemão ao inglês, uma travessia linguística, contudo, que não é completada, que não é levada a suas últimas consequências, já que Sebald sempre utilizará o alemão como sua língua de trabalho, de narração).

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Benjamin e o romance

A cozinha da casa de Goethe em Frankfurt

1) Em um fragmento não publicado durante sua vida, intitulado “Lendo romances” (Rua de mão única), escrito por volta de 1928, Walter Benjamin aponta que romances devem ser “devorados”, que são “um prazer de consumo”: o leitor deve absorver o que acontece. Nesse ponto, Benjamin alcança um de seus típicos aforismos certeiros: “A arte do romance, assim como a arte da cozinha, começa no momento em que a matéria crua termina”. No caso do romance, a “matéria crua” é a experiência direta, que a literatura usa, transforma, transcende. Se existe uma Musa do romance, continua Benjamin, ela precisa ser uma espécie de “fada da cozinha” (Küchenfee), devendo atuar sobre a matéria crua do mundo, transformando-a em algo “com gosto” ou “sabor”: criar um romance é criar um prato – processos, fases de cocção, tempero.

2) Para Benjamin, o romance é sempre a experiência do outro, traduzida em linguagem complexa e mediada pela concatenação das estruturas formais. Por isso é diverso de uma peça de teatro ou da leitura de um poema, instâncias estéticas que, para acontecer, dependem de uma experiência existencial (estar diante do palco; sentir em si a articulação meticulosa entre métrica, ritmo, rima). A experiência do romance como um todo – como a estrutura complexa que se apresenta em seu todo apenas no ponto final – faz parte da construção existencial de seu protagonista, mas jamais estará em sobreposição plena com ela. Disso decorre a diferença incontornável entre o romance e as formas orais, entre o romance como gênero (e forma) e a narrativa como força, potência ou virtualidade (aquilo que Benjamin tenta rastrear em Nikolai Leskov no ensaio sobre o “contador de histórias”, por exemplo).

3) Benjamin não se dedica ao romance com o mesmo afinco que reserva à poesia, por exemplo, porque o romance é uma forma que não permite a repetição, não permite a interminável retomada (típica do conto oral, da criança que pede à mãe: “de novo”), não permite sequer o resumo – pois o romance sempre inviabiliza as tentativas de esquematização. Nesse sentido, o romance não pode existir para além do “fim” que é inscrito na última página, como uma pedra tumular, uma lápide (a “morte” está estruturalmente inscrita no romance, e por isso Benjamin evita essa forma de arte, algo que se percebe nas entrelinhas de um famoso aforismo em Imagens do pensamento: “toda a obra acabada é apenas a máscara mortuária da sua intenção”).

quinta-feira, 29 de junho de 2023

Crise e transformação



1) No quarto capítulo de seu livro The Benjamin Files, Fredric Jameson aponta "a mais característica atenção" de Benjamin àquilo que considera "histórico na história": os momentos de "crise e transformação" (p. 67). Rupturas, limites e fronteiras; pontos de clivagem entre o que já foi e o que ainda não é; em suma, mais uma elaboração da fábula de Kafka sobre o homem que quer construir uma casa com o material de outra e termina com duas casas semi-destruídas.

2) Auerbach, quando publica seu livro sobre Dante na década de 1920, também apresenta um momento de crise e transformação, falando do momento em que o mundo de Dante já não faz mais sentido para um de seus sucessores, Petrarca. Em outro momento do mesmo livro, ainda circulando ao redor dessa questão (a convivência tensa entre o discurso crítico e os momentos de ruptura ou de incompreensão), Auerbach fala da consciência histórica limitada da Idade Média e, por consequência, de Dante. Trata-se de uma ausência de "historicismo estético", uma inovação de Vico (segundo Auerbach, que também fala de Vico no livro sobre Dante, e também salientando a incompreensão de Vico em particular - e de seu século em geral - diante da Comédia). 

3) É possível lembrar o exemplo dado por Roberto Calasso em seu livro sobre Kafka, chamado simples e efetivamente de K. Calasso cita uma passagem de um caderno de 1922 (que está em Nachgelassene Schriften und Fragmente II): "A escrita se nega a mim", escreve Kafka. "Investigação e descoberta de elementos tão mínimos quanto possível. Com eles quero depois me construir. Como alguém que tem uma casa insegura e quer construir outra, segura, ao lado, com o material da antiga. Mas a coisa fica séria se, durante a construção, suas forças o abandonarem e então, em vez de uma casa insegura mas completa, ele ficar com uma casa semidestruída e outra pela metade, ou seja, com nada" (K., tradução de Samuel Titan Jr., Companhia das Letras, 2006, p. 25).

sábado, 24 de junho de 2023

Convicção


1) É digno de nota o modo como Auerbach - em seu livro Dante como poeta do mundo terreno - liga o gênio de Dante à sua obsessão, sua fixidez, sua megalomania, sua liberdade de acreditar que estava fazendo algo novo e grandioso, inédito e transformador - a profunda convicção de que era melhor que seus contemporâneos, que era tão bom quanto Virgílio. Com isso, fica posta a questão da relação entre obra e megalomania, algo que Harold Bloom também aponta como decisivo no caso de Shakespeare e sua "invenção do humano" (em certa medida, é o que Bloom vai identificar em todos os poetas fortes em A angústia da influência). 

2) A história do romance no século XX é um desdobramento (e uma intensificação) dessa percepção que Auerbach tem de Dante e que Bloom tem de Shakespeare: logo no início do século, os projetos artísticos de James Joyce e Thomas Mann se desenvolvem sob o signo da desmedida, da audácia, do desejo de renovar as ambições estéticas a cada novo livro (no caso de Joyce, esse movimento fica condensado na passagem do Ulisses para o Finnegans Wake; no caso de Mann, é reiterado várias vezes, de Buddenbrooks em 1901 para A montanha mágica em 1924, com o ciclo José e seus irmãos de 1933 a 1943, com o Doutor Fausto em 1947).

3) Nas últimas décadas do século XX, outros dois casos emblemáticos: em primeiro lugar, Thomas Bernhard, que fez da desmedida de seu ódio (e de vários outros ugly feelings correlatos) o motor de sua ficção e, sobretudo, de seu estilo (desde Perturbação, de 1967, até seu último romance, imenso, pantanoso e inesgotável, Extinção, de 1986); em segundo lugar, Roberto Bolaño, que repete a inconclusão de Joyce (em Finnegans Wake) com 2666, lançado postumamente em 2004, continuação e complexificação da cartografia obsessiva de Os detetives selvagens, de 1998.