domingo, 13 de abril de 2025

Algodão, batalhas


Já no final de Autobiografia do algodão, Cristina Rivera Garza escreve:

"A verdade é que passamos vários verões no carro, dirigindo por um longo tempo naquelas estradas longas e retas pela fronteira entre o México e os Estados Unidos. Procurávamos os campos de algodão, seus vestígios. Se já não estavam mais lá, queríamos ver o que estava em seu lugar, todos aqueles anos depois. Queríamos viajar do lado mexicano, mas os campos de algodão do passado haviam se tornado os campos de batalha mais quentes [los campos de batalla más álgidos] da chamada guerra contra o narco. De Mexicali, passando por El Paso, mas especialmente em torno de Matamoros, a terra do algodão é agora a terra do sangue e da tortura, a terra das valas a céu aberto, a terra onde se semeiam desaparecidos e se colhe impunidade, desgraça, esquecimento. Embora tenhamos feito todo o possível, nunca chegamos lá. Nunca conseguimos pisar naquele mítico K-61, espaço 124 onde começa, em um inverno de muita chuva, um inverno cheio de lama e esperança, a segunda parte desta história" (trad. Silvia Massimini Felix, Autêntica Contemporânea, 2025, p. 313)

As fronteiras, as viagens e as estradas - ecos claríssimos de 2666, de Roberto Bolaño, mas também a paisagem espectral de Juan Rulfo (a quem Rivera Garza dedica todo um livro, que comentei aqui). Mas como descrever as diferenças, tão claras durante a experiência de leitura, entre o tratamento da fronteira/viagem que faz Bolaño e aquele que faz Rivera Garza? O primeiro mantém o nível dos personagens e da fabulação sempre em primeiro plano, enquanto a segunda faz a narrativa ser atravessada continuamente por um nível "externo", o nível do "real" da narradora, que compartilha nome, condições e localização espaço-temporal com a autora que assina o livro; Bolaño mais "mostra" do que "diz", já que suas cenas guardam sempre um viés de enigma, de obliquidade, certa suspensão poética acerca da intenção de apresentar certos personagens ou diálogos; Rivera Garza, por sua vez, é aberta e direta em suas conexões e declarações, o romance é, claramente, uma reflexão sobre o presente, uma mistura de sociologia, antropologia e ficção, os bastidores fazem parte do trabalho artístico.  


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