segunda-feira, 30 de maio de 2022

T. S. Eliot, 1965

1) Quinze anos depois do primeiro texto, Montale retorna à visita feita a Eliot, agora no Corriere della Sera de seis de janeiro de 1965. "Encontrei T. S. Eliot duas vezes", diz a primeira frase, já abrindo espaço para a incerteza: "A primeira foi, se não me engano, na primavera de 47, e estava acompanhado de Alberto Moravia". Agora temos a identidade de um dos dois companheiros da visita a Eliot em Londres. Montale repete a informação do agendamento com 15 dias de antecedência, acrescentando, no entanto, os "olhos azuis atrás de duas espessas lentes" (em 1950 Montale fala do "olhar límpido e penetrante").

2) Vários detalhes do encontro com Eliot aparecem nesse segundo texto: Montale diz que não fez anotações; diz que "foi servido um chá con qualche tartina"; diz que depois de 30 minutos apareceu uma secretária e que, com um olhar, Eliot "nos fez compreender que era oportuno encerrar o incômodo". Repete a informação das duas fotos (o Papa e Virginia Woolf), mas dentro de um contexto novo: fazendo referência à visita do poeta a Roma, escreve que, na passagem por uma igreja, Eliot se ajoelha diante do altar ("coisa que fez um imbecil rir, mas não a mim, que vi em seu escritório a foto do Papa ao lado daquela de Virginia Woolf").

3) Repete também, textualmente, o percurso de referências que utilizou para exemplificar a poética citacional de Eliot ("da Bíblia...a Wagner"). O texto de Montale é publicado dois dias depois da morte de Eliot, e isso faz diferença na certeza manifestada pelo texto acerca da permanência de sua obra: "o poeta ficará certamente entre os maiores do século", mesmo diante do confronto com o "miraculoso" William Butler Yeats. O Eliot crítico, escreve Montale, "é inseparável do poeta": mesmo as "frequentes oscilações de gosto" (o ataque juvenil a Goethe, mais tarde revisto) não diminuem "a importância de Eliot como testemunha de nosso tempo".  

sexta-feira, 27 de maio de 2022

T. S. Eliot, 1948


1) Em um dos números da revista Lo Smeraldo, que sai em Milão em 30 de maio de 1950 ("Invito a T. S. Eliot", disponível, entre outros lugares, na coletânea Sulla poesia, Mondadori, 1997, p. 457-465), Eugenio Montale relembra uma visita que fez ao escritório de T. S. Eliot em Londres. Antes disso, contudo, relembra também a homenagem feita a ele em Roma, em 1948, "na casa da princesa de Bassiano". Montale registra uma cena interessante: quando Eliot entra no salão, alguns não o reconhecem, dada a difusão ainda baixa das "fotografias de autor". 

2) Eliot recebe no seu escritório da Russell Square, endereço da editora Faber and Faber; Montale escreve que fez a visita com outros dois amigos, que não são nomeados, "poucos meses antes de reencontrá-lo em Roma"; o escritório é pequeno, cheio de livros, e chama a atenção de Montale (de novo as imagens) duas fotografias de grande porte: o Papa (Pio XII, à época) e Virginia Woolf. O encontro havia sido marcado com 15 dias de antecedência pelo British Council, e Montale reconhece nos modos de Eliot não apenas "os deveres da etiqueta", mas também sua "técnica da conversação", um saber perguntar e responder, uma "abertura de alma", alguém que sente "que pode aprender algo" mesmo do "leitor mais desconhecido".

3) Eliot é o único poeta que consegue ler em voz alta seus poemas sem fazer a audiência rir, escreve Montale. Declara ainda que, depois da conferência de Eliot em Roma (sobre Edgar Allan Poe), ele "leu algumas de suas líricas": "ninguém entendia, todos entendiam". Eliot não é um "poeta puro" como Valéry, continua Montale, mas um autor que constrói a poesia a partir de evocações, citações, palimpsestos: A terra desolada "é um denso tecido de citações que vão da Bíblia a Shakespeare, do Rig Veda às lendas de Artur, de Dante a Wagner". Valéry "foi um rio"; Eliot, por sua vez, escreve somente "depois de uma profunda acumulação interior".  

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Crônica dos anos 1850


A preparação da década se dá já em 1849, ano da morte de Edgar Allan Poe, aos quarenta anos, em sete de outubro. Dois de seus poemas são publicados ainda nesse ano, mas já postumamente: "Annabel Lee" (nove de outubro de 1849, New York Daily Tribune) e "The Bells" (novembro de 1849, Sartain's Union Magazine); o ensaio "The Poetic Principle", por sua vez, foi publicado no Home Journal, em 31 de agosto de 1850.

The Scarlet Letter, de Nathaniel Hawthorne, foi publicado em março de 1850; Moby-Dick, de Herman Melville, em outubro de 1851 ("Bartleby", por sua vez, na edição de novembro/dezembro de 1853 da Putnam's Monthly Magazine); Walden; or, Life in the Woods, de Henry David Thoreau, foi publicado em agosto de 1854; em julho de 1855, com seu dinheiro, Walt Whitman publica a primeira versão de Leaves of Grass (reformulado ao longo dos próximos 40 anos).

Entre dezembro de 1851 e março de 1852, Marx escreve Der 18te Brumaire des Louis Napoleon, que publica em março de 1852 na revista alemã, publicada em Nova York, Die Revolution; em 1854, 1855 e 1856 são publicados postumamente três romances incompletos de Balzac, falecido em 1850: Le Député d'Arcis, Les Paysans e Les Petits Bourgeois; de outubro a dezembro de 1856, na Revue de Paris, Flaubert publica Madame Bovary, que sai em livro pela primeira vez em abril de 1857 (depois do processo vencido, que permite a Flaubert incorporar as partes cortadas na publicação seriada); em junho de 1857, Baudelaire publica a primeira versão de Les Fleurs du mal, processado por imoralidade já no mês seguinte; Heine morre em Paris, 17 de fevereiro de 1856.

Tolstói publica sua trilogia autobiográfica ao longo da década: Infância em novembro de 1852; Adolescência em 1854; Juventude em 1857; para Dostoiévski, foi um período de intenso sofrimento: preso em 23 de abril de 1849 como "conspirador", condenado à morte, "perdoado" e por fim enviado para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria (foi libertado em 14 de fevereiro de 1854; Recordações da casa dos mortos será publicado entre 1860 e 1862); Gógol, que morre em 4 de março de 1852, na noite de 24 de fevereiro queima seus manuscritos, inclusive a segunda parte de Almas mortas (parte da acusação contra Dostoiévski dizia que ele havia lido textos banidos pelo regime, como a "Carta a Gógol", de 1847, de V. G. Belinski; Turguêniev é preso em abril de 1852 por escrever um obituário elogioso de Gógol).  


quinta-feira, 19 de maio de 2022

Jogo de montar



1) Em artigo intitulado "Construído com astúcia: um modelo para o modo de escrever de Walter Benjamin" (disponível no livro coletivo Walter Benjamin. Experiência histórica e imagens dialéticas), Erdmut Wizisla apresenta uma série de descobertas realizadas no Arquivo Walter Benjamin (Walter Benjamin Archiv / Akademie der Künste, Berlin), do qual é diretor. O que me interessa especialmente é o detalhamento da relação entre Benjamin e Ferdinand Lion, autor do livro sobre Descartes, Rousseau, Bergson (ao qual fiz referência em comentário sobre Barthes). Wizisla faz uso da correspondência entre Lion e Benjamin em torno da publicação, em 1938, de um artigo sobre o Instituto Social de Adorno e Horkheimer, delineando no processo um "modelo" do "modo de escrever" de Benjamin.

2) Lion, que era responsável pela revista Mass und Wert, que lidava com uma série de outros autores, temas, egos, diagramações, prazos e questões técnicas, solicitou a Benjamin que não se alongasse muito em seu texto, para que pudesse ser colocado na seção de "críticas". Ao invés de mandar um texto curto, Benjamin mandou a Lion um texto longo dividido em muitas partes, para que o editor pudesse escolher a disposição que quisesse, seguindo, porém, instruções que oscilavam entre o barroco e o cabalístico: O marco do manuscrito: páginas 1, 2, 3 e 11. As páginas 8, 9, 10 formam um bloco que pode ser inserido neste marco como um todo fechado, ou melhor isolado, ou ainda junto com outras páginas. As páginas restantes, 4/5, 6, 7 podem ser incluídas de forma individual, ou melhor, em conjunto; teria aqui de levar em conta tão somente que a página 6 não pode figurar sem as páginas 4/5 (ou melhor, ao contrário). A extensão mínima do manuscrito: menos de três páginas; a máxima: oito páginas completas

3) Wizisla comenta: "A observação preliminar oferecia a Lion pelo menos onze possibilidades diversas de combinar os oito elementos. O redator escolheu uma décima segunda, não autorizada, que violava as intenções do autor"; argumenta ainda que o procedimento de Benjamin nesse caso específico está ligado ao modo como ele organizava seu pensamento de forma mais ampla: o Livro das Passagens, suas ideias sobre Paris como capital do século XIX, suas reflexões sobre o surrealismo e sobre a tradição como um jogo de montagem e combinação (um fio que desemboca na Rayuela de Cortázar, na obra de Perec, na desmontagem do poema de Baudelaire por Lévi-Strauss e Jakobson, naquela que faz Barthes com Balzac em S/Z, no David Markson de Reader's Block, no Coetzee de Diário de um ano ruim). "O modo de construção de Benjamin significa um adeus à linearidade e hierarquia", escreve ainda Wizisla. 

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Os três nomes



1) Em 2001, César Aira lança Las tres fechas - um ensaio que analisa a obra de três autores obscuros, Denton Welch, Paul Léautaud e J. R. Ackerley, testando a hipótese de que "para ser representativo de uma época" o autor precisa "ser menor" (uma sorte de retomada, no âmbito da literatura, daquilo que Ginzburg definiu no "paradigma indiciário" como o momento em que o artista se revela quando não presta atenção ao processo técnico, como as orelhas e os dedos dos pés que Morelli analisa nas pinturas). Em Aira, a teoria das três datas consiste na distinção de três momentos, interligados mas independentes: a escrita do livro, sua publicação e os eventos que transcorrem no interior da trama. 

2) Trinta anos antes, em 1971, Barthes lança Sade, Fourier, Loyola, cujo principal gesto é o de aproximar, em uma mesma "frase", o libertino (1740-1814), o filósofo utopista (1772-1837) e o santo jesuíta (1491-1556). O fio que costura o trio é a língua: Barthes afirma que os três foram "fundadores de línguas", "a língua do prazer erótico, a língua da felicidade social, a língua da interpelação divina". Por mais que Barthes também se concentre nos "biografemas" que recolhe, não são as coincidências biográficas que regulam o comentário, e sim a possibilidade de tomá-los como "classificadores", "formuladores", "inventores de escritura, operadores de texto" (vale analisar, na perspectiva de Barthes, aquilo que fazem com a linguagem e não aquilo que a "História" fez com eles).

3) Talvez por trás do projeto de Barthes esteja, entre muitos outros elementos, o livro que Ferdinand Lion (1883-1968) publica em 1949, Fontes vitais na metafísica francesa: Descartes, Rousseau, Bergson (Lebensquellen französischer Metaphysik, traduzido do francês para o alemão por Ruth Gillischewski, embora eu não tenha localizado nenhuma edição "original" francesa - a tradução italiana, de Luciano Anceschi, sai no mesmo ano de 1949 pela Bompiani, Cartesio, Rousseau e Bergson. Saggio di storia vitalista della filosofia (talvez Barthes tenha lido a edição italiana, com os três nomes posicionados na frente do título?)). Lion também escreveu sobre Döblin e Thomas Mann, de quem era amigo, além de ter editado a revista suíça Mass und Wert, onde publicou, em 1938, um texto de Walter Benjamin sobre o Instituto de Pesquisa Social de Adorno e Horkheimer. 

segunda-feira, 9 de maio de 2022

O testamento de Sade



1) Preso por atentar contra as regras sociais, Sade aproveita a ocasião para intensificar seus procedimentos de escândalo: preso na Bastilha, começa a escrever Cent Vingt Journées de Sodome em 1785; para evitar a descoberta e o confisco, escreve com caligrafia minúscula em 33 folhas de 11,5 cm, coladas como um rolo de 12 metros de comprimento, preenchido em ambos os lados; em 1789, com a invasão iminente da Bastilha, Sade é transferido para Charenton; acredita-se que o rolo-manuscrito tenha sido escondido por ele em uma fissura da cela, embora Sade nunca mais tenha visto sua obra (durante a demolição da Bastilha o manuscrito é encontrado por um sujeito chamado Arnoux, que mais tarde o vende à família de bibliófilos Villeneuve-Trans).

2) Em dois de abril de 1790, por conta da abolição das lettres de cachet (comentadas por Foucault em "A vida dos homens infames"), ele é libertado e se estabelece em Paris, depois de 13 anos de cárcere (a falta de exercício o deixa obeso a ponto de mal conseguir se mexer). Em 26 de julho de 1794 ele é condenado à morte, junto com 27 outras pessoas, pela vaga acusação de "intelligences et correspondances avec les ennemis de la République"; é salvo pela queda de Robespierre. Nos anos seguintes consegue seu sustento escrevendo obras pornográficas de forma anônima. Em 1801, Sade retorna à prisão pelas mãos de Napoleão, ainda cônsul, que busca fazer as pazes com a Igreja (que Sade atacou veementemente não apenas em suas obras, mas também nos vários discursos proferidos ao longo da década de 1790). 

3) Ao morrer em 1814, Sade deixa uma enorme obra inédita: Journées de Florbelle ou la Nature dévoilée, cujo manuscrito é queimado pelas autoridades com autorização (e acompanhamento) de seu filho, Claude-Armand. Em seu testamento, Sade pede que seu corpo seja mantido intacto após sua morte (sem necrópsia ou experimentos) e que seja enterrado sem cerimônia religiosa em sua terra natal. Ele é enterrado em Charenton com a presença de um padre e, quatro anos depois, quando o cemitério é mudado de lugar, um médico consegue acesso ao seu crânio para realizar estudos de frenologia (outro médico, Spurzheim, faz um modelo do crânio de Sade, que desaparece tempos depois - o que faz pensar na ocasião em que Paul Valéry teve em suas mãos o crânio de Descartes).  

terça-feira, 3 de maio de 2022

Orwell


Apesar da vida relativamente breve (1903 – 1950), Orwell escreveu muito e sobre uma variada gama de assuntos, da guerra à fome, passando pelos elefantes, pelo críquete e pelas estantes de livros. Sobre a verdade é um livro híbrido, espécie de caderneta de anotações feita a posteriori, com trechos sobre o tema da verdade de toda sua obra, compilados por David Milner. “Todos acreditam nas atrocidades do inimigo e duvidam daquelas cometidas por seu próprio lado, sem nem se darem ao trabalho de examinar as evidências”, escreve Orwell em 1943, em um ensaio intitulado “A Guerra Espanhola em retrospecto”, e completa: “as pessoas acreditam ou duvidam das atrocidades unicamente com base em suas predileções políticas”.

A lição principal desse ensaio, que repercute em todas as entradas de Sobre a verdade (assim como nos principais romances de Orwell, como A revolução dos bichos, de 1945, ou 1984, de 1949), é que a verdade é sempre um processo de construção histórica, um percurso composto por várias camadas e que não se oferece pronto, por “combustão espontânea”, diante do observador. Sendo fruto do debate e da troca de ideias, a verdade é a primeira coisa a ser atacada nas tiranias e nos regimes totalitários. E o melhor modo de atacá-la é impedir sua circulação: “A literatura em prosa como a conhecemos é produto do racionalismo, dos séculos de protestantismo, do indivíduo autônomo”, escreve Orwell em 1946, e continua: “E a destruição da liberdade de pensamento incapacita o jornalista, o sociólogo, o historiador, o romancista, o crítico e o poeta, nessa ordem”. A verdade é um ecossistema, compartilhada dentro de uma comunidade, cujo bem-estar afeta a todos.