sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Dois envelopes

1) O mote de um texto anterior foi o de uma relação subterrânea entre Sebald, Bulgákov e Bioy Casares, relação essa construída a partir de ficções nas quais certos personagens surgem como atipicamente sensíveis aos fluxos e contrafluxos que ligam o mundo físico - material - ao mundo metafísico, espiritual, espectral. Esse é um tema que percorre toda a obra de Sebald, não apenas sua poematização da vida de Grünewald, mas que é episódico tanto em Bulgákov quanto em Bioy Casares, ainda que alcance uma de suas realizações máximas com a fenomenologia hologramática de A invenção de Morel
2) Um desses contrafluxos me atingiu diretamente quando abri Operação Shylock, de Philip Roth, e por acaso encontrei a seguinte passagem grifada, que comenta a revista que o narrador faz a um quarto de hotel:
Tenho esses dois envelopes, juntamente com a estrela de pano e seus "Dez princípios dos A-S. A." escritos à mão, a meu lado na mesa enquanto escrevo, para atestar a tangibilidade de uma visita da qual mesmo eu preciso viver me reafirmando de que só aparentemente teve a aparência de uma farsa absurda, grosseira, fantasmagórica. Esses envelopes e seus conteúdos me lembram que aquela aparência espectral, meio demente, era na verdade a própria marca característica de uma indiscutível realidade muito semelhante à vida e que, quando a vida parece menos o que deve parecer, aí talvez é que seja mais o que ela é mesmo. (p. 227).
É difícil pensar em um escritor mais diferente de Sebald que Philip Roth e, ainda assim, em Operação Shylock ele aparece como um comentador dessas aparições "espectrais", partindo de uma evidência completamente diversa: os envelopes guardam "miúdos fios de uma barba humana" e "uma espiral de pêlo púbico negro, mais ou menos da forma de um & corpo quatorze", que estava "grudado na borda esmaltada do vaso". Sebald transfigura a materialidade depois do contato com os espectros, enquanto Roth, a partir de um minucioso e irônico inventário da materialidade, faz do espectral uma espécie de permanente presença paralela à realidade, sempre pronta a reafirmar a "farsa absurda, grosseira, fantasmagórica".
Aharon Appelfeld
3) Algumas páginas adiante, Roth escreve: "É melhor as coisas reais serem incontroláveis, é melhor que nossa vida seja indecifrável e intelectualmente impenetrável do que tentar extrair com uma fantasia maluca um sentido causal do desconhecido" (Philip Roth, Operação Shylock, trad. Marcos Santarrita, Cia das Letras, 1994, p. 260). É decisivo que tal reflexão, assim como várias outras análogas, esteja em seu livro sobre Israel, Jerusalém e, em última instância, seu livro sobre a Shoah. Sobretudo nos trechos de Operação Shylock em que Roth se baseia nas suas conversas com Aharon Appelfeld fica claro que é em direção à experiência extrema do extermínio que termos como "farsa", "fantasia", "espectro", "fantasma" buscam boa parte de seus sentidos ("quando a vida parece menos o que deve parecer, aí talvez é que seja mais o que ela é mesmo").

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

15 de maio de 1525, de 1891



No final de Austerlitz, na última página do romance, Sebald dá a própria data de nascimento como data de morte de uma vítima de Hitler, Max Stern, Paris, 18.5.44. No seu livro de estreia, Nach der Natur, poema narrativo dividido em três partes, quando fala do pintor Mathias Grünewald, Sebald fala da batalha de Frankenhausen, que aconteceu no dia 15 de maio de 1525
e que, como tantos outros eventos da época, está retratada nessa que é a maior pintura a óleo do mundo, com mais de 120 metros de comprimento. Em Nach der Natur, Sebald fantasia acerca do momento em que Grünewald, que tinha o hábito de colocar o próprio rosto de forma mais ou menos disfarçada em vários dos personagens de seus quadros, o momento em que Grünewald toma conhecimento do massacre de camponeses ocorrido na batalha - segundo Sebald em seu poema, o dia em que Grünewald toma conhecimento do fato é justamente o dia 18 de maio, e Grünewald fica tão abalado que "durante semanas", escreve Sebald no poema, "usa um pano negro sobre o rosto". Em 18 de maio de 1525, Grünewald esconde o rosto que tantas vezes mostrou (e segue mostrando) em seus quadros.
Em Nach der Natur, Sebald faz de Grünewald alguém extremamente sensível, alguém que percebia no real algo que não pertencia diretamente ao real, mas que dele fazia parte de forma misteriosa, insondável - os corpos dos camponeses massacrados, por exemplo, são percebidos pelo Grünewald como ainda visíveis, perceptíveis. Os infernos estão abertos e em constante permutação com a vida na superfície, assim parece para Grünewald, segundo Sebald (também ele tão imbuído dessa sensibilidade para os espectros). Um pouco como Satanás e seu séquito em visita a Moscou, como um dia sonhou e realizou Mikhail Bulgákov
Satánas e seu séquito encontram poetas, editores, burocratas e todo tipo de pessoas tentando levar a vida em pleno regime comunista. Bulgákov levou quase dez anos para terminar o romance, ditando à mulher as últimas revisões semanas antes de morrer, em março de 1940. Bulgákov, que nasceu em 15 de maio de 1891, no dia da batalha de Frankenhausen, chegou a queimar uma versão inicial de O mestre e Margarida, mas a versão final sobreviveu e Bulgákov chegou a dar ao demônio em seu livro uma frase sucinta mas reveladora, que na Rússia se tornou proverbial: manuscritos não ardem. Quando morria Bulgákov, quando dava os últimos retoques em seu romance em 1940, do outro lado do mundo, em Buenos Aires, Bioy Casares finalizava também ele um livro, menor, mas que lida com temores e fantasias semelhantes.
Não é apenas o caso de Bulgákov e Bioy elaborarem fábulas acerca da irrealidade da realidade, e sim certa ênfase na capacidade de um determinado indivíduo de perceber tanto o fantástico (o demônio, os hologramas) quanto a insistência desse fantástico de passar ignorado pelo restante do mundo. Talvez A invenção de Morel possa ser lido não como o relato da passagem do desconhecido ao conhecido, o relato da progressiva familiarização do Fugitivo com a ilha, mas o relato de alguém que transfigura a própria visão de mundo ao perceber a porosidade desse mundo diante daquilo que não se pode controlar, explicar (não seriam os rostos dos hologramas o próprio rosto do Fugitivo, à maneira de Grünewald, mesclando próprio e alheio no registro de sua arte?).  

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Esferas, vida-morte

1) Já nas primeiras páginas de Esferas I Sloterdijk fala de Nietzsche e da Gaia ciência, referência recorrente ao longo de todo o livro. Nietzsche, "o magistral formulador daquelas verdades com as quais não se pode viver", escreve Sloterdijk, "mas que tampouco se pode pretender ignorar, para não ofender a probidade intelectual", "articulou conclusivamente o que o mundo em seu todo deve se tornar para os empreendedores modernos com base nessa percepção: 'uma porta abrindo-se para mil desertos, vazios e glaciais'. Viver na época moderna significa pagar o preço da ausência de camadas protetoras" (p. 25).
2) Poucas páginas adiante, Sloterdijk fala de Nietzsche como esse "Diógenes trágico", concluindo que "pode-se considerar a civilização técnica, sobretudo sua aceleração no século XX, como a tentativa de sufocar as questões levantadas pelos testemunhos cruciais de Nietzsche em um manto de conforto" (p. 28). O trecho todo é construído como um comentário de Sloterdijk ao fragmento 125 da Gaia ciência; a exposição decorrente, contudo, especialmente quando Sloterdijk comenta as várias mortes que são necessárias para assegurar a ficção da individualidade do sujeito sob a benção da razão instrumental, toda essa exposição de Sloterdijk, portanto, é um desdobramento de uma parte do fragmento 109 do mesmo livro de Nietzsche:
Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas necessidades: não há ninguém que comande, ninguém obedeça, ninguém que transgrida. Quando vocês souberem que não há propósitos, saberão também que não há acaso: pois apenas em relação a um mundo de propósitos tem sentido a palavra "acaso". Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto, e uma variedade bastante rara. Guardemo-nos de pensar que o mundo cria eternamente o novo. (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência. tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza, Cia das Letras, 2001, p. 136).
A articulação entre o diagnóstico de Sloterdijk acerca do século XX - tentativa de sufocar as questões levantadas por Nietzsche - e a intuição do próprio Nietzsche acerca da coexistência entre morte e vida me fez pensar em Sebald e em seu percurso não como escritor, mas como crítico e pensador da literatura. 
3) Em 1973, Sebald termina sua tese de doutorado, O mito da destruição na obra de Alfred Döblin, que sai em livro em 1980. 

Na leitura muito particular de Sebald, Döblin surge como alguém ainda nostálgico do "manto de conforto" oferecido tanto pela nação quanto pela ideia de destruição total da nação, ou ainda a vida sob a expectativa messiânica de um evento, uma chegada revolucionária. Para Sebald, a fuga desse modelo - e, consequentemente, textos literários que podem ser associados ao projeto de Sloterdijk de rompimento do tal manto de conforto - está em Kafka e Beckett. Ao oferecer esses nomes como contrapontos ao trabalho de Döblin, Sebald cita uma frase de Molloy, o romance que Beckett publica em 1951: “viver é também se decompor”. Na tradução de Léo Schlafman:
É na tranquilidade da decomposição que me recordo desta longa emoção confusa que foi minha vida, e que a julgo, como se diz que Deus nos julgará e com a mesma impertinência. Decompor também é viver, eu sei, eu sei, não me atormente, mas não estamos sempre presentes. (Samuel Beckett, Molloy, Nova Fronteira, 1988, p. 23)

domingo, 11 de dezembro de 2016

Esferas, livro e deserto

Joel-Peter Witkin
1) Na primeira das dez "Digressões" intercaladas aos capítulos de Esferas I - Bolhas, Peter Sloterdijk fala da "Transmissão de pensamentos". A mente isolada, "tesouro cheio de representações", cerne inexpugnável da subjetividade, argumenta Sloterdijk, é uma novidade em termos "paleopsicológicos", "uma recente penugem sobre maciças camadas de realidades psicológicas mais antigas" (a força imagética dessa metáfora, tão característica do estilo de Sloterdijk). A noção de que haveria um interior privado no qual o sujeito poderia fechar a porta atrás de si, escreve Sloterdijk, "não surge antes da primeira vaga individualista na Antiguidade". E, ainda assim, não conseguimos nos movimentar fora desse espaço da inviolabilidade do pensamento, por mais recente que seja.  
2) A culpa, segundo Sloterdijk, é da escrita: a escrita "é o que torna possível que indivíduos se retirem da sociedade para se completarem a si mesmos com as vozes dos autores: quem pode ler também pode ser só. Apenas a alfabetização permite a anacorese: o livro e o deserto estão ligados" (a obra de Jacques Derrida cintila sob a sugestão desse comentário: da Farmácia de Platão - os indivíduos que "se retiram" da sociedade; a relação entre leitura e solidão - até Mal de arquivo - completar o "si" com as "vozes dos autores"; a articulação livro e deserto, arquivo e vazio).
3) Além disso, a argumentação de Sloterdijk nessa digressão se aproxima das questões levantadas por Derrida na Gramatologia: a "transmissão de pensamento" de que fala Sloterdijk é um dos tantos nomes da metafísica da presença, na medida em que, culturalmente, o Ocidente tem a necessidade de manter seus "finados reis divinos" e "deuses", que "mantiveram em marcha a história do mundo como uma série de guerras entre esses grupos de possessão fundados na telepatia e na psicose da influência, mais bem conhecidos como 'culturas'". A transmissão de pensamento liga-se, como procedimento, forçosamente à presença de um iniciado, um mestre - um sistema hierarquizante de isolamento do sujeito, um modelo de dependência, contrário àquele da escrita, que forneceria uma fenomenologia do isolamento comunicativo/produtivo. É significativo, portanto, que Sloterdijk encerre a Digressão com uma menção a Freud e à cena analítica, dentro da qual o próprio Freud, segundo Sloterdijk, eram reativadas certas "funções paleopsicológicas" (Peter Sloterdijk, "Digressão 1: Transmissão de pensamentos", in: Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 240-243).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Esferas, o lugar existencial

Malevich
É impossível explicar detalhadamente a habitação nas esferas enquanto o Dasein for concebido de um impulso essencial para a solidão. A analítica do Onde existencial exige, consequentemente, que se coloquem entre parêntese todas as sugestões e sentimentos de uma solidão essencial para se certificar das estruturas profundas do Dasein acompanhado e completo. Ante essa missão, o primeiro Heidegger permaneceu um existencialista, no sentido problemático do termo. Ao voltar-se apressadamente para a questão do Quem, ele deixa para trás um sujeito existencial solitário, fraco e histericamente heroico, o qual julga que deve ser o primeiro a morrer e vive no lastimável desconhecimento dos motivos mais ocultos de sua integração às intimidades e solidariedades. Um "Quem" superestendido em um "Onde" confuso pode trazer más surpresas para si mesmo quando pretende, ocasionalmente, ancorar-se no primeiro povo que aparece. 
Heidegger em 1934
Quando Heidegger, durante a revolução nacional, quis, como grande personalidade, aproveitar-se da maré imperial, ele apenas mostrou que a especificidade existencial, desacompanhada de uma clarificação radical de sua situação no espaço da política, produz o ofuscamento. A partir de 1934, Heidegger sabia, ainda que apenas implicitamente, que sua mobilização no levante nacional-socialista constituíra um caso de "ser-sugado": o tempo, aqui, se tornara espaço. Quem se deixa sugar pelo turbilhão, embora pareça estar aqui, vive em outra esfera, em um cenário distante, em um "Lá" interior impenetrável. A obra posterior de Heidegger extrai discretamente as consequências desse lapso. Da história passada, o iludido revolucionário nacionalista espera para si pouca coisa; retirou-se das empreitadas das potências. Buscará futuramente sua salvação em exercícios de proximidade cada vez mais intimistas. 
Aferra-se obstinadamente à sua província anárquica e organiza visitas guiadas à casa do Ser - a linguagem -, qual um porteiro mágico equipado de pesadas chaves e sempre pronto a fazer um aceno cheio de sentido. Nos momentos mais agitados, ele invoca a sagrada esfera parmenídica do Ser, como se tivesse retornado ao eleata, cansado da historicidade como de um espectro funesto. A obra tardia de Heidegger não cessa de reencenar, do começo ao fim, as figuras de resignação de um aprofundamento regenerativo do pensamento, sem jamais alcançar o ponto desde o qual se poderia retomar a questão da instalação original do mundo.
O presente projeto "Esferas" pode também ser entendido como uma tentativa de resgatar - ao menos em um aspecto essencial - o projeto Ser e espaço do subterrâneo em que ficou secundariamente confinado na obra inicial de Heidegger. Somos da opinião de que o interesse de Heidegger pelo enraizamento, na medida em que se pode salvar algo dele, só terá suas legítimas pretensões atendidas mediante uma teoria dos pares, dos gênios, da existência completada. Ter tomado pé na dualidade existente: é essa a medida de autoctonia ou de ancoragem no real que deve ser preservada, mesmo se a filosofia continua a levar a cabo aplicadamente sua obra irrenunciável de desacoplamento da comunidade empírica. Para o pensamento, trata-se agora de reexaminar a tensão entre autoctonia (ab ovo e desde a comunidade) e libertação (em face da morte ou do infinito). 

*
(Peter Sloterdijk, "Digressão 4: a teoria heideggeriana do lugar existencial", in: Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 308-309).

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Giotto e Boccaccio

Giotto fixou o instante fecundo desse reencontro [entre São Joaquim e Sant'Ana] como uma testemunha presente em espírito. Seu casal eleito não se saúda em um mundo vazio de homens: seis testemunhas circundam a cena principal e a retêm, como uma imagem interna, com seus olhos profanos. Não é apenas o observador que percebe o que o pintor quer dar a entender, a própria imagem está cheia de olhos que assistem ao acontecimento representado e o colocam em um espaço público imanente à imagem.
Por isso, o pintor Giotto já é mais novelista que contador de legendas; sua História Sagrada está mais próxima de um jornal da Terra Santa que de uma leitura monástica. Suas cenas não se desenrolam sob os olhos de teólogos dos mistérios e de eremitas, mas diante de uma sociedade urbana e cortês que quase não distingue mais entre história sagrada e secular na escolha de seus assuntos de conversação. A novela, como a sociedade dos tempos modernos, vive do que é interessante. Assim, aquilo que os observadores percebem diante do quadro também é visto pelos circundantes em seu interior. 
Quarenta anos antes de Boccaccio, Giotto redescobriu os "direitos humanos" do olho a ver imagens divertidas; no espírito da novela se anuncia a moderna repartição social do conhecimento de fatos que estimulam nossa inteligência afetiva e participativa. Os afrescos põem em ação uma vivacidade narrativa que ultrapassa o horizonte de suas fontes escritas, em particular da simplista literatura legendária, e dirige-se para o movimentado mundo do início dos tempos modernos. Poder-se-ia arriscar a afirmação de que Giotto já teria colocado o princípio de divertir o olho acima da lei da contemplação religiosa. Isto se mostra de modo particularmente notável no ponto mais candente do quadro da saudação. De fato, ali onde os rostos dos santos esposos entram em contato, o pintor, por um artifício óptico, faz aparecer um terceiro rosto. Para percebê-lo, deve-se desviar o olhar das duas figuras principais e dirigi-lo, em observação descentrada, para o campo em meio aos dois rostos. Aqui, e aqui apenas, é verdadeiro o dito de Lévinas: encontrar um ser humano significa manter-se desperto por um enigma. 
(Peter Sloterdijk, Esferas I: bolhas, trad. José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Estação Liberdade, 2016, p. 135-136)

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Somente o seu Decameron fixa, pela primeira vez após a Antiguidade, um certo nível estilístico, dentro do qual a narração de acontecimentos reais da vida presente se pode converter numa diversão culta; não mais serve como exemplo moral, e também não mais serve à despretensiosa vontade de rir do povo, mas ao divertimento de um círculo de pessoas jovens, distintas, e cultas, damas e cavaleiros que se deleitam com o jogo sensível da vida, e que possuem sensibilidade, gosto e opinião refinados (Erich Auerbach, Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. Vários tradutores, Perspectiva, 2009, p. 188).

Suas características mais evidentes, quando o comparamos com narrações mais antigas, são a segurança com que os fatos multipartidos são por ele dominados, tanto na sua visão, quanto na articulação sintática, e a flexibilidade com que adapta o nível do tom e o tempo da narrativa aos movimentos internos e externos dos acontecimentos (p. 190-191).

Sem Dante, tal riqueza de tonalidades e de perspectivas dificilmente teria sido possível. Mas da visão figural-cristã, que preenchia a imitação dantesca do mundo terreno e humano e lhe conferia a sua força e profundidade, nada mais aparece no livro de Boccaccio. As suas personagens vivem sobre a Terra, e só sobre a Terra; vê a abundância de aparições, de maneira imediata como um rico mundo de formas terrenas. E tinha direito a fazê-lo, pois não tinha de escrever nenhuma obra grande, grave e sublime; com muito mais direito do que Dante, chama o estilo do seu livro umilissimo e rimesso (introdução ao quarto dia), pois escreve realmente para diversão dos incultos, para consolo e divertimento das nobilissime donne que não vão a Atenas, Roma ou Bolonha para estudar. Com muito humor e graça se defende, no seu posfácio, contra aqueles que dizem que fica mal um homem grave e série escrever um livro com tantas piadas e gracejos (p. 195). 

domingo, 4 de dezembro de 2016

Todo e resto

1) Já no começo de Fragmentos de um discurso amoroso Barthes apresenta esse tópico que será recorrente, tópico que já mencionei, a relação entre interior e exterior e a modificação recíproca de cada uma dessas esferas a partir da intervenção - sempre intempestiva, extemporânea, abrupta - da carga de pathos que o olhar do artista (ou do crítico, ou de quem quer que seja) apresenta. "Esqueço todo o real que, em Paris, excede seu charme", escreve Barthes, e continua: "a história, o trabalho, o dinheiro, a mercadoria, a dureza das grandes cidades; nela vejo apenas o objeto de um desejo esteticamente retido. Do alto do Père-Lachaise, Rastignac lançava à cidade: Agora é entre nós dois; eu digo a Paris: Adorável!".
2) A ligação entre indivíduo e cidade vem dois parágrafos depois, quando Barthes escreve que "o sujeito amoroso percebe o outro como um Todo (à semelhança da Paris outonal) e, ao mesmo tempo, esse Todo parece-lhe comportar um resto, que ele não pode dizer". Na oscilação entre Todo e resto se dá o discurso amoroso, nesse intervalo em que se "imagina que o outro quer ser amado, como ele próprio gostaria de ser", escreve Barthes (um sistema de reciprocidade, de confluência e sobreposição entre Todo e resto), e continua: "o outro de que estou enamorado me designa a especialidade de meu desejo".
3) A virada desse argumento é sutil e complexa, pois Barthes vai usar Lacan (uma frase do primeiro Seminário: "não é todos os dias que se encontra o que é próprio para dar a vocês a imagem exata do desejo de vocês") para comentar "a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa" e, em seguida, vai usar Proust para lançar o "grande enigma" do qual "jamais descobrirei a chave": "por que desejo Fulano?" ("cena da especialidade do desejo: encontro de Charlus e de Jupiano no pátio do Palácio de Guermantes (no início de Sodoma e Gomorra)"). Antecipando as ideias sobre o punctum (mas também resgatando o que escreve sobre o barômetro de Flaubert em "O efeito de real"), Barthes insinua que a diferença entre a transferência analítica e a amorosa é que esta última se dá na operação do detalhe: "O que, nesse corpo amado, tem vocação de fetiche para mim? Que porção, talvez incrivelmente tênue, que acidente? A forma de uma unha, um dente um pouco partido obliquamente, uma mecha, um modo de separar os dedos falando, fumando?" (Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Márcia Valéria de Aguiar, Martins Fontes, 2003, p. 10-12).

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O discurso amoroso

1) Ontem, olhando o mar, pensei na recorrência desse momento enigmático em que interior e exterior se mesclam em um dado ponto arbitrário do tempo e do espaço. Em De amor e trevas, Amós Oz fala dos dez a quinze minutos que passa por dia caminhando em direção ao deserto, não para vê-lo ou vivenciá-lo diretamente, por si, mas "para manter a perspectiva da eternidade"; ou, talvez, para testar e comprovar que ainda tem a capacidade de extrair sentido, anos a fio, de uma mesma paisagem - mostrando com isso que a paisagem se transforma em direta relação com a carga de pathos que o artista leva em seu olhar. 
2) Nas primeiras páginas de O que vemos, o que nos olha, Didi-Huberman resgata um trecho do Ulisses de Joyce: Stephen Dedalus olha o mar e o mar lhe devolve uma lembrança - como se tivesse sido preciso fechar os olhos de sua mãe para que sua mãe começasse a olhá-lo verdadeiramente, escreve Didi-Huberman. Stephen Dedalus diante do mar - e diante do mar não se pode confiar nos sentidos (a cor da água se transforma, os sons perdem a profundidade), mas talvez seja o caso de confiar nessa particular articulação entre sentidos e imaginação (ou ainda, a articulação entre o treinamento dos sentidos - a capacidade de ler os elementos - e a carga de pathos que o indivíduo carrega consigo e que, ao mesmo tempo, mostra a ele que parte da equação do sentido sempre escapa ao controle). Homero cego diante do mar, contando o bater das ondas, calculando a maré. A frota de Agamenon e todos os signos que o mar leva àquele que sabe ver: pedaços de madeira, vegetação - a terra firme está próxima. 
3) A carga de pathos que ao mesmo tempo interfere no e potencializa o treinamento dos sentidos é amorfa e fluida, oscila no tempo e no espaço em múltiplas e simultâneas posições - una esfera infinita, cuyo centro está en todas partes y la circunferencia en ninguna, como escreve Borges sobre Pascal. O pathos, sendo paixão e excesso, se cristaliza eventualmente naquilo que Barthes chama "discurso amoroso" (e note o caráter fugidio da matéria: ele só pode ser apreendido em "fragmentos", e esse discurso só pode ser "um discurso", Fragmentos de um discurso amoroso (1977), um entre vários, na oscilação da linguagem e consequentemente do inconsciente, já que Lacan também dizia - no seminário 11 - que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, não a linguagem, mas uma linguagem, como um discurso amoroso). A carga de paixão com que se olha o mar (ou o deserto, ou a página de um livro) é tanto o que desafia quanto o que legitima o treinamento - ou, como escreve Barthes, "forças das estruturas: talvez seja isso o que nelas desejamos" (Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Márcia Valéria de Aguiar, Martins Fontes, 2003, p. 172). Não é justamente o que se vê no mar revolto do poema de Bolaño/Cesárea Tinajero?   

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Cocteau, Brecht

Uma passagem no Diário de trabalho de Brecht me faz pensar na morte de Proust, em sua foto com barba e o esforço de Jean Cocteau de fabular a respeito. Brecht escreve, em doze de junho de 1940: "Cocteau insiste em que a ideia de camuflar os tanques veio de Picasso, que sugeriu isso a um ministro de guerra francês antes da Grande Guerra como meio de tornar os soldados invisíveis. Cocteau também imagina que os selvagens pintam a pele não tanto para se mostrarem ameaçadores, mas principalmente para ficarem invisíveis. Essa é uma boa ideia. A gente torna as coisas invisíveis destruindo-lhes a forma, dando-lhes uma forma inesperada, fazendo com que fiquem, por assim dizer, não indistinguíveis mas ao mesmo tempo impressionantes e estranhas" (Diário de trabalho: Volume I, 1938-1941. Trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 72). Interessante como Brecht faz da fábula de Cocteau um meio para aprofundar suas questões, seu problemas - especialmente esse da forma e do formalismo, centro do seu desacordo com Lukács e centro também do seu posicionamento dentro das "vanguardas" e a partir das "vanguardas". Brecht vai escrever em 16 de outubro do mesmo ano: "querer o novo é antiquado, o que é novo é querer o velho" (p. 134).  

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Hegel e a citação

Johann Karl Friedrich Rosenkranz
De acordo com seu biógrafo e amigo Karl Rosenkranz, Hegel extraía excertos dos livros que lia, durante toda a sua vida, da seguinte maneira: tudo que lhe parecia digno de nota era escrito numa folha solta de papel, em cujo cabeçalho ele assinalava o assunto geral em que aquele conteúdo específico teria de ser inserido. As folhas eram arrumadas em ordem alfabética e, mediante esse recurso simples, ele conseguia usar constantemente os seus excertos. Apagando as referências bibliográficas, esses cartões de anotações de Hegel constituíam um arquivo de conhecimentos que permitia uma recuperação simples das informações, ao mesmo tempo que ocultava suas fontes. A Fenomenologia do espírito é um livro sem notas de rodapé. Até Kant só é nominalmente mencionado uma vez, de passagem. A Enciclopédia das ciências filosóficas contém um pequeno número de notas de rodapé, que se referem a livros de outros autores, mas é provável que elas tenham sido acrescentadas pelos editores de Hegel. Como resultado, os empréstimos e apropriações que ele buscou na ciência e no espiritismo de sua época tornam-se predominantemente invisíveis em seus escritos filosóficos.
*
Lembro da rememoração que alguns alunos de Sebald fizeram, depois de sua morte, dos cursos de "escrita criativa" que passou a dar depois de se estabelecer como autor reconhecido ("Aparentemente, os dirigentes da universidade pensam que agora tenho algo a dizer a vocês a respeito da matéria", dizia Sebald no começo da primeira aula). Uma das "dicas de escrita" de Sebald era um claro eco do procedimento de Hegel, que Sebald provavelmente conhecia: "só posso dizer a vocês, roubem o máximo que puderem. Ninguém vai notar. Vocês devem manter um caderno de anotações, lançando aí citações, mas não indicando as fontes. Um tempo depois, vocês voltarão ao caderno e poderão tratar o material como sendo de vocês, sem culpa".

sábado, 5 de novembro de 2016

Leitores de Puig

Existe uma coincidência interessante nos diários de Susan Sontag e Ricardo Piglia, uma coincidência dupla, que envolve tanto Edgardo Cozarinsky quanto Manuel Puig. Em 21 de novembro de 1966, Emilio Renzi anota em seu diário, no primeiro volume de seus diários:
Ayer con Beatriz Guido, siempre estrambótica y divertida. Vertiginosa en su casa barroca, muebles antiguos y conversaciones circulares. Estaba Edgardo Cozarinsky, que me pasó el original de una novela de Manuel Puig (p. 268).
No ano seguinte, 1967, em 28 de junho, Emilio Renzi volta ao tema e ao local:
El domingo en la casa de Beatriz Guido conozco a Juan Manuel Puig, autor de una novela que Edgardo Cozarinsky me había conseguido (Los diarios de Emilio Renzi, Años de formación, Anagrama, 2015, p. 320).
(Não deixa de ser digno de nota que essa espécie de história subterrânea da leitura da obra de Puig envolva Cozarinsky, que, com seu Museo del chisme, a partir sobretudo da leitura de Barthes, fez da "anedota", da "curiosidade", elemento historiográfico. Renzi não especifica, mas tem em mãos o original de La traición de Rita Hayworth, que sai primeiro em francês, pela Gallimard, na tradução de Laure Guille-Bataillon, em 1969).

Susan Sontag, por sua vez, em 15 de março de 1975, faz a seguinte anotação (o que vai entre colchetes é um acréscimo do editor);
Peça radiofônica [SS estava colaborando com o escritor e cineasta argentino Edgardo Cozarinsky nesse projeto]:
Carreira de Eva Perón como atriz de rádio
Programa que ela fez - as grandes mulheres na história (Joana d'Arc, Florence Nightingale, Mme. Chang Kai-Chek)
A mãe dela
Termina com ela sendo apresentada a Perón (na época, coronel) numa festa beneficente em favor das vítimas de uma enchente em San Juan (o norte)
Rivalidade com outra atriz, uma estrela de rádio na época, também chamada Eva (p. 423-424).
Dois meses depois, Sontag define Cozarinsky como um "afável amigo maternal". Quatro anos depois, em primeiro de fevereiro de 1979, Sontag escreve:
Linguagem como um objeto encontrado: [o escritor argentino Manuel] Puig. Ele não consegue criar sua linguagem própria. É tudo encontrado. Ele é um mímico extraordinário - converteu sua dívida como escritor num sistema (Diários II, trad. Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2016, p. 534).
Será Puig uma indicação de leitura de Cozarinsky, assim como havia feito com Piglia quase 10 anos antes? (em 1971 La traición de Rita Hayworth aparece em inglês como Betrayed by Rita Hayworth, traduzido por Suzanne Jill Levine).  

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

Corpos do rei, 2

Proust no leito de morte, por Man Ray (1922)
Michon se pergunta para que servem ainda os escritores:
Servir, aceitamos. Mas onde está a guerra, onde está Deus, onde o serralho de noventa e nove esposas, onde os reinos e os apanágios? Onde está a humanidade sofredora e regenerada, onde as revoluções e as caridades apaixonadas, onde está Jean Valjean? Ora, só resta a prosa, o texto que dói e faz gozar dessa dor, o texto que mata.
Talvez Michon seja um dos últimos escritores a buscar a expressão literária como um valor inestimável, e a achar ainda, como Flaubert ou Proust, que ela merece todos os sacrifícios. Mas ele sabe, como escritor atual, que essa velha religião quase não tem mais fiéis. "A seriedade com que consideramos a literatura nos dá um aperto no coração", escreve ele em Corps du roi, citando Pasolini acerca de Gombrowicz. Sua escrita é a prática obstinada de uma forma vista como antiquada. Michon é herdeiro de uma dinastia decaída que ele continua a honrar, cuidando da língua como de uma coisa preciosa, buscando demonstrar o quanto a escrita literária pode suprir a distância entre o desejo de grandeza e a pequenez do mundo, entre a aspiração à eternidade e a condição de mortal. Um elefante, em suma. 

(Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 2016, p. 56-57)
*
Diderot por Greuze, 1784
(Michon não faz referência a essa fotografia que encaixa tão bem em seu projeto - seu projeto sobre o duplo corpo do escritor, aquele que perece e aquele que permanece. Man Ray e Proust não se conheciam, mas amigos em comum arranjaram o encontro post-mortem, mais um capítulo na tradição dos retratos de famosos escritores por famosos artistas (Diderot por Greuze, Victor Hugo por Nadar). Jean Cocteau foi o primeiro a interpretar a imagem de Proust morto, dando a legenda: "Proust com barba", evidenciando, portanto, não tanto o evento da morte, mas o surpreendente desleixo do autor, sempre tão cuidadoso em escanhoar as faces e afinar as meticulosas pontas dos bigodes. A foto seria um memento restrito à família, até que meses depois surgiu na imprensa, com o crédito da imagem dado não a Man Ray, mas a um fotógrafo desconhecido (o vazamento teria sido realizado pelo próprio Cocteau, com o intuito de impulsionar semioticamente seus escritos sobre a morte de Proust). Cocteau também é aquele que relata que até os últimos momentos de vida Proust estava envolvido com sua Recherche - e que inclusive a morte do autor, ou o encaminhamento do autor em direção à morte, foi usada como modelo para a morte de Bergotte (Proust teria reescrito a morte de Bergotte na noite em que morreu). Bergotte, afinal, é o "homenzinho de barba", como Proust escreve em Le Côté de Guermantes, e além disso, no número da Nouvelle Revue Française de janeiro de 1923, um tributo a Proust, está publicado um fragmento intitulado "La Mort de Bergotte", além do texto de Cocteau, "La voix de Marcel Proust" - entre muitos outros, como Gide, Valéry e Curtius).   
Victor Hugo por Nadar

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Corpos do rei, 1

Faulkner, diferentemente, é um "erro da Criação". Numa foto de James R. Cofield, datada de 1931, ele aparece com um grosso casaco de tweed, os braços cruzados, um cigarro aceso na mão direita:
Conhecemos essa aparição frontal, maciça e franca do artista como jovem imprestável, jovem imperator, jovem farmer [...] uma cara ao mesmo tempo consternada e triunfante, poderosa e frouxa, intratável mas infinitamente corruptível - enorme e fútil como o são, escreveu ele, os elefantes e as baleias. [...] Ele sabe, ou melhor, pensa que, para anular essa distância, para arrebentar esse muro inexpugnável atrás do qual cochilam ou arremetem o elefante Shakespeare, o elefante Melville, o elefante Joyce, não tem outro recurso a não ser se tornar ele mesmo elefante.
Na fotografia, Faulkner parece seguro de si:
Afinal, esse olhar que vê o elefante em 1931 é calmo. Seu mestre apareceu nele, ele ri dos reis e dos que não são reis, como diz outro prisioneiro do Sublime que guiou com mão de ferro o Sublime, Fernando Pessoa. Ele está calmo, escreveu O som e a fúria, ele é o grande reitor, o elefante.
Flaubert, que só ostentou um belo corpo em sua juventude, é retratado por ele como um "corpo de madeira" (trocadilho entre roi e bois, que se perde em português), uma espécie de palhaço gordo e bigodudo que, numa carta a Louise Colet, contou seu momento de glória secreta, na madrugada em que terminou de escrever a primeira parte de Madame Bovary. Segundo Michon, o único modo de salvar a vida desse homem maníaco, que passava seu tempo burilando frases, seria imaginar que ele mentiu, que nunca foi um monge ou um trabalhador forçado. Que ele era, na verdade, um ocioso, que ficava olhando o Sena ou a sobrinha comendo geleia, as vacas e as mulheres, e que só de tempo em tempo, para fazer uma gracinha e ocupar os críticos parisienses, escrevia algumas frases perfeitas que lhe vinham de modo fácil e natural.
Como em seu romance Vidas minúsculas, o texto converge para a pessoa do escritor Michon. Mas não há nenhuma egolatria ou vaidade nessa convergência. Assim como o narrador de Vidas minúsculas, lutando com a página em branco ou com a sombra intimidadora dos Grandes Autores, acaba drogado e louco de hospício, o escritor de Corps du roi acaba escorraçado de um restaurante parisiense, caído bêbado na calçada, olhando as longínquas estrelas.

(Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 2016, p. 55-56)

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Corpos do rei

Uma bela homenagem à literatura ocidental é o livro de outro francês, Pierre Michon, intitulado Corps du roi [Corpo do rei]. Esse pequeno grande livro é uma celebração da literatura, através de alguns Grandes Nomes (expressão que ele escreve com maiúsculas). A ideia é simples e brilhante. Michon aplica, aos grandes escritores do passado, o conceito medieval segundo o qual o rei tem dois corpos, um corpo natural e um corpo místico:
O rei, como se sabe, tem dois corpos: um corpo eterno, dinástico, que o texto entroniza e sagra, e que chamamos arbitrariamente de Shakespeare, Joyce, Beckett, Dante, mas que é o mesmo corpo imortal vestido com trapos provisórios; e ele tem outro corpo mortal, funcional, relativo, o trapo que vai para a podridão, que se chama apenas Dante e usa um gorrinho em cima do nariz adunco, somente Joyce e então tem anéis e olho míope, espantado, somente Shakespeare e é um homem de posses com uma golinha elisabetana.
Corps du roi é uma obra de gênero indefinido, misto de ensaio e ficção. As fotos que acompanham o texto são a prova de que algo mudou na modernidade: a existência da fotografia, que nos permite ver o rosto "real" dos escritores. Michon examina essas fotografias como alguém que folheia um álbum de família: "O fotógrafo clica. Os dois corpos do rei aparecem". A partir de fotografias, cartas ou dados biográficos, Michon explora as coincidências e divergências entre os "dois corpos" de escritores: Beckett, Faulkner, Flaubert e outros, igualmente reais e geralmente comuns. Beckett, numa fotografia de Lutfi Özkök, datada de 1961, é um verdadeiro milagre: a coincidência entre os dois corpos do rei, o homem e a obra. Beckett sabe que é rei.
Sabe também que essa operação mágica é mais fácil para ele do que para Dante ou Joyce, porque, diferentemente destes, ele é belo: belo como um rei, o olhar gelado, a ilusão do fogo sob o gelo, os lábios rigorosos e perfeitos, o nolli me tangere que ele ostenta de nascença; e, cúmulo do luxo, belo com estigmas, a magreza celestial, as rugas cavadas com o caco de Jó, as grandes orelhas de carne, o look rei Lear.


(Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Cia das Letras, 2016, p. 54-55)

sábado, 15 de outubro de 2016

Comunismo, rosto de areia

1) Como mencionado alhures, Susan Sontag retorna, no segundo volume dos Diários, ao problema do comunismo, do pensamento de esquerda, da influência soviética e a influência desse conjunto de questões sobre os autores/obras de sua preferência (especialmente Sartre, Barthes, Canetti, Benjamin, Brecht). Em uma entrada de 1980, sem data específica, Sontag escreve sobre Canetti: Canetti é o escritor que nega os últimos 150 anos de pensamento - e também nega a história - o protótipo do intelectual europeu da velha escola. No interior dessa obra curiosa se encontram - escondidos + expostos - todos os problemas da consciência. (Diários II, 1964-1980, trad. Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2016, p. 565).
2) Essa ideia da negação dos "últimos 150 anos de pensamento" por parte de Canetti é interessante e se liga àquela afirmação já citada de Sontag em cinco de dezembro de 1978: "Canetti ficou livre da tentação da esquerda. Como?". Além disso, a ideia retorna também na última frase desse volume dos diários, de 30 de julho de 1980 - "destacado" é o comentário do editor, e em seguida a frase:
Grande tema o fim da paixão do Ocidente pelo comunismo. Fim de uma paixão de duzentos anos.
3) Existe uma confluência entre os 150 anos de pensamento de Canetti e a paixão de duzentos anos do Ocidente pelo comunismo que permanece em potência. A frase final de Sontag faz pensar na frase final de Foucault em As palavras e as coisas, que busca o diagnóstico de um fim semelhante - morte de Deus, morte do homem, fim da filosofia, etc:
Uma coisa em todo o caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber humano. (...) o homem é aí uma invenção recente. De fato, dentre todas as mutações que afetaram o saber das coisas e de sua ordem, o saber das identidades, das diferenças, dos caracteres, das equivalências, das palavras - em suma, em meio a todos os episódios dessa profunda história do Mesmo - somente um, aquele que começou há um século e meio e que talvez esteja em via de se encerrar, deixou aparecer a figura do homem. (...) O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. (...) se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia.
(Michel Foucault, As palavras e as coisas, trad. Salma Muchail, Martins Fontes, 2007, p. 536).

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Brecht, Benjamin, Barthes

1) Fredric Jameson também comenta a presença de Brecht em "seus mais importantes discípulos", "cujos prestigiosos destinos tenderam a obscurecer a participação que ele teve no assunto" (o assunto do "conteúdo filosófico" do moderno). Jameson está falando de Barthes e Benjamin, e continua: "nenhum estudo decente sobre a trajetória de Barthes pode dar-se o luxo de omitir suas origens brechtianas (assim como sartrianas): seu clássico Mitologias abriu caminho para a entrada triunfal do efeito de estranhamento na teoria francesa". 
2) Quanto a Walter Benjamin, continua Jameson, "sua influência póstuma (aumentando tão inexoravelmente quanto a de Barthes diminuiu, e aparentemente tão imune ao fastio relacionado a Brecht, a partir do qual iniciou uma carreira totalmente nova desde a 'unificação') agora parece seguir duas diferentes direções ao mesmo tempo: a pós-moderna, que se desenvolve sobre o prestígio inabalado de seus ensaios sobre tecnologia, e a do misticismo da linguagem, como resultado de um melhor conhecimento de seus primeiros escritos. Pelo menos o primeiro Benjamin deverá parecer muito diferente quando for devolvido a seu contexto brechtiano original; por enquanto, o perfil de um Benjamin posterior, profundamente brechtiano, ainda não emergiu claramente devido ao desconhecimento geral de sua incansável produção como crítico literário e resenhista de livros" (Fredric Jameson, Brecht e a questão do método. Trad. Maria Sílvia Betti. São Paulo: Cosac, 2013, p. 62).
3) No segundo volume de seus diários, Susan Sontag, que faz eventuais referências tanto a Brecht quanto a Benjamin, também tenta lidar com essas duas facetas de sua recepção, tal como aponta Jameson. Em 12 de novembro de 1976, mais de 20 anos antes da publicação do livro de Jameson sobre Brecht, ela escreve: "Reprodução tecnológica não é simplesmente uma "era", como diz Benjamin. Isso é enganoso. Ela tem sua história — ou melhor, [ela] está inserida na história. Seus artefatos se tornam "históricos", não apenas contemporâneos. Antigas lito[grafias], fotografias, revistas de histórias em quadrinhos, filmes etc., trazem o cheiro do passado, não do presente. B[enjamin] achava que a rep[rodução] técnica tornava tudo um presente eterno — um fim da história hegeliano (e a abolição da história). Mais quatro décadas de vida nessa "era" refutaram isso".

sábado, 8 de outubro de 2016

Sontag, Benjamin, 1978

1) O segundo volume dos Diários de Susan Sontag é bastante vasto - quase 600 páginas, cobrindo o período que vai de 1964 a 1980. Diante disso, uma estratégia interessante de leitura é perceber a variação de leitura da própria Sontag a partir de exemplos pontuais, ou seja, a variação de sua percepção de certos textos e autores. Em 14 de maio de 1978, por exemplo, em Madri, ela escreve: "Ler Benjamin - o volume novo - e descobrir que ele é menos extraordinário, menos misterioso. Eu gostaria que ele não tivesse escrito as obras autobiográficas" (é provável que o tal "volume novo" a que faz referência Sontag seja Reflections, coletânea de ensaios de Benjamin editada por Peter Demetz em 1978). 
2) Em sete de dezembro de 1977, Sontag escreve: "É verdade que Benjamin usava uma linguagem comunista nos últimos anos de vida, assim ele nos parece diferente hoje. Mas isso é porque ele morreu em 1940. Seus últimos anos foram aqueles em que a linguagem comunista reconquistou autoridade - vista como necessária para combater o fascismo (identificado como O Inimigo). Se Benjamin tivesse vivido tanto quanto Adorno, teria se tornado tão desiludido e antissocial quanto Adorno". Será? É o tipo de especulação parente da história contrafactual, que tenta fazer uma projeção do futuro a partir da reconfiguração do passado - se pensarmos no ensaio que Agamben dedica à correspondência entre Benjamin e Adorno em Infância e história, veremos que aí se defende um afastamento, uma heterogeneidade que já está posta muito antes de 1940 (é preciso levar em consideração também que o Adorno mais benjaminiano é aquele que surge depois da II Guerra, em 1951, com a publicação de Minima Moralia).
3) A questão da "linguagem comunista" é constante nos diários de Sontag - ligada não só a Benjamin, mas a todos os intelectuais de esquerda lidos por ela. O apelo comunista sobretudo em sua versão soviética (ao reler o ensaio de Sartre sobre Paul Nizan, Sontag escreve, em quatro de outubro de 1965, "me dou conta como Sartre foi importante para mim. Ele é o modelo - aquela abundância, aquela lucidez, aquele conhecimento. E o mau gosto" - como ler, portanto, a fixação de Sontag com o kitsch sem ter em mente o mau gosto que identifica em Sartre, seu modelo?). Mais de dez anos depois, em cinco de dezembro de 1978, relendo Canetti para escrever um ensaio, Sontag volta ao tema: "Canetti ficou livre da tentação da esquerda. Como?". Em grande medida, por conta da insistência de Canetti na solidão e sua igualmente constante recusa da massa e seus dispositivos de "ignição".  

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Sontag, diários

03 de janeiro de 1966

Minha formação intelectual:

Knopf + Modern Library
PR [Partisan Review] (Lionel Trilling, Philip Rahv, Leslie Fiedler, Richard Chase)
Universidade de Chicago - P&A via Joseph Schwab - Richard McKeon, Kenneth Burke
"Sociologia" da Europa Central - os intelectuais judeus alemães refugiados (Leo Strauss, Hannah Arendt, Gershom Scholem, Herbert Marcuse, Aron Gurwitsch, Jacob Taubes etc.)

Harvard - Wittgenstein
Os franceses - Artaud, Barthes, E. M. Cioran, Sartre
Mais história da religião
Mailer - anti-intelectualismo
Arte, história da arte - Jasper, Cage, Burroughs

Resultado final: franco-judeu-cagiana?


04 de janeiro de 1966

Não sou ambiciosa porque sou complacente. Aos cinco anos de idade, anunciei para Mabel [a governanta de quando Susan era criança em Nova York e Nova Jersey; ela não acompanhou a família quando se mudaram para o Arizona] que eu ia ganhar o Prêmio Nobel. Eu sabia que seria reconhecida. A vida era uma escada rolante, não uma escada parada. Eu também soube - à medida que os anos passaram - que eu não era inteligente o bastante para ser Schopenhauer ou Nietzsche ou Wittgenstein ou Sartre ou Simone Weil. Meu objetivo era estar na companhia deles, como discípula; trabalhar no mesmo nível que eles. Eu tinha, eu sabia - eu tenho - uma mente boa, até mesmo poderosa. Sou boa para entender as coisas - + pôr as coisas em ordem - + usá-las. (Minha mente cartográfica) Mas não sou um gênio. Eu sempre soube disso.


(Susan Sontag, Diários II - 1964-1980. Trad. Rubens Figueiredo. Cia das Letras, 2016, p. 191 e 195). 

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Pizarnik, diários

Em 10 de agosto de 1969, na madrugada de um domingo, Alejandra Pizarnik anotou em seu diário que desejava prescindir deste tipo de anotações para que seus conflitos espirituais pudessem transmutar-se diretamente em obra, sem passar por nenhuma classe de registro. Também anotou que esse sonho que acabava de acariciar era, na verdade, impossível de cumprir, porque a asfixiava e a mareava "o espaço infinito de viver sem o limite de um 'diário'". Para limitar a contínua perda de si mesmo à qual o submetem suas outras doenças, o escritor de diários adquire a doença do diário. Anota o que lhe sucede e o que lhe ocorre para colocar-se a salvo das forças destrutivas que ameaçam expropriá-lo definitivamente de sua vida. Protege-se, preserva-se, mas preservando também, sempre ao seu redor, no espaço fechado de cada fragmento do diário, os fantasmas ou os demônios que não o deixam em paz. Perde diariamente a ocasião de experimentar a vida como um espaço de infinitas possibilidades, essa experiência à qual se entrega sem reservas enquanto escreve sua obra, por temor de deixar de ser o doente que já se tornou no dia em que decidiu, para sempre, escrever um diário.

(Alberto Giordano, "A doença do diário. Em torno dos Diários de John Cheever". A senha dos solitários: diários de escritores. Trad. Rafael Gutiérrez. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2016, p. 127). 

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Benjamin visita Brecht

1) Dos diários de Brecht aos diários de Walter Benjamin, portanto, com um desvio por Lukács, Fredric Jameson e Kafka (Benjamin e Lukács se conheciam desde 1913). As conversas acontecem em 1934 e 1938, quando Benjamin vai visitar Brecht em Svendborg (na nota escrita por Jameson a cidade aparece na tradução como Svedenborg). Tanto em 1934 quanto em 38 eles conversam sobre Kafka (em 6 de julho de 1934 Benjamin escreve que, para Brecht, Kafka era um visionário que antecipou o que viria sem de fato vê-lo, e que a precisão de Kafka era a precisão de um "homem impreciso", um "sonhador"). 
2) A edição citada por Fredric Jameson dos diários de Benjamin (Walter Benjamin, Understanding Brecht. Londres: NLB, 1973, que acompanha a edição alemã de 1966, Versuche über Brecht) é, na verdade, composta dos textos que dedicou a Brecht, sendo o último deles - "Conversations with Brecht" - a transcrição dos diários. Essa edição apresenta a facilidade de reunir as entradas de 1934 e 1938, algo que se perde na organização dos Selected Writings de Benjamin em volumes. Em Understanding Brecht, contudo, uma das anotações de Benjamin está faltando, aquela de 6 de março de 1938 (porque ele ainda não está na casa de Brecht) - nessa edição, 1938 começa em 28 de junho (porque é 22 o dia de sua chegada).
3) As entradas de 6 de março e 28 de junho, no entanto, estão interligadas - o que faz do primeiro parágrafo da entrada do dia 28 um pouco confuso sem a presença da entrada anterior, na qual Benjamin conta seus sonhos recentes, que "nos últimos tempos" tem "marcado profundamente o andamento dos meus dias" (mais um caminho em direção a Kafka). No final da entrada de 6 de março, Benjamin fala de um sonho no qual vê uma paisagem, uma paisagem que contempla e que também percorre, como um mapa mas também como um ambiente. Era uma "terra devastada", marcada por montanhas e de alguma forma, escreve Benjamin, "eu sabia que era o labirinto do meu canal auditivo". "Mas o mapa era, ao mesmo tempo", escreve ele, "o mapa do inferno" (daí a estranheza do primeiro parágrafo de 28 de junho, pois Benjamin retoma o tema do labirinto tal como aparece em outro sonho, "um labirinto de escadas", um labirinto "que não estava coberto por todos os lados"). (Benjamin, Selected Writings, vol. 3, 1935-1938. Ed. Howard Eiland, Michael W. Jennings. Harvard Press, 2006, 335-336).       

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Brecht + Lukács

"Deve ficar claro", escreve Fredric Jameson, "que a posição de Brecht a respeito de tais prazeres da cultura de massas atravessa a velha oposição entre populismo e elitismo de uma forma inesperada; sua função não é o prazer, mas pensar historicamente estética e cultura". Essa ênfase de Brecht o situa "obliquamente entre as tradições do modernismo artístico", escreve Jameson, e continua:
Brecht poderia ser um rude filistino como é o próprio Lukács quando se refere às correntes mais herméticas do modernismo; mas rejeitou a condenação que este faz das técnicas então experimentais em nome de um supostamente decadente "formalismo", propondo discutir o assunto em termos da "realidade" mais do que do "realismo". (...) esse antiquado debate parece ter sido substituído por outro, muito diferente, que opõe literatura em geral (realismo juntamente com modernismo) à cultura de massa, ou, em outras versões, ao visual ou ao espacial, ao televisual ou ao eletrônico. O pensamento de Brecht sobre o modernismo precisa ser umfunkioniert (reconstruído e readaptado, um de seus termos favoritos) (...) o conteúdo filosófico do esteticamente moderno deve ser encontrado na crítica da representação propriamente dita. (Fredric Jameson, Brecht e a questão do método. Trad. Maria Sílvia Betti. São Paulo: Cosac, 2013, p. 61-62).
Ao mencionar a crítica de Lukács das "correntes mais herméticas do modernismo", Jameson puxa uma nota de rodapé interessante: diz que, partindo das ideias de Brecht acerca de Lukács, "o caso de Kafka é mais complexo", pois "as observações perversas de Brecht sobre o fascismo de Kafka (para Benjamin, durante a estada deste último em Svedenborg: Walter Benjamin, Understanding Brecht. Londres: NLB, 1973, p. 108) precisam ser postas em perspectiva com sua apreciação posterior da antecipação, por Kafka, do movimento nazista; a observação posterior tem algo a ver com passividade e vitimização - entretanto, ela nos proporciona a suposta parábola chinesa 'das atribuições da utilidade': 'Numa mata há diversas espécies de troncos de árvore... dos mirrados eles nada fazem: estes escapam às atribulações da utilidade'". 

domingo, 25 de setembro de 2016

Diário de trabalho, 1

Fevereiro 39

O formalismo literário também não foi definido politicamente, isto é, não foi definido de modo algum. O bom Lukács filia-o simploriamente à decadência. A vanguarda literária é formada por burgueses decadentes, e fim de papo. O que se deve fazer é ignorá-los e ler os clássicos. Em parte nenhuma ele se ocupa dos formalismos das democracias e do Estado fascista. (Aumento da produção... dos meios de destruição, liquidação da luta de classes, em lugar da liquidação das classes etc.) O declínio da narrativa é visto como puro declínio. A montage é vista como um traço característico da decadência. Porque a unidade é rompida por ela, e o todo orgânico morre. Naturalmente se podia fazer também um estudo concreto da montage. (No filme Zuiderzee, de Ivens, que mostra a recuperação da terra fértil e a destruição paralela dos frutos da terra em outros lugares.) 

O outro pecado é o monólogo interior. Ninguém nunca examinou isto ou expôs seus defeitos reais (podia-se pegar o da mulher em Ulisses e o de Hitler que consta do Discurso em Coragem de Heinrich Mann). Não o teríamos então extirpado por completo como um estratagema artístico, mas presumivelmente teríamos mostrado suas imperfeições em condições concretas. Pois, é claro, como pura empatia isto deve ter gigantesco potencial de erro. Existe sem dúvida uma coisa como um movimento vazio e autógeno da forma, uma satisfação puramente formal de necessidades reais, uma violação dos fatos pelo tratamento generalizador etc. 

Mas pode-se também tratar questões formais formalisticamente, e isto é o que acontece no caso do destemido Lukács. Segundo esses marxistas as coisas estão neste pé: os realistas burgueses praticavam um realismo imperfeito, ainda tinham idola; tratemos de esquecê-los e tudo ficará em ordem. Seus fatos são aceitos e rearranjados. Marx não está mais equipado com as conclusões corretas do que Ricardo. Cholokhov é Balzac, depois de retirados os antolhos. Na realidade esses Cholokhovs não tem sequer um grama do materialismo de Balzac (uma notável infusão de romantismo, predileção pelos fatos, mania de colecionador, especulação etc) e tem inumeravelmente mais pontos cegos. A recomendação de estudar os realistas burgueses é totalmente formalista, já que não está ligada a nenhuma crítica conscienciosa da obra deles.

(Bertolt Brecht, Diário de trabalho: Volume I, 1938-1941. Trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 25-26).