quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O lado de cá da foto



1) Uma passagem interessante de The Lazarus Project, de Aleksandar Hemon, seu único romance, publicado originalmente em 2008 (mesmo ano de Man in the Dark, romance de Paul Auster que também comenta a relação entre imagem e violência, fazendo referência à gravação de uma decapitação no Iraque): o narrador, um refugiado de Sarajevo que mora há muitos anos em Chicago (exatamente como Hemon, embora não seja esse seu nome), ganha uma bolsa para escrever um livro e vai ao Leste Europeu com seu amigo fotógrafo, Rora (todo capítulo do romance de Hemon inicia com uma imagem, parte delas retirada dos arquivos da Chicago Historical Society, parte delas de autoria de Velibor Božović, que o leitor imagina ser o "modelo" para o personagem Rora).

2) No fim de um dos capítulos, quando o narrador e seu amigo fotógrafo já estão em viagem, o primeiro conta ainda mais detalhes acerca de sua dinâmica doméstico-familiar, suas brigas com a esposa e, nesse caso específico, uma discussão que tiveram sobre as imagens de tortura em Abu Ghraib (ele escandalizado, ela contemporizando de sua perspectiva de "estadunidense pura"). Depois de um longo parágrafo sobre as desavenças do casal, o narrador corta o fluxo abruptamente e inicia um novo parágrafo (o último do capítulo) da seguinte forma: "Rambo gostava principalmente que eu tirasse fotos dele com os mortos para depois ficar olhando para elas, Rora disse. Ele ficava excitado - aquilo era o pau duro dele, o seu poder absoluto: estar vivo em meio à morte. Tudo se reduzia a isso: os mortos estavam errados, os vivos estavam certos. Todo mundo que já foi fotografado ou está morto ou estará. É por isso que ninguém tira foto de mim. Quero ficar do lado de cá da foto" (na tradução brasileira, p. 197). 

3) Rambo é um dos "caudilhos" da Guerra da Bósnia, a quem Rora se refere continuamente ao longo do romance (contribuição à análise da "personalidade autoritária", de Sarmiento e Adorno). Apesar de breve, a reflexão de Rora é interessante em dois aspectos: o modo como, de forma condensada, liga a fotografia à morte, como fizeram Benjamin, Sontag e Barthes; o modo como relaciona o registro visual dos mortos ao "poder absoluto" e à "excitação", como "estar vivo em meio à morte" é central para a manutenção da autoridade, algo que está no cerne da argumentação de Elias Canetti em Massa e poder, por exemplo, quando fala do "detentor do poder como sobrevivente" e da "aversão dos poderosos pelos sobreviventes", ou ainda dos "mortos como aqueles aos quais se sobreviveu".  

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