1) O mote de um texto anterior foi o de uma relação subterrânea entre Sebald, Bulgákov e Bioy Casares, relação essa construída a partir de ficções nas quais certos personagens surgem como atipicamente sensíveis aos fluxos e contrafluxos que ligam o mundo físico - material - ao mundo metafísico, espiritual, espectral. Esse é um tema que percorre toda a obra de Sebald, não apenas sua poematização da vida de Grünewald, mas que é episódico tanto em Bulgákov quanto em Bioy Casares, ainda que alcance uma de suas realizações máximas com a fenomenologia hologramática de A invenção de Morel.
2) Um desses contrafluxos me atingiu diretamente quando abri Operação Shylock, de Philip Roth, e por acaso encontrei a seguinte passagem grifada, que comenta a revista que o narrador faz a um quarto de hotel:
Tenho esses dois envelopes, juntamente com a estrela de pano e seus "Dez princípios dos A-S. A." escritos à mão, a meu lado na mesa enquanto escrevo, para atestar a tangibilidade de uma visita da qual mesmo eu preciso viver me reafirmando de que só aparentemente teve a aparência de uma farsa absurda, grosseira, fantasmagórica. Esses envelopes e seus conteúdos me lembram que aquela aparência espectral, meio demente, era na verdade a própria marca característica de uma indiscutível realidade muito semelhante à vida e que, quando a vida parece menos o que deve parecer, aí talvez é que seja mais o que ela é mesmo. (p. 227).
É difícil pensar em um escritor mais diferente de Sebald que Philip Roth e, ainda assim, em Operação Shylock ele aparece como um comentador dessas aparições "espectrais", partindo de uma evidência completamente diversa: os envelopes guardam "miúdos fios de uma barba humana" e "uma espiral de pêlo púbico negro, mais ou menos da forma de um & corpo quatorze", que estava "grudado na borda esmaltada do vaso". Sebald transfigura a materialidade depois do contato com os espectros, enquanto Roth, a partir de um minucioso e irônico inventário da materialidade, faz do espectral uma espécie de permanente presença paralela à realidade, sempre pronta a reafirmar a "farsa absurda, grosseira, fantasmagórica".
3) Algumas páginas adiante, Roth escreve: "É melhor as coisas reais serem incontroláveis, é melhor que nossa vida seja indecifrável e intelectualmente impenetrável do que tentar extrair com uma fantasia maluca um sentido causal do desconhecido" (Philip Roth, Operação Shylock, trad. Marcos Santarrita, Cia das Letras, 1994, p. 260). É decisivo que tal reflexão, assim como várias outras análogas, esteja em seu livro sobre Israel, Jerusalém e, em última instância, seu livro sobre a Shoah. Sobretudo nos trechos de Operação Shylock em que Roth se baseia nas suas conversas com Aharon Appelfeld fica claro que é em direção à experiência extrema do extermínio que termos como "farsa", "fantasia", "espectro", "fantasma" buscam boa parte de seus sentidos ("quando a vida parece menos o que deve parecer, aí talvez é que seja mais o que ela é mesmo").
Aharon Appelfeld |