sábado, 26 de junho de 2021

Multidões


1) Na introdução que escreve ao "Montaigne de Shakespeare" (a tradução de John Florio), Stephen Greenblatt comenta como os ensaios de Montaigne foram sendo "montados" com o passar do tempo, tendo sido publicados em 1580, modificados e ampliados em 1588 e mais uma vez modificados e ampliados depois da morte de Montaigne (a partir do trabalho de Marie de Gournay, que transcreveu o material inédito e publicou a primeira edição completa em 1595). Greenblatt registra ainda que só em 1919 surge uma edição dos Ensaios que separa as camadas do texto, identificando os acréscimos posteriores de Montaigne. 

2) Montaigne, contudo, não tinha interesse em tornar visível essa estratificação, escreve Greenblatt, um efeito de homogeneidade que era intensificado pelo fato do livro ter sido impresso originalmente sem quebra de parágrafo. A segunda edição, de 1588, tem 13 novos capítulos no Livro I e cerca de 600 alterações nos livros Livros I e II, fazendo dos Ensaios um texto em aberto "no qual a passagem do tempo se faz presente", como escreve Greenblatt. Da mesma forma que não se preocupava em identificar o que veio antes e o que veio depois, Montaigne também não tinha interesse em demarcar com clareza o que era contradição e o que era desdobramento lógico de uma ideia anterior - os registros estão deliberadamente atravessados.

3) Os primeiros leitores de Montaigne (incluindo Shakespeare) entram em contato, portanto, com "um único eu que contém multidões", escreve Greenblatt, fazendo de Montaigne uma sorte de precursor de Walt Whitman. Greenblatt fala dos Ensaios como um espaço no qual "vozes muito diferentes" lutam por atenção, mais uma vez de forma estratificada e tensionada, antecipando com isso também a discussão de Bakhtin a partir de Dostoiévski (dialogismo, polifonia, distintos registros linguísticos compartilhando uma mesma página) e, até certo ponto, a dinâmica heteronímica de Fernando Pessoa (a leitura que Greenblatt propõe do Montaigne traduzido ao inglês na época de Shakespeare permite revisitar textos e autores posteriores por outra perspectiva, a partir de um conjunto alternativo de questões e coordenadas espaciais e temporais).

segunda-feira, 21 de junho de 2021

Tripas à mostra


1) Quando finalmente cita Wilcock em Bartleby e companhia (algumas páginas depois de utilizar, sem mencionar a fonte, a frase que serve de epígrafe ao livro de Wilcock, Lo stereoscopio dei solitari), Vila-Matas utiliza um conto, "O vaidoso": Fanil, o protagonista, tem a pele e os músculos transparentes, com os órgãos expostos como numa vitrine. Os pulmões inflam, o coração bate, as tripas se contorcem, tudo à vista, à mostra: quando uma pessoa tem uma peculiaridade, escreve Wilcock, cita Vila-Matas, em vez de escondê-la, faz alarde e, às vezes, chega a fazer dela sua razão de ser (até alguém dizer: "o que é essa mancha branca? Não estava aí antes"; então se vê onde vão parar as exibições desagradáveis).

2) Vila-Matas insiste sutilmente no procedimento de utilização indireta de elementos de um mesmo texto: começa com a epígrafe secreta de Wilcock, continua com a menção direta ao autor e o uso do conto e finaliza com uma terceira evocação - na parte final de Bartleby e companhia, retorna o tema do interior do corpo visível como em uma vitrine. Esse terceiro momento de utilização de Wilcock está no capítulo 62 do livro de Vila-Matas, quando o narrador fala de sua demissão do escritório (o chefe descobre que ele fraudou um laudo médico) e de sua releitura de alguns trechos do Diário de Witold Gombrowicz.

3) O narrador de Vila-Matas está comendo em um restaurante, para onde levou o livro de Gombrowicz. Comenta os trechos nos quais Gombrowicz fala do ridículo de Léon Bloy, outro diarista, o ridículo de Bloy se colocar de joelhos em "fervorosa oração". De repente, o narrador de Vila-Matas se desagrada "enormemente" com os restaurantes e as pessoas ali reunidas, palitando os dentes: "Para piorar, os homens, por sua vez, como se tivessem se tornado transparentes, deixavam à mostra, apesar de estarem metidas em enormes calças, suas panças, deixavam à mostra o interior delas no exato momento em que eram alimentadas pelos asquerosos órgãos de seus aparelhos digestivos".

sexta-feira, 18 de junho de 2021

O vaidoso


1) Em Bartleby e companhia, no final do terceiro capítulo (a terceira nota de rodapé para um texto invisível, mas não inexistente, como escreve o narrador), Vila-Matas abruptamente incorpora uma citação de "Marius Ambrosinus": "Em minha opinião, Deus é uma pessoa excepcional". De onde vem essa frase? Ela surge como conclusão de uma longa digressão que confronta Rimbaud e Sócrates pelo viés da possessão pelo "divino", pelas "forças superiores" (mas fica muito claro ao longo do livro que "Deus" é uma espécie de entidade que exemplifica perfeitamente o paradoxo central da narrativa: como algo pode ser invisível, mas não inexistente?).

2) Algumas páginas adiante, no fim do quinto capítulo do livro, depois de comentar as décadas finais de vida de Robert Walser e sua experiência de internamento, Vila-Matas evoca um conto de Juan Rodolfo Wilcock, citado em espanhol, "El vanidoso" - o conto foi escrito originalmente em italiano ("Il vanesio") para o volume Lo stereoscopio dei solitari, de 1972. O narrador cita uma frase de Wilcock que encontra em uma entrevista - o recorte cai de dentro do livro (na verdade a frase citada está numa auto-apresentação de Wilcock que consta tanto da edição italiana quanto da edição argentina, que é provavelmente a fonte de Vila-Matas): "entre meus autores preferidos estão Robert Walser e Ronald Firbank, e todos os autores preferidos por Walser e por Firbank, e todos os autores que estes, por sua vez, preferiam".

3) A frase de "Marius Ambrosinus" sobre Deus é escolhida por Wilcock como epígrafe de Lo stereoscopio dei solitari, é essa a fonte de Vila-Matas (livro que aparecerá diretamente algumas páginas depois, quando é citado o conto de Wilcock, embora o título não seja mencionado). Descobrindo esse fato, o leitor tem a impressão de que o narrador de Vila-Matas está iniciando a leitura do livro de Wilcock no momento em que escolhe reproduzir sua epígrafe (de forma abrupta, sem indicar a fonte), e que segue a leitura dos contos enquanto escreve seu próprio livro, suas próprias notas sobre o texto invisível (até o momento em que encontra um lugar para citar Wilcock diretamente, dentro de seu livro em andamento).  

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Através da neve


1) Do interior de uma novela cujo protagonista é um morto que retorna (Chabert, o coronel de Napoleão), Jacques Austerlitz recupera - fisicamente, materialmente - uma fotografia dele próprio de outra vida, da infância, de um mundo que não existe mais (de uma época em que seus pais, e tantos outros milhões de pais, ainda estavam vivos). É possível relembrar que, na novela de Balzac, o corpo de Chabert retorna dos mortos - de sob a montanha de cadáveres - através da neve ("Enfim vi a luz, mas através da neve, senhor!"). Isso pode remeter à história que encerra a primeira parte de Os emigrantes, quando o narrador lê no jornal que os restos do corpo do alpinista Johannes Naegeli, desaparecido desde 1914, tinham sido descobertos na "geleira de Oberaar".

2) "Assim é que eles voltam, os mortos", escreve o narrador de Sebald em Os emigrantes - fazendo de Naegeli, o alpinista, um elo na cadeia que articula Austerlitz, Chabert, o caçador Graco de Kafka (evocado em Vertigem e também ele inserido na "estereometria superior" que aproxima vivos e mortos), a fixação de Stendhal da mão de Métilde (o molde em gesso da mão esquerda da mulher sobre sua escrivaninha, numa antecipação daquele "sex appeal do inorgânico" de que falará Benjamin no futuro), a fixação de Nabokov - literal e metafórica - das borboletas e das "ninfas" (o homem que caça borboletas é um personagem que percorre todas as histórias de Os emigrantes; a autobiografia de Nabokov era uma dos livros prediletos de Sebald, que a comenta em Campo Santo).

3) Como retornam os mortos, como podem retornar, como podem suprir - mesmo que de forma indireta - a falta que fazem, as tarefas que deixaram em suspenso? Conjunto de questões que Sebald retira de Kafka e Benjamin em iguais medidas - e que leva também para sua leitura de Nabokov, por exemplo: quando comenta a autobiografia de Nabokov, Sebald singulariza o momento que mais o emociona: o menino Nabokov vê seu pai sendo jogado para o alto pelos camponeses, em celebração - a visão é de dentro de casa, através da janela, de modo que o pai aparece e desaparece, como por mágica (com essa evocação Nabokov busca preservar uma potência de retorno da figura paterna, apagada pela distância e pelo caráter prematuro e abrupto de seu assassinato, em março de 1922, em Berlim).

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Vermelho/verde


1) Com o posicionamento da novela de Balzac - O coronel Chabert - no centro de seu romance Austerlitz, Sebald não acrescenta camadas de sentido apenas à trajetória específica do protagonista, mas acrescenta também outra complexa engrenagem no sistema geral de referências de sua obra como um todo: "Balzac" funciona como metonímia de todo um mundo perdido (Chabert é um dos cinquenta e cinco volumes luxuosamente encadernados atrás de uma cristaleira), o mundo burguês organizado do século XIX, objeto de estudo não só de Jacques Austerlitz, mas também de Walter Benjamin, paisagem afetiva e efetiva de autores como Adalbert Stifter, Gottfried Keller e Eduard Mörike, leituras constantes de Sebald.  

2) É preciso ainda atentar que os dois livros levam como título o nome do protagonista - e que, além disso, são dois protagonistas envolvidos na tarefa de resgatar da "morte" (do esquecimento, do soterramento) uma vida vivida outrora (a infância de Austerlitz, a glória napoleônica de Chabert). Pelo viés napoleônico, Chabert é a oportunidade que tem Sebald de reforçar as ligações subterrâneas com o capítulo de Vertigem - sua primeira obra de prosa publicada - dedicado a Stendhal, o romancista napoleônico por excelência do século XIX (esses dois pontos napoleônicos da obra de Sebald - Balzac/Chabert em Austerlitz, Stendhal em Vertigem - vão convergir no futuro, na obra inacabada dedicada à Córsega, Campo Santo, na qual o narrador visita a Casa Bonaparte e comenta o daltonismo do Imperador, que o impedia de diferenciar vermelho e verde - quanto mais sangue derramava, mais frescos via os gramados).

3) Com Chabert, Balzac antecipa Marx e postula que um espectro ronda o presente da França que se quer "restaurada" (usando Balzac e Chabert, Sebald amplia a tese e postula que em todo e qualquer espaço sempre haverá espectros rondando: "Não me parece, disse Austerlitz, que compreendamos as leis que governam o retorno do passado, mas sinto cada vez mais como se o tempo não existisse em absoluto, somente diversos espaços que se imbricam segundo uma estereometria superior, entre os quais os vivos e os mortos podem ir de lá para cá como bem quiserem", p. 182, logo na sequência do aparecimento do livro de Balzac - não por acaso). 

terça-feira, 8 de junho de 2021

O volume carmesim


1)
Em Austerlitz, Sebald posiciona estrategicamente uma menção à novela de Balzac, O coronel Chabert, que funciona como uma espécie de dispositivo que permite o retorno de fantasmas e espectros do passado - com isso, Sebald oferece um comentário sobre Balzac que também é um uso do texto, uma performance e uma atualização a partir de um texto do passado (que passa a fazer parte da dinâmica de um texto do presente, exemplificando dessa forma a ideia sebaldiana, defendida em diferentes facetas ao longo de Austerlitz, de que passado e presente estão em diálogo, em relação constante).

2) Vera entrega a Austerlitz "duas fotografias de formato pequeno", encontradas "por acaso em um dos cinquenta e cinco volumes carmesins de Balzac que lhe fora parar nas mãos"; ela encontra as fotografias "folheando as páginas da famosa história da grande injustiça sofrida pelo coronel Chabert", mas "como as duas fotos tinham ido parar entre as páginas era um mistério para ela"; esses artefatos tem "uma natureza insondável", "própria de tais fotografias emersas do esquecimento": a impressão é "que alguma coisa se agita dentro delas, como se ouvíssemos pequenos gemidos de desespero", como se "as fotos tivessem memória própria e se lembrassem de nós, de como nós, os sobreviventes, e aqueles que já não estão entre nós, éramos então" (p. 178-180). 

3) A novela de Balzac é tanto um adereço cênico - que ocupa um determinado espaço na trama, que contribui para oferecer informações que até aquele momento não se tinha - quanto um cristal complexo de condensação de temporalidades e ideias (o coronel morto que retorna, a infância soterrada de Austerlitz que retorna). Em Balzac, Chabert é essa entidade do passado que tem "memória própria" e que lembra de como eram os sobreviventes e os não-sobreviventes, especialmente Napoleão; em Sebald, essa potência da entidade que vem do passado é tornada difusa e canalizada para um comentário sobre a aura ambígua da fotografia - uma dimensão difusa, contudo, que é tornada palpável e contundente com o recurso ao livro como artefato e objeto, encontrado "por acaso". 

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Universo, papel


1) Quando escreve a História abreviada da literatura portátil, Vila-Matas escolhe uma epígrafe de Paul Valéry, de Monsieur Teste: "O infinito é uma questão de escrita. O universo só existe no papel" (é curioso pensar nessa frase em uma novela da década de 1980, evocando a frase de Derrida na Gramatologia, "il n'y a pas de hors-texte", que por sua vez já evocava indiretamente Valéry). Com a epígrafe, Vila-Matas prepara o terreno para a reconfiguração jocosa que irá propor da história da literatura e da arte no século XX - já que o universo "só existe no papel", é possível propor a conjura portátil como algo que simultaneamente acontece e não acontece (Crowley, Duchamp, Picabia, Walser...).

2) O jogo de escalas que Duchamp propõe na caixa-maleta serve de mote para Vila-Matas propor a conjura portátil, mostrando que no fim das contas o "fora do texto" também existe (ou seja, diz respeito à movimentação dos corpos no espaço, nas ruas, nos cafés, nos locais secretos - é fundamental fazer uma obra portátil para que ela possa ser movimentada, para que ela possa fazer parte da cidade, do espaço, da comunidade). Esse traço subterrâneo da História abreviada só ganhará a superfície quase vinte anos depois, com Paris não tem fim, de 2003, livro no qual Vila-Matas declara sua filiação imaginativa com o situacionismo e sua teoria da ocupação do espaço urbano.

3) Em Suicídios exemplares, Vila-Matas cita Pessoa: "viajar, perder países" (assim como o resgate de Valéry faz pensar em um Derrida que ainda não existia, a evocação de Pessoa faz pensar em um Debord que ainda estava para nascer). Dependendo do percurso escolhido para ler a História abreviada (sempre na chave paródica, por exemplo), Valéry na epígrafe pode ser também uma evocação de Borges e do Pierre Menard: quando fala de "Borges francófobo", Juan José Saer defende a ideia de que Valéry é a figura que dá sustentação a Menard, servindo tanto de modelo quanto de alvo paródico, exaltando e dissolvendo em um mesmo movimento sua "obra visível" (assim como no Menard de Borges, portanto, a evocação de Valéry em Vila-Matas pode não ser apenas celebratória, mas carregar sub-repticiamente um aceno à vaidade dos "homens de letras").