1) Sabemos que as Crônicas italianas de Stendhal foram escritas tendo como base uma série de manuscritos que o escritor francês comprou/copiou ao longo de suas várias temporadas na Itália. As Crônicas são textos híbridos, heterogêneos - contam com a voz do autor (que indica cortes e intervenções com frases como "me permito poupar ao leitor os detalhes mais enfadonhos de um trecho que se estende por 40 folhas") e também com muitos trechos citados literalmente (com aspas) e muitos outros parafraseados (Stendhal aprecia manter vários termos no original em italiano e utilizar os parênteses como um espaço de contextualização e explicação para o público francês do século XIX).
2) Leonardo Sciascia não perde oportunidade de citar Stendhal como um dos escritores favoritos e, no interior de sua obra, singularizar precisamente as Crônicas italianas. Não apenas o estilo de Sciascia se esforça para se aproximar daquele de Stendhal; no que diz respeito às Crônicas, todo o esforço de coleta, exposição, edição e narração de um material de difícil acesso por parte de Stendhal é deliberadamente resgatado por Sciascia: também ele pinça a história pitoresca e, no interior dela, um conjunto de detalhes reveladores; também Sciascia, seguindo Stendhal, faz referência com frequência ao preconceito dos historiadores a certos eventos "menores" (sobretudo histórias de tribunal, como em 1912+1 ou Portas abertas, de Sciascia, e boa parte das Crônicas de Stendhal - por essa perspectiva, a deriva que Carlo Ginzburg inaugura com Menocchio em 1976 é decisiva).
3) Sebald, como grande leitor que era, reconhecia essa afinidade decisiva entre Sciascia e Stendhal, fazendo uso desse conjunto complexo de elementos (arquivo, estilo, micro-história) em sua própria poética. Certamente não é por acaso que Sebald posicione no mesmo livro (Vertigem, de 1990) narrativas que incorporam tanto Sciascia quanto Stendhal - Sebald era diabolicamente atento às lições subterrâneas da montagem, ou seja, aquele lampejo de sentido que irrompe do atrito entre dois corpos estranhos. Sebald também une as duas narrativas (e os dois autores) a partir do recurso ao retrato feminino: em Stendhal, Sebald incorpora à narrativa o retrato de uma de suas amantes, Angela Pietragrua; para Sciascia, o narrador faz referência à capa da edição italiana de 1912+1, com uma pintura de Julio Romero de Torres.
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