segunda-feira, 31 de maio de 2010

Aira, Saer, Piglia

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El Clarín, Revista Ñ, número 54, página 41. Entrevista de Carlos Alfieri com César Aira. 09.10.2004.

Alguns críticos o situam junto a Juan José Saer e Ricardo Piglia como referência da literatura argentina nos últimos 25 anos. Qual sua opinião sobre os outros dois escritores? Se tivesse que propor um trio distinto, quem citaria?



- Que pergunta difícil! Em primeiro lugar devo esclarecer que Saer e Piglia são dez anos mais velhos que eu e pertencem a outra geração, outra atmosfera, outro mundo. De fato, eu os lia quando jovem (bem, lia Saer; Piglia praticamente não li). Piglia é um escritor sério, um intelectual muito apreciado como professor.... enfim. Saer sim, li muito e o apreciei muito; é quase um clássico moderno argentino. Depois, fui me afastando de sua poética, e sei que ele não aprecia muito a minha. Saer também é um escritor sério... mas eu busquei outros modelos. Saer já não me atrai; com o tempo fui me afastando dessa postura séria, responsável com relação à sociedade e à história. Tive o privilégio de estar próximo, e às vezes de ser muito amigo, de três escritores que existiram na Argentina nesses últimos 25 ou 30 longos anos: Manuel Puig, Alejandra Pizarnik e Osvaldo Lamborghini. Achei os três geniais e foram modelos para mim, por motivos distintos, como modelos de vida, modelos de atitude... Às vezes tomamos um modelo e depois fazemos tudo ao contrário dele, mas o modelo segue atuando, talvez como contraste. Os três morreram jovens, os três deixaram seu mito, sua lenda, e os três me acompanharam sempre. Se buscamos um trio, proponho esse.


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Essa breve resposta é um início possível para uma reflexão sobre as relações de César Aira com Ricardo Piglia e Juan José Saer – sobretudo no esforço já bastante antigo que o primeiro fez para afastar-se (e de fato antagonizar) dos outros dois.

Já em 1981, em um artigo para a revista Vigencia intitulado “Novela argentina: nada más que una idea”, Aira traça um panorama daquilo que via como o arranjo contingente da literatura argentina contemporânea, comentando obras como Como en la guerra, de Luisa Valenzuela, e Flores robadas en los jardines de Quilmes, de Jorge Asís, passando também por Nadie nada nunca, de Saer, e Respiración artificial, de Piglia, que definiu como “uma das piores novelas de sua geração”.


O mais curioso desse cenário é que Aira só havia publicado um livro até o momento: Moreira, lançado em 1975, mais de cinco anos antes da publicação do ensaio. Seu segundo livro, Ema, la cautiva, sairia dois meses depois. Há um cuidado na construção do terreno, por parte de Aira, que precede em muitos anos a sua célebre enxurrada de invenção – os três, quatro lançamentos anuais que faz desde o início da década de 1990. Saer e Piglia definem um contexto que a literatura de Aira procura reduzir a nada, separando-os para a obsolescência. Primeiro a tomada de posição, depois a enxurrada. Primeiro o antagonismo, que fabrica uma demanda discursiva – tudo bem, é uma merda, e agora? – e depois o anacronismo frente à literatura que se define como sua contemporânea.



A pergunta de Aira não é aquela que insiste a literatura de Saer – como narrar? - e também não é a de Piglia – há uma história? –, a frase que abre Respiração artificial, a pergunta de Aira é como seguir em um relato até o fim e como seguir escrevendo depois do final. Por isso o automatismo e o retorno constante a aparatos que garantam a continuidade do narrado.

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sexta-feira, 28 de maio de 2010

Amberes, o último livro de Bolaño

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Amberes não é o último livro de Roberto Bolaño, mas é escrito como se fosse. É um dos primeiros, e ilumina tudo que ainda não existia, que só viria depois. A língua é estrangeira, alheia, convulsa, bizarra, desconexa – não há tempo, há sobreposição de temporalidades. Amberes são notas esparsas acumuladas no fim da década de 1970 – 1980 foi o último ano para Amberes, que só foi publicada em 2002. En Amberes un hombre murió al ser aplastado su automóvil por un camión cargado de cerdos. Amberes é uma cidade da Bélgica e funciona no livro como uma das muitas linhas de fuga que são abandonadas.

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Escrevi esse livro para mim mesmo, diz Bolaño. Escrevi esse livro para os fantasmas, que são os únicos que têm tempo porque estão fora do tempo, diz Bolaño. Os anos de escrita de Amberes foram anos de tempestade. As notas multiplicavam-se e reproduziam-se como uma enfermidade. Você sabe que a doença aqui não é citada a esmo. A única doença que eu tinha na época, diz Bolaño, era a raiva, o orgulho, a violência. Trabalhava à noite. Durante o dia escrevia e lia – nunca dormia. O café e o cigarro o mantinham acordado. Foi o último ano em Barcelona. Acreditava na literatura: acreditava nos gestos inúteis, acreditava no destino. Bolaño, durante a confecção de Amberes, lia ficção científica e pornografia: Norman Spinrad, James Tiptree, Jr, Restif de la Bretonne, Sade, Cervantes, poetas gregos arcaicos. Na cabeceira da cama, Bolaño pregou um papel que dizia Anarquia total, escrito em polonês. Talvez tenha sido o espírito de Sophie Podolski, mencionada no texto – e mencionada também em Detetives e no conto Carnet de baile. Conocí, naturalmente, gente interesante, alguna producto de mis propias alucinaciones, escreve Bolaño, e por isso pensei em Sophie, que é um fantasma. No creía que iba a vivir más allá de los treintaicinco años. Era feliz, termina Bolaño.

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Como na busca pelo Rei dos Putos, em Amuleto, estão lá, em Amberes, os poetas caminhando sem destino – olhando o mar Mediterrâneo, um deles tem a visão do poema de Cesarea Tinajero, em uma época que Tinajero nem existia; o poeta olha o mar e ele ondula, primeiro uma linha reta, em seguida ondulada e em seguida tremendo, em convulsão, exatamente como no poema visual que encontramos em Detetives. E está tudo na visão onírica de Amberes – também estão lá os detetives que perseguem e os detetives que são perseguidos, os drogados, os pornógrafos, os escritores, Klee, Pavese e as estações ferroviárias. Amberes está perpetuamente estabelecido em 2666, muito antes do surgimento de 2666. Amberes dá sua própria sinopse: Sinopsis. El jorobadito en el bosque al lado del camping y las pistas de tenis y el picadero. Agoniza en Barcelona un sudamericano en un dormitorio que apesta. Redes policiales. Tiras que follan con muchachas sin nombre. El escritor inglés habla con el jorobadito en el bosque. Agonía y un sudamericano canalla viajando. Cinco o seis camareros regresan al hotel por una playa solitaria. Comienzos del otoño. El viento levanta arena y los cubre.

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Em Amberes já corre o vento e a areia que cobrirá também os detetives selvagens; um sul-americano já agoniza, como agoniza Ulises em La muerte de Ulises; a praia é cena do regresso antes que Belano chegue à África, antes que Charly desapareça em El tercer Reich; as pistas, o camping, as redes policiais, os policiais que fodem com mulheres sem nome – e aí estão as mortas de Ciudad Juaréz que não me deixam mentir.

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quinta-feira, 27 de maio de 2010

Paul Auster e a imagem

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A imagem é um sintoma – flutua e resiste a ser capturada, condensando em si os recalques do tempo histórico que ela capturou. A imagem é um pacto com a morte – testemunha um impossível que é sempre reiterado. A imagem sempre diz muito mais do que pretende aquele que a produz – ou aquele que a captura na leitura. Quem vive em uma imagem? A imagem está aberta, o passado que ela sinaliza segue passando e segue dizendo. A imagem é uma permanente zona de desconforto, que pode ser retomada, apropriada, profanada – girar em falso. A imagem é lida quando escapa da tautologia – quando é possível retirar dela mais do que aquilo que ela mostra.

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Há sempre uma imagem escorregadia nos livros de Paul Auster. Em O livro das ilusões, o narrador só encontra conforto para a morte da mulher e dos filhos assistindo um filme mudo de comédia. O ator deste filme e sua aparição sempre rara tornam-se, por fim, uma obsessão, um signo da cura impossível. Em Leviatã o foco recai sobre a Estátua da Liberdade e suas reproduções, o homem enlouquece e se propõe a explodir todas as reproduções da Estátua da Liberdade em todas as cidades pequenas do interior dos Estados Unidos – não é à toa que o livro é dedicado a Don DeLillo, o escritor da imagem sintomática por excelência. Uma das primeiras frases de Viagens no scriptorium avisa que há uma câmera perpetuamente apontada para o protagonista. O que dizer da foto de família rasurada em A invenção da solidão, força motriz da busca do autor pelo próprio pai e da reflexão sobre o pai que ele agora é. Talvez o exemplo mais interessante esteja em O homem no escuro, em que a imagem final, presente ao longo de toda narrativa, como um fantasma, sempre anunciada nas entrelinhas, mas declarada quase com vergonha, é estranhamente contemporânea: a imagem do jovem soldado americano decapitado no Iraque em frente às câmeras.

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terça-feira, 25 de maio de 2010

Herta Müller

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Linda essa foto de Herta Müller com seu diploma e sua medalha do Nobel. Quando penso no Nobel de Literatura lembro de duas cenas: Pirandello doando sua medalha para contribuir com o esforço de guerra de Mussolini (eis o fascismo e o totalitarismo, o que nos leva ao livro do polonês Czeslaw Milosz, prêmio Nobel de Literatura de 1980, Mente cativa, no qual analisa o fraco dos intelectuais pelo totalitarismo) e aquela passagem de Diário de um ano ruim, de Coetzee, em que sua vizinha jovem e atraente observa o apartamento do escritor recluso – e acha estranho aquele papel enquadrado e pendurado na parede, com umas letras esquisitas, umas coisas douradas e alguma coisa escrita no que parecia ser latim.

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sábado, 22 de maio de 2010

Fascismo, Bolaño, Dunga


Na Veja da semana que se encerra hoje, Roberto Pompeu de Toledo publicou um texto intitulado “Talibãs de chuteiras”. Faz um retrato jocoso e irônico do nacionalismo exacerbado da propaganda da Brahma com Dunga (brahmeiro, guerreiro, etc) e da postura desse último com relação ao futebol e a sua momentânea condição de líder brasileiro. Roberto Pompeu de Toledo diz que Dunga nos ameaça com patriotismo – sua mãe o ensinou desde cedo a ser patriota. Dunga e a propaganda da Brahma oferecem palavras de ordem de forma estridente: raça, nação, guerra, jogar e torcer como quem vai para a batalha (a batalha pela imposição de um sentido único). Fazer parte de um Encontro Mundial de Seleções, nessa lógica do pertencimento absoluto, é uma grande chance para arranjar brigas e eleger inimigos – e nunca de encarar diferenças e explorar novos ângulos. O comportamento belicoso de Dunga, afirma Roberto Pompeu de Toledo, é um grande incentivo para a manutenção e legitimação do discurso e da postura das torcidas organizadas - “nação tricolor”, nação alvinegra”, “super raça etc”, e suas arquiconhecidas manifestações racistas, homofóbicas, beligerantes e fascistas. Tirei uma cópia desse texto de Roberto Pompeu de Toledo, dobrei em três partes e coloquei dentro do meu exemplar de La literatura nazi en América.

Está tudo lá, afinal de contas. Basta lembrar de Silvio Salvático, “jogador de futebol e futurista”, como escreve Bolaño. Ou dos fabulosos irmãos Schiaffino, Argentino e Italo, poetas, fascistas e assíduos colaboradores das torcidas organizadas do futebol argentino. Os exemplos são muitos, estão em 2666, no Carlos Wieder de La literatura nazi e de Estrela distante, em vários contos, nas surras, nos linchamentos, na violência gratuita – a percepção de Bolaño de que o fascismo desliza, se camufla, prolifera sobretudo nos campos completamente ignorados pelas altas esferas (oficinas de poesia na periferia, ajuntamentos de torcedores fanáticos, a penumbra dos cafés).


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Jacques Deza, o narrador de Seu rosto amanhã, ainda no primeiro tomo, esbarra em uma festa com um imbecil chamado Rafael de la Garza – e o sujeito fica enchendo os ouvidos de Deza com comentários na linha “no tempo da ditadura é que era bom”, etc. Ainda que um imbecil, de la Garza dá a oportunidade para que Marías/Deza discorra brevemente sobre o fascismo e a literatura contemporânea (uma digressão que poderia ter durado mais, ao contrário de outras, que duram muito mais do que o necessário). Mais do que temas fascistas há um estilo fascista que percorre grande parte da literatura contemporânea espanhola, escreve Marías, um cacoete difícil de reconhecer, mas que persiste. Seria interessante deslizar essa percepção de Marías e ver o que mais circula de fascista entre nós, além de Dunga e da Brahma.


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quarta-feira, 19 de maio de 2010

O homem e sua imagem

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  1. Segundo a tradição talmúdica, os demônios são puros espíritos que, tendo sido criados por Deus na sexta-feira à tarde, na hora do crepúsculo, não puderam receber corpo, porque o sábado já havia começado.

  2. Desde então, os demônios tratam insistentemente de procurar um corpo e, com este objetivo, aproximam-se dos homens, tratando de induzí-los a práticas sexuais em que falta o par feminino, para que possam construir um corpo com o sêmen que cai no vazio.

  3. Quando o homem morre, todos os filhos que engendrou ilegitimamente com os demônios, a partir das práticas sexuais ilícitas ao longo da vida, comparecem depois de sua morte para participar do lamento fúnebre.

  4. Essas pequenas formas sem corpo gritam ao redor da tumba: “perdemos nosso pai, perdemos nosso pai!”

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Os demônios estão aí – avatares do mal. Alguns esforços na literatura contemporânea procuram dar conta das sobrevivências dessas imagens – imagens que organizam nosso mundo na medida que são representações de duas estruturas fundadoras, céu e inferno. Paraíso perdido, de Cees Nooteboom, e o anjo como performance, como cosplay e flash mob. Harold Bloom insiste na ligação do Juiz Holden, o maior e melhor personagem de Meridiano sangrento (Cormac McCarthy), com uma esfera super-humana, sobre-humana ou pré-humana – uma espécie de força atávica que irrompe em um momento de desespero. E não essa a mesma impressão que temos com Anton Chigurh, em Onde os velhos não têm vez? Mickey Sabbath, protagonista de O teatro de Sabbath (Philip Roth), além de toda ressonância sabática, religiosa e judaica (lembre o dia de formação dos demônios, lá em cima – e lembre a cena em que Sabbath chora a perda da amada com todos os fluidos de seu corpo em frente à tumba, de madrugada), é, para dizer o mínimo, um péssimo exemplo. Talvez seja possível ler a possessão em Nove noites, de Bernardo Carvalho, na mesma linha.


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  1. Na figura do anjo, origem e fim coincidem. Cada homem é criado segundo a imagem de um anjo que lhe é atrelado no nascimento – e quando morre o homem é levado à conciliação com aquilo que nunca foi.

  2. O anjo que vem ao encontro do homem no juízo final não é a imagem original, mas aquela que o próprio homem cristalizou com suas ações em vida.

  3. A ação final do anjo é como uma memória involuntária que traz imagens que nunca foram vistas, até serem recordadas.

  4. Essa utilização messiânica da memória está na leitura que Benjamin faz de Proust, na leitura que Piglia faz de Kafka através de Tardewski e na leitura que Cortázar faz de Keats, em pleno pampa argentino, em fins da década de 1940.

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segunda-feira, 17 de maio de 2010

O escritor e sua pareja, 2

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O mundo moderno, livro de Malcolm Bradbury, está curiosamente repleto de informações sobre os escritores e suas parejas – não chega a ser um assunto central, longe disso, mas se anuncia, aqui e ali. Consta que a mulher de James Joyce, Nora, nunca leu sequer uma linha do que escreveu seu marido. A primeira esposa de T. S. Eliot, Vivienne, foi internada em clínicas psiquiátricas algumas vezes, assim como a esposa de Luigi Pirandello. Zelda Fitzgerald, esposa de Scott Fitzgerald, também sofreu muito com distúrbios psíquicos os mais diversos (consta que o casal passeava de conversível jogando notas de dinheiro para os pedestres). Gala Dalí, esposa de Salvador Dalí (russa de nascimento), estimulava o marido a, na velhice, mesmo de cama, sofrendo de mal de Parkinson e arteriosclerose, desenhar e assinar febrilmente folhas de papel em branco, em seu castelo em Figueras, na Espanha. Falsificador de si mesmo.
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sexta-feira, 14 de maio de 2010

O escritor e sua pareja, 1

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Quando continuamos a pensar sobre o escritor e sua pareja, uma constelação se forma ao redor de Kafka. Ricardo Piglia, em um dos ensaios de O último leitor, reflete longamente sobre o jogo de sedução entre Kafka e Felice Bauer – Kafka, no encontro com Felice na casa de Max Brod, fica fascinado com a capacidade de leitura e de escuta de Felice, e se apaixona. Elias Canetti, em O outro processo, arma uma interpretação sistêmica da obra de Kafka baseada na relação dele com Felice. Canetti dedica seu livro a Veza Canetti, com quem casou em 1934, que também era escritora. Sebald comenta, em Vertigem, no capítulo “A vilegiatura do Dr. K. em Riva”, a angústia de Kafka durante sua viagem à Itália e as cartas que mandou a Felice – recebendo respostas que só aumentavam seu desamparo. Sebald está sempre sozinho. Mesmo quando aparece na foto, na frente de uma árvore gigantesca em Os anéis de Saturno, evidência de que havia alguém ali com ele, a narração é sempre em primeira pessoa. A única exceção está em Os emigrantes, nas breves passagens em que Sebald escreve “decidimos”, “fomos”.

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quinta-feira, 13 de maio de 2010

O escritor e sua pareja

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Fui levado a pensar nas relações íntimas, caseiras, dos escritores – e como isso pode influenciar no trabalho deles. Uma parte disso se deve às recentes leituras de Verão, de Coetzee, principalmente de AX e AM – e vale lembrar que li Verão a partir de uma cópia feita do livro de AM, recebido em casa, Deus sabe de onde. Os fracassos de Coetzee em suas relações amorosas me levam a pensar na rotina que pode se estabelecer entre um escritor e seu par, sua pareja, no caso de Ricardo Piglia. Esse contexto foi reforçado pela coincidência de duas entrevistas: levado ao site do SESC por conta do Concurso Literário, encontrei a entrevista com a última vencedora, Gabriela Guimarães Gazzinelli, que, ao comentar sua relação com os livros, diz: “sou casada com um filósofo, com quem tenho a felicidade de trocar ideias, textos e impressões de leituras”. Dois minutos depois leio a entrevista que Elvio Gandolfo fez com Ricardo Piglia, que diz: “Ahora tenemos una casa en Malabia y Gorriti, porque Beba quería tener unas plantas”. Gandolfo nos informa que Beba é Beba Eguia, pareja de Piglia. E Gandolfo diz mais: “antes de Beba vivió doce años con Josefina “la China” Ludmer, rigurosa ensayista literaria”. A pareja anterior de Piglia já impressiona – Ludmer é uma pensadora estupenda, autora de textos instigantes e basilares sobre a literatura latinoamericana. A pareja atual é uma surpresa agradável, quando lemos as palavras de Piglia: “Beba lee mucho, es traductora. Parte de lo que nos une es la literatura. Hace diez años que estamos juntos”. Parte do que nos une é a literatura: como é bom poder dizer isso de alguém.

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terça-feira, 11 de maio de 2010

Três cenas em vertigem


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Sebald em um quarto de hotel, durante a viagem a uma cidadezinha italiana. Atravessa a janela a algazarra que outros hóspedes fazem do lado de fora. Sebald reconhece a língua: é a sua. Os hóspedes barulhentos, que gritam piadas de mau gosto e comentários escrotos, são alemães. Sebald pensa em como gostaria de pertencer a outro lugar, outra nação. E em seguida corrige: como gostaria de pertencer a lugar nenhum.

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Muito mais adiante, mas ainda em Vertigem, Sebald chega a W., sua cidade natal – conhecemos, finalmente, o lugar de origem, desprezado naquela passagem já distante. Quando preenche o cadastro da pousada – que fica no exato lugar da casa da infância – Sebald escreve, no campo da profissão, “correspondente estrangeiro”, o que gera profunda desconfiança por parte da recepcionista. Correspondente estrangeiro: um estranho que já não reconhece sua origem, e regozija intensamente com isso.

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Há um terceiro momento de posicionamento tergiversado em Vertigem: conversando com Luciana Michelotti, a proprietária do hotel em Limone, Sebald, ao ser visto com seus papéis e suas anotações, é questionado sobre sua ocupação e sobre a razão de estar escrevendo. Luciana pergunta: o senhor é escritor, jornalista? “Respondi que nem uma coisa nem outra correspondiam inteiramente à verdade”, escreve Sebald. Nem uma coisa nem outra – onde está Sebald, afinal de contas? Ele joga com a verdade porque precisa dela – senão não usaria justamente as passagens biográficas tanto de Stendhal quanto de Kafka, para marcar certo pertencimento possível para sua escritura. A literatura em Sebald é um compromisso com a vida, com a própria vida. Importa transitar, portanto, pelos lugares que lhe digam diretamente respeito.

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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Napoleão


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1) Napoleão pode ser lido como um mensageiro da destruição, como a própria destruição encarnada – um visionário, um anjo da história deixando resíduos fumegantes como herança – ou como uma personagem permanente. Pensemos primeiro em Sebald, que era, como sabemos, obcecado pela destruição (ao ponto de rastrear uma possível História Natural da Destruição): Napoleão está em Austerlitz – Napoleão praticamente nomeia Austerlitz – por conta da célebre batalha de Austerlitz. Talvez a pergunta central do livro de Sebald: até onde podemos cavar ao fim de uma guerra?

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2) Ainda Sebald: basta reler a primorosa primeira parte de Vertigem, toda costurada ao redor da figura de Napoleão – enquanto desenrola as histórias de Stendhal no front napoleônico. Próximo de Napoleão, Stendhal só podia ser Henri-Marie Beyle – o prosaico nome próprio que Sebald transforma em pseudônimo (ele nunca menciona o nome Stendhal, Beyle é apenas um soldado de Napoleão que resolveu escrever). Napoleão é um neutro, um absoluto.

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3) Em um breve texto sobre Wilcock, escrito para um jornal, Bolaño afirma: “por aqueles anos eu não tinha dinheiro para comprar livros e o que lia tirava da biblioteca (ali descobri Tomeo, ali li Lidell Hart e todos os livros que pude encontrar sobre as guerras napoleônicas)” - esse mesmo Tomeo, Javier Tomeo, que escreveu um romance chamado Napoleón VII, de 1999, que Bolaño conhecia. Aproveite agora que vai sair 2666 e preste atenção nas passagens em que ele menciona Napoleão, sobretudo na parte de Arcimboldi. Napoleão é o ponto de convergência de toda ideia sobre destruição e violência.

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A coleção de documentos que Stanley Kubrick tinha sobre Napoleão equivalia à segunda maior biblioteca sobre o tema do mundo, só perdendo para a coleção do próprio governo da França.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Um homem que dorme

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O homem que dorme no livro de Georges Perec vive em um quarto minúsculo, com alguns livros que já leu e releu, duas camisas e algumas meias. Perec faz questão de inventariar tudo que passa pelas mãos desse homem – assim como esse mesmo homem faz questão de inventariar tudo que vê, todos os lugares pelos quais passa, tudo que come. Desta forma, fica impossível não relacionar Perec e seu homem que dorme, jovem estudante de sociologia, solitário, estranho, indiferente notívago.

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O quarto é fundamental, o local que sempre retorna, o lugar do sono. É como o quarto de Raskolnikov, diminuto, delirante. Outras figuras desfilam sobrepostas ao ambiente de Perec, o ambiente em que o homem não apenas dorme, mas arquiteta seu progressivo desligamento do mundo): o Emmanuel Bove de Meus amigos e o Bove de Pasavento, de Vila-Matas, deslizando indiferente pela grandiosidade de André Gide, vizinho do andar de cima na Rue Vaneau; Duchamp e sua penúria autoimposta, em Paris, em Nova York; o quarto de Hölderlin e de sua loucura.

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O homem de Perec circula por Paris, entrando nos cafés, nos cinemas, nas Passagens, como faz Oliveira em Rayuela, ambos descobrindo espetáculos espontâneos que nunca mais se repetirão (a mesma mobilidade urbana de Os lados do círculo, de Amílcar Bettega Barbosa, não por acaso um morador de Paris). Há alguma coisa no homem que dorme de Perec que o afasta e o aproxima dos real-visceralistas de Bolaño:

1) Perec: o homem que dorme, logo no início do livro, abandona seus estudos e seus colegas na universidade, seguindo adiante por conta própria, tornando seu vocabulário e seu trato social cada vez mais rarefeitos. Seu mundo está dentro de seu crânio, como na cenografia de Fim de Partida de Beckett, e sua passagem pela geografia de Paris é autofágica, solipsista, absorvida.

2) Bolaño: os real-visceralistas, também vagabundos, também estudantes formais relapsos, que percorrem a Cidade do México tão delirantemente quanto o homem que dorme, só existem a partir do diálogo, da troca intensa de ideias, mesquinharias e teorias da conspiração. Abandonaram a universidade conhecida para fundar uma universidade desconhecida no interior dos cafés e nas esquinas – no deserto, nos subúrbios. A essência do real-visceralista é ler seus poemas em voz alta, esperando pelo próximo.

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A questão, surpreendentemente travestida de novas roupagens e presente em textos aparentemente distantes, é da mesma família daquela envolvida no embate entre diálogo e monólogo que Harold Bloom vê nascer no contato de Shakespeare e Cervantes. A partir disso ele traça toda uma linhagem: de Cervantes, do Quixote e de Sancho Pança sai o diálogo, a troca, a narrativa que se desenvolve a partir da articulação de diferenças; de Shakespeare (com seus pensamentos em voz alta e suas ruminações subjetivas) sai a escola auto-centrada, autorreflexiva.
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quarta-feira, 5 de maio de 2010

A terceira parte de Dublinesca

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A esposa de Riba, Celia, funciona como um contraponto permanente ao literário – é quase como um superego. No fim do livro Riba diz saber que a mulher nunca se importou com os autores que o marido editava e que passavam a noite bebendo quando apareciam para jantar (Amis, Houellebecq, Hobbs Derek, são alguns dos nomes citados). Celia vira budista no meio do livro, o que parece lembrar a fixação que Vila-Matas tem naquela história que conta Walter Benjamin sobre a convenção de monges budistas, que deixavam sempre a porta entreaberta de seus quartos no hotel.
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É realmente um livro complicado de deglutir. Talvez eu estivesse esperando uma mudança, é claro, mas talvez uma guinada ainda mais forte ao completamente literário. Quando o estranho aparece (seguindo a indicação de Joyce na cena do cemitério, e a indicação de Nabokov do estranho ser o autor) e reaparece no livro, já no fim da segunda parte, eu pensei: “Pronto, agora na terceira parte vai aparecer o Vila-Matas, ele vai interromper a história, bater na porta do editor, como o narrador de A viagem vertical faz (um movimento narrativo, aliás, que exige muita calma e tempo, tentativa e erro, que Vila-Matas, talvez por conta do novo contrato, abandonou - o famoso festina lente)”. Mas não foi o que aconteceu. O livro seguiu seu curso, sem mudanças. É um livro cinzento, sem altos nem baixos, vai no mesmo registro até o fim. Mesmo o fim da era da imprensa não gera um clímax ou um ponto extremo de loucura no protagonista. Mas não deixa de ser perturbador esse tom – depois da intensidade que se dispara em muitas direções de Montano e Bartleby ou da delirante exaustividade de Pasavento.
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O que há de mais interessante no livro ficou nas entrelinhas, bem de vez em quando expresso: a relação entre Joyce e Beckett. Logo que saíram as primeiras notícias sobre o livro, pensei que esse seria o eixo principal, e não a aposentadoria amarga de um editor alcoólatra de Barcelona. A analogia que apresenta Vila-Matas (mas que não explora da forma com que exploraria se algo não tivesse mudado) é a seguinte: Joyce está para a era da imprensa assim como Beckett está para a era das mídias digitais, no sentido de que para Joyce ainda havia o grandioso, o trágico e a totalidade, enquanto Beckett opera ao rés do chão, de cara para o chão, no silêncio e na impossibilidade. Há, portanto, esse diálogo entre dois mundo que conviveram intimamente, ainda que absurdamente opostos. Ou seja, um contexto que opera tanto no geral quanto no particular, tanto na literatura quando na geopolítica – tanto no tema quanto na forma.
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Esse contato entre dois mundos é apresentado já na primeira parte, e também abandonado rápido demais. Vila-Matas focou demais nas agruras do velho editor e descartou muito rapidamente as possibilidades críticas mais interessantes do livro. Na primeira parte, Riba relê O litoral das sirtes, romance de Julien Gracq, e dela retira uma teoria do romance com 5 etapas – e reflete sobre o procedimento deliberado de retirar regras para o romance futuro de um livro tido por ultrapassado (Vila-Matas escreve isso, ou seja, Riba sabe que Gracq é tido por velho e deliberadamente retira daí uma projeção para o futuro – sobrevivências do arcaico operando dentro da teoria literária). As 5 diretrizes para o romance do futuro, retiradas de Gracq, são: 1) intertextualidade; 2) conexões com a alta poesia; 3) consciência de uma moral em ruínas; 4) ligeira superioridade do estilo sobre a trama; 5) a escritura vista como um relógio que avança.
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Há sempre a morte e o fim, no fim das contas. Eras que acabam, pessoas que morrem, velórios, cemitérios. “Dublinesque”, o poema de Philip Larkin que dá título ao livro, é um poema fúnebre – acompanha o cortejo de uma prostituta. “São sempre os outros que morrem”, diz a lápide de Duchamp, outra figura que passou rápido demais pelo livro (há inclusive a reutilização da frase “Por que Marcel Duchamp voltou do mar?”, que está na primeira parte de Montano). Há a morte do autor, que Vila-Matas insiste em voltar, ainda que o final do livro se esforce para dar uma nova volta no velho parafuso. A morte como um conjunto complexo de resíduos do passado, que Vila-Matas vai posicionando aqui e ali – ainda que, dessa vez, em alguns lugares previsíveis.
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terça-feira, 4 de maio de 2010

A segunda parte de Dublinesca

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A segunda parte de Dublinesca é quase inteiramente voltada para o Bloomsday vivido em Dublin pelo editor Riba e seus amigos. A questão do grupo, cada indivíduo responsável por trazer um elemento distinto para a narrativa, é também muito presente em Dublinesca, assim como foi para a Historia abreviada – na criação da conjura por Duchamp e outros num porto africano – e também para Montano – as comemorações em Valparaíso, com Tongoy, a esposa e tantos outros. Mas Riba é sempre o centro e está sempre isolado, o que faz a segunda parte de Dublinesca girar numa chave monofônica, monolínguistica.

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No hotel em Dublin, Riba encontra uma maleta no quarto – a maleta de algum desconhecido. Esse desconhecido vai atrás da maleta (supõe Riba) e bate em sua porta de madrugada. Riba não abre e o estranho vai embora. O estranho é outro mote joyceano que sempre retorna em Dublinesca e que é muito interessante: uma referência ao estranho que aparece no enterro do sexto capítulo de Ulysses, que Bloom não sabe quem é – Vila-Matas repassa, através de Riba, a interpretação de Nabokov, ou seja, de que o estranho no enterro era o próprio Joyce. Nabokov chegou a essa conclusão baseado na teoria de Dedalus sobre Shakespeare, exposta no capítulo da biblioteca, teoria que afirma que Shakespeare sempre se retratava em todas suas peças.

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Dublinesca é mais uma contribuição de Vila-Matas ao pensamento do fim: agora que tudo foi finalizado, como prosseguir? Montano é o fim da literatura, Pasavento é o fim do autor – Dublinesca trata do fim da era Gutemberg, da era da imprensa, do livro impresso. Pasavento já trazia o Google e o e-mail como personagens fundamentais, e a coisa vai um pouco além agora. Riba passa noites em claro diante do computador e vai ficando cada vez mais apático. Mas ele não entende, não faz nada de diferente com esses dispositivos, com essa nova cognição. Ele só fica mais abatido, mais insone, mais sem-graça. Ressentido por um tempo que já passou, o tempo em que ele editava livros e buscava o seu gênio perdido, etc.

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De qualquer forma, o editor parece uma boa imagem do leitor – pelo menos uma imagem diferente do escritor, já tão usada por Vila-Matas. O editor, Riba especificamente, é alguém que tem contato com o literário sem ter a intenção de transformá-lo ou recriá-lo. Ou ainda: um leitor de ficção que vê o real sem a intenção de ficcionalizá-lo. Esse descolamento do literário é um dos eixos de Dublinesca: sempre que surge uma cena literária, Riba faz de tudo para que ela não se concretize ou vá adiante. Seja nas brigas com a mulher ou no estranho no hotel querendo a maleta (que daria “um bom começo” para um escritor, segundo Riba), o editor sempre evita desdobramentos literários. Ou seja, ele pensa: “Um escritor encontraria bom material aqui, mas não, estou cansado deles”.

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segunda-feira, 3 de maio de 2010

A primeira parte de Dublinesca

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Dublinesca, o último livro de Enrique Vila-Matas, é dividido em três partes: maio, junho e julho. É um livro grande, com mais de 300 páginas, e lembra, já de saída, O mal de Montano e Doutor Pasavento. Para mim não fez grandes diferenças ele ter mudado da Anagrama para a Seix Barral. Talvez a diagramação e a legibilidade da Barral sejam um pouco melhores, mas eu ainda prefiro as capas da Anagrama, ainda que feias. Um pouco da primeira parte de Dublinesca, em tópicos:


1) O protagonista: O livro é narrado em terceira pessoa, o que já complica um pouco as coisas. Não é a praia do Vila-Matas; o que ele fez de melhor, fez com a primeira pessoa. Ele agora narra, onisciente, as andanças do editor Samuel Riba, recém-aposentado. É um sujeito meio enfadonho – e Vila-Matas desloca a angústia dos antigos personagens escritores, que queriam escrever ou não escrever algo sensacional, para um editor cuja maior ambição era encontrar um gênio para publicar.

2) A bebida: Vila-Matas faz menção ao esgotamento físico e psíquico que Riba sofreu dois anos atrás, e ao consequente afastamento da bebida. Vila-Matas já havia falado sobre isso, na primeira pessoa, em Dietario e em entrevistas, ou seja, o problema que ele mesmo enfrentou quando estava em viagem na Argentina e teve que se internar. Desde então, não sai mais tanto à noite e parou de beber. Sabendo disso, as partes de Dublinesca reservadas para as lamentações de Riba sobre a ausência da bebida ficam até interessantes. Ele fala bastante sobre a bebida na primeira parte.

3) Viagem: Maio é o mês em que Riba decide ir a Dublin para comemorar o 16 de junho na cidade do Ulisses. Fora isso, relembra viagens à França e fantasia com Nova Iorque e Paul Auster. As partes que fala de Nova Iorque são legais, mas ainda não mostra a vertigem do deslocamento que aparece, por exemplo, em Doutor Pasavento e Lejos de Veracruz. Muito pelo contrário: a vida do editor é bem estagnada, e o procedimento que Vila-Matas utiliza com a Rue Vaneau em Pasavento ele parece espelhar na Calle Aribau, onde moram seus pais, que ele visita toda quarta-feira, mas o resultado é bem diferente.

4) Cotidiano: A relação com a esposa é muito semelhante àquela de O mal de Montano – o mesmo distanciamento e a mesma percepção dela de que ele está enlouquecendo. Até a cena de sexo é bem parecida: uma coisa que simplesmente acontece, depois de um desentendimento. Mas a questão do cotidiano aparece bem forte na leitura do Ulisses que, aliás, é o centro forte do livro. Essa primeira parte ainda ensaia a aproximação com o livro de Joyce, mas a intervenção da literatura sobre o prosaico, o rotineiro e o cotidiano começa a ser considerada e é interessante.

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