quinta-feira, 29 de junho de 2023

Crise e transformação



1) No quarto capítulo de seu livro The Benjamin Files, Fredric Jameson aponta "a mais característica atenção" de Benjamin àquilo que considera "histórico na história": os momentos de "crise e transformação" (p. 67). Rupturas, limites e fronteiras; pontos de clivagem entre o que já foi e o que ainda não é; em suma, mais uma elaboração da fábula de Kafka sobre o homem que quer construir uma casa com o material de outra e termina com duas casas semi-destruídas.

2) Auerbach, quando publica seu livro sobre Dante na década de 1920, também apresenta um momento de crise e transformação, falando do momento em que o mundo de Dante já não faz mais sentido para um de seus sucessores, Petrarca. Em outro momento do mesmo livro, ainda circulando ao redor dessa questão (a convivência tensa entre o discurso crítico e os momentos de ruptura ou de incompreensão), Auerbach fala da consciência histórica limitada da Idade Média e, por consequência, de Dante. Trata-se de uma ausência de "historicismo estético", uma inovação de Vico (segundo Auerbach, que também fala de Vico no livro sobre Dante, e também salientando a incompreensão de Vico em particular - e de seu século em geral - diante da Comédia). 

3) É possível lembrar o exemplo dado por Roberto Calasso em seu livro sobre Kafka, chamado simples e efetivamente de K. Calasso cita uma passagem de um caderno de 1922 (que está em Nachgelassene Schriften und Fragmente II): "A escrita se nega a mim", escreve Kafka. "Investigação e descoberta de elementos tão mínimos quanto possível. Com eles quero depois me construir. Como alguém que tem uma casa insegura e quer construir outra, segura, ao lado, com o material da antiga. Mas a coisa fica séria se, durante a construção, suas forças o abandonarem e então, em vez de uma casa insegura mas completa, ele ficar com uma casa semidestruída e outra pela metade, ou seja, com nada" (K., tradução de Samuel Titan Jr., Companhia das Letras, 2006, p. 25).

sábado, 24 de junho de 2023

Convicção


1) É digno de nota o modo como Auerbach - em seu livro Dante como poeta do mundo terreno - liga o gênio de Dante à sua obsessão, sua fixidez, sua megalomania, sua liberdade de acreditar que estava fazendo algo novo e grandioso, inédito e transformador - a profunda convicção de que era melhor que seus contemporâneos, que era tão bom quanto Virgílio. Com isso, fica posta a questão da relação entre obra e megalomania, algo que Harold Bloom também aponta como decisivo no caso de Shakespeare e sua "invenção do humano" (em certa medida, é o que Bloom vai identificar em todos os poetas fortes em A angústia da influência). 

2) A história do romance no século XX é um desdobramento (e uma intensificação) dessa percepção que Auerbach tem de Dante e que Bloom tem de Shakespeare: logo no início do século, os projetos artísticos de James Joyce e Thomas Mann se desenvolvem sob o signo da desmedida, da audácia, do desejo de renovar as ambições estéticas a cada novo livro (no caso de Joyce, esse movimento fica condensado na passagem do Ulisses para o Finnegans Wake; no caso de Mann, é reiterado várias vezes, de Buddenbrooks em 1901 para A montanha mágica em 1924, com o ciclo José e seus irmãos de 1933 a 1943, com o Doutor Fausto em 1947).

3) Nas últimas décadas do século XX, outros dois casos emblemáticos: em primeiro lugar, Thomas Bernhard, que fez da desmedida de seu ódio (e de vários outros ugly feelings correlatos) o motor de sua ficção e, sobretudo, de seu estilo (desde Perturbação, de 1967, até seu último romance, imenso, pantanoso e inesgotável, Extinção, de 1986); em segundo lugar, Roberto Bolaño, que repete a inconclusão de Joyce (em Finnegans Wake) com 2666, lançado postumamente em 2004, continuação e complexificação da cartografia obsessiva de Os detetives selvagens, de 1998. 

terça-feira, 20 de junho de 2023

Era 1956


"O diário de Cornell está cheio de anotações que revelam suas angústias. Queixava-se de uma dor no pescoço, e sempre melhorava quando conseguia notar que, na verdade, se sentia confiante. Por outro lado, tinha uma segurança aristocrática que lhe permitia mover-se com facilidade no mundo de Manhattan, travar amizades significativas com pessoas como Pavel Tchelitchew e Marianne Moore, e conhecer suas bailarinas prediletas, especialmente, no fim da vida, Allegra Kent (...). 

Cornell era um desses errantes de praia no ambiente da cidade, sempre fuçando os sebos e as gráficas à cata da miscelânea de rejeitos da Europa e dos primórdios dos Estados Unidos que tinham aportado nessas paragens. Em seus diários, ele recorda as impressões de seus dias na cidade, ainda que faça questão de nos lembrar que 'aquela confusão de garatujas feitas no local ou de memória se opõe diametralmente ao natural desdobramento do dia'. Cornell jamais perdeu a cautelosa confiança que costumamos associar aos adolescentes. Era sempre o homem a espreitar nos cantos. Espelhos, vidros, reflexos eram temas constantes em seus diários. (...) 

Nos diários, Cornell sempre vê duas ou três coisas ao mesmo tempo, como uma colagem ou uma montagem. 'Um cappuccino (da Grand ou da Mott?) foto de um operário no espelho & relógio de pêndulo'. Era 1956. (...) As páginas do diário estão cheias de impressões emaranhadas e superpostas de tal forma que, para Cornell, um dia na cidade de Nova York de meados dos anos 50 podia parecer-se com um dia em meados do século XIX" (Jed Perl, New Art City, trad. Pedro Maia Soares, Cia das Letras, 2008, p. 321-322).

quarta-feira, 14 de junho de 2023

Fluidez e projeto



1) É preciso ter sempre em mente a enormidade do projeto de Balzac em A comédia humana, o modo como atualiza a "narração universal" de Dante e, ao mesmo tempo, depende fortemente das inovações tecnológicas de seu tempo, de sua contemporaneidade, das novas configurações sociais e econômicas (a expansão monstruosa das cidades e dos capitais), etc. Um projeto de proliferação narrativa e editorial como o de César Aira, por exemplo (que deliberadamente joga com a dimensão mercantil da literatura: livros por editoras multinacionais mastodônticas e, simultaneamente, livros por editoras caseiras com capas de papelão feitas à mão), não pode ser entendido sem a mobilização do modelo de Balzac.

2) Em Balzac, a cisão entre narração e julgamento ganha o primeiro plano da narrativa: ao contrário de Goethe, por exemplo, Balzac confere à narrativa uma fluidez que é decorrência de sua suspensão da "tomada de posição", da opinião direta, do juízo de valor, da lição de moral e assim por diante. Os valores não são o horizonte em vista para os personagens de Balzac, como muitas vezes são para Goethe; em Balzac, ao contrário, os valores muitas vezes são obstáculos absorvidos aos discursos dos personagens em seus relatos de sucesso ou insucesso (a legitimidade das escolhas é irrelevante, sequer surge como tema da narrativa).

3) Uma diferença importante entre Stendhal (1783-1842) e Balzac (1799-1850): no primeiro, os valores estão sempre em questão, fazendo parte da dinâmica de progressão da narrativa (uma vez que a tensão entre a realidade e os valores - ou os ideais - é o que dá substância à trajetória do protagonista, como Julien Sorel em O vermelho e o negro), muitas vezes servindo de material de reflexão para a voz narrativa, que suspende a peripécia para comentar (às vezes chamando o leitor como testemunha). Em Balzac, a tensão entre realidade e ideal não é matéria de comentário, e sim uma sorte de posição textual em declive: a partir disso, algo se movimenta, algo se desloca, o suspense se cria e a narrativa (mastodôntica, sem centro fixo, "cem mil romances", proliferativa, sem qualquer intenção de finalização) passa a ocupar novos territórios.

terça-feira, 6 de junho de 2023

Detlef Holz


1) Quando Walter Benjamin propõe uma compilação de grandes cartas, com seu livro Gente alemã (espécie de precursor do livro feito inteiramente de citações que ele projeta no trabalho das Passagens), faz uso da figura tutelar de Goethe para falar de um mundo que não existe mais e do qual é preciso realizar o trabalho do luto (o livro sai em 1936 sob o pseudônimo Detlef Holz, editado na Suíça - precisamente o local onde sairá, dez anos depois, o livro de Auerbach, Mimesis, também uma meditação sobre mundos que não existem mais). 

2) Muitas décadas depois, quando Coetzee publica Elizabeth Costello, promove um movimento semelhante, embora mais complexo, com mais uma volta no parafuso, já que Coetzee o faz a partir de uma persona (uma máscara, uma prótese) interposta: precisamente Costello, que "não existe". É Costello quem resgata a carta de Lord Chandos, mostrando que, no interior dessa invisibilidade (a própria natureza da linguagem, do mistério da linguagem, da linguagem como mistério), se desdobra outra, a de Lady Chandos ("Carta de Elizabeth, Lady Chandos, a Francis Bacon" é o título do epílogo de Elizabeth Costello).

3) É inquestionável que a carta se impõe, que dá um jeito de chegar, por mais que demore: a carta de Goethe alcança Benjamin (que se transforma em Detlef Holz, sua persona, máscara, prótese), assim como a carta de Chandos alcança Coetzee (que inventa uma cena na qual a carta invisível de Lady Chandos pode alcançar Elizabeth Costello - nessa invenção, o abismo que separa a persona do livro, "Elizabeth Costello" de Elizabeth Costello, uma difference derrideana que não se marca com a voz, mas com a grafia, o rastro).