terça-feira, 26 de janeiro de 2021

O problema da verdade, 1


1) Ainda em “Historical Emplotment and the Problem of Truth”, a conferência de 1990, Hayden White antecipa uma série de questões teóricas que vão aparecer em seguida, de forma mais aprofundada, em um ensaio publicado em 1992, “Writing in the Middle Voice” (hoje acessível na coletânea The Fiction of Narrative, de 2010). White mais uma vez retorna à tensão entre literatura realista do século XIX e emergência do paradigma modernista a partir das primeiras décadas do século XX: por que certos pesquisadores das ciências humanas insistem não apenas em manter fidelidade aos padrões narrativos do século XIX, mas também em insistir que seu sistema de apresentação “realista” é o “padrão”, o “adequado”?

2) No texto de 1990, White retoma Roland Barthes, autor que vinha lendo com atenção ao longo da década de 1980 – especialmente o Barthes da “escrita” e do “escrever”, do ensaio de 1970, “Écrire, verbe intransitif?”. Com Barthes, White volta à carga da quebra de paradigma instaurada com as vanguardas do início do século XX – não é mais possível escrever da mesma forma ou ignorar que novas formas de escrita (representação, narrativização do outro e da história) estão disponíveis. A literatura do século XX mostra a intransitividade do verbo/gesto “escrever”, trabalhando a partir daquilo que Barthes (seguindo Benveniste) chama de “voz média”.

3) No contexto realista do século XIX, escreve Barthes (e resume White para seus próprios fins), existe uma clara distribuição entre agente, objeto e ação: aquele que escreve o faz para alguém exterior, anterior ou posterior ao processo da escrita; no caso da escrita modernista, continua Barthes, o agente se faz, se constitui e se constrói dentro e a partir do processo da escrita – o caso paradigmático é aquele de Proust, que existe apenas na escrita, como efeito da escrita (sua memória é uma pseudo-memória, escreve Barthes, pois é um efeito do texto que se apresenta sempre – até hoje – como processo). A “voz média”, portanto, é essa potência da narração que oscila entre voz ativa e passiva (tendo o sujeito no interior da ação, ou seja, no interior do processo pelo qual se dá a escrita).

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

O problema da verdade


1) Em seu ensaio "Historical Emplotment and the Problem of Truth" (apresentado primeiro no evento de Saul Friedlander de 1990, "Probing the Limits of Representation" (lançado em livro em 1992), e agora disponível na coletânea Figural Realism), Hayden White mais uma vez retoma a questão das relações possíveis entre “história” e “narração”, com ênfase na representação (possível ou impossível? Disponível ou interditada?) da Shoah. White ataca uma “nova” questão usando ferramentas que vinha aprimorando em seus textos dos anos anteriores, com destaque para seu resgate da “intransitividade” e da “voz média” tal como teorizadas por Roland Barthes.

2) Em determinado ponto do ensaio, White comenta o esforço de Andreas Hillgruber (recém-falecido em 1989, aliás) de "salvar" parte do legado alemão da II Guerra Mundial, separando a resistência "trágica" do Exército alemão no fronte ocidental no inverno de 1944-1945 (a premissa central de seu livro Zweierlei Untergang, "Dois tipos de queda"). A "tragédia" da resistência, escreve White, é a forma de enredo que Hillgruber encontrou para conferir "heroísmo" a uma parte específica do legado nazista (com isso White enfatiza a validade de sua posição: a "história" não existe além ou aquém da estratégia narrativa que lhe confere forma).

3) Essa tentativa de deslocamento de enredo no interior do nazismo evoca o romance de Paul West, The Very Rich Hours of Count von Stauffenberg, publicado em 1980. Minha lembrança do romance de West não é direta, ele é evocado a partir do uso que dele faz J. M. Coetzee em um dos capítulos do romance Elizabeth Costello (de 2003). Costello se refere ao romance de West dentro do romance de Coetzee, afirmando que, dada sua representação da violência (West retrata com riqueza de detalhes as torturas sofridas pelos oficiais nazistas que tentaram matar Hitler em um atentado), algo assim nunca deveria ter sido escrito (o “heroísmo”, de certa forma, também é mobilizado por West no interior do nazista, sob o signo da resistência aristocrática).

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

O que se exprime


1) No Tractatus, Wittgenstein escreve: "O que se exprime na linguagem, nós não podemos exprimir pela linguagem" (4.121). A filosofia é um mau uso da linguagem, uma doença da linguagem que ela - a filosofia - provoca e com a qual ela deve lidar, terapeuticamente (não é por acaso que na mesma época do Tractatus Karl Kraus tenha dito que a psicanálise é a cura para a doença que ela cria; não é por acaso que Wittgenstein escreve o que escreveu, escolhendo a forma que escolheu: como profundo admirador de Kraus que era, Wittgenstein reconhecia no aforismo uma forma que era, simultaneamente, pensamento, expressão e experiência; gesto, mistério e explanação). 

2) O apego à praticidade, à capacidade de fazer algo útil (uma boa luva, a vitrine de um açougue), é central na obra de Philip Roth, como aponta Coetzee. Evoca uma dimensão da experiência historicamente muito valorizada nos Estados Unidos - a capacidade de criar um mundo do nada, fincar raízes, tornar-se autossuficiente (um elemento que sem dúvida aproxima poéticas como as de Melville, Hemingway, Faulkner, Cormac McCarthy). 

3) Coetzee, por sua vez, parece apontar em uma direção diversa - a direção precisamente da linguagem que testa os próprios limites, que duvida da própria capacidade de dar conta do mundo (Faulkner e McCarthy usam a linguagem de forma virtuosística, como um peregrino usa um serrote para fazer um celeiro - o celeiro da linguagem, diria Heidegger?; the prison-house of language, diria Fredric Jameson?). A direção de Coetzee talvez seja aquela que ele tomou a partir de Beckett, o Beckett da linguagem auto-referente, da situação impossível do sentido (a trilogia de Jesus, de Coetzee, é beckettiana nesse sentido, pois fala do início do mundo pelo viés da linguagem, fala da aprendizagem da língua como uma oportunidade de recomeçar o mundo, coloca em paralelo a aquisição da linguagem e a aquisição de um novo terreno, uma nova nacionalidade, uma nova possibilidade de vida - algo que já é anunciado com Sexta-Feira no romance Foe). 

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Como fazer


Em seu ensaio sobre Philip Roth - uma resenha de Nemesis publicada originalmente na New York Review of Books em outubro de 2010 -, J. M. Coetzee menciona os "prazeres subsidiários" [subsidiary pleasures] proporcionados por Roth em seus romances. Entre eles, os "pequenos ensaios instrutivos inseridos nos romances" [expert little how-to essays embedded in the novels], como se produz uma boa luva, como se arruma a vitrine de um açougue (Coetzee ainda comenta que, no caso de Homem comum, Roth oferece um lindo e modesto episódio de como cavar uma sepultura [modest but beautifully composed little ten-page episode of how to dig a grave]).

*

O comentário de Coetzee faz pensar na natureza heterogênea do romance como gênero - algo que Milan Kundera, entre tantos outros, comentou extensamente (sendo seu exemplo paradigmático o caso de Hermann Broch): a capacidade do romance de absorver todo tipo de discurso, disciplina e entonação, sem que essa dimensão de mistura enfraqueça a própria construção romanesca do romance (como processo, como gênero, como exercício de linguagem). No caso específico de Roth, é preciso levar também em consideração a estranheza do ofício do escritor, uma estranheza que às vezes ganha contorno trágicos, às vezes cômicos, em seus romances (a incompreensão da família, por exemplo, sempre que o tema do trabalho do escritor surge: "quando você vai encontrar um trabalho de verdade?"; "mas você ganha algum dinheiro com isso?"; variações dessas cenas pontuam a obra de Roth como um todo).