É a partir da utilização efetiva do avião que Saint-Exupéry extrai sua criação ficcional, e, nesse processo, argumenta Ciocchini, atualiza a mitologia clássica do voo noturno em uma mitologia moderna que mescla o desejo de ascensão (o sucesso, o domínio sobre a máquina e a natureza) com o desejo de morte (a queda, o encontro fatal com a terra que é observada do alto e que parece esperar a falha do piloto). O fragmento do ensaio de Ciocchini que se ocupa de Saint-Exupéry através da imagem do avião é aquele intitulado “O desejo de comunicação”, que é suplementado adiante por “O ser itinerante”. “A paixão pelo sagrado da vida, por sua matéria imperecível marca a obra de Saint- Exupéry”, escreve Ciocchini na primeira frase do fragmento “O desejo de comunicação”, e continua: “E dentro dela um meio de penetração, um instrumento, o avião, e um objeto, a terra, marcam essa leitura que se fará através de sinais mais ou menos evidentes, de belas visões e mitos que precedem a essa comunhão e a esse conhecimento que resulta de sua experiência”.
Para Ciocchini, essa escolha de Saint-Exupéry, ainda que indique uma contingência muito específica de sua vida, uma contingência material que o levou tanto ao avião quanto à carreira de aviador, tal escolha acarreta um radical investimento simbólico. O pacto que Saint-Exupéry estabelece com o avião é um pacto que diz respeito ao contato do homem com a técnica na modernidade (na era do capitalismo tardio, por assim dizer), mas também, e sobretudo, um pacto do homem com aquilo que o ultrapassa em termos simbólicos – a dimensão histórica do desejo e da escolha. Ciocchini articula, a partir dessa perspectiva dúplice do pacto, uma dialética suplementar, aquela que relaciona o avião e a terra, um “instrumento” e seu “objeto”, ambos ligados naquilo que ele denomina uma “comunhão”. Há um conhecimento – poético e mitológico – que Saint-Exupéry alcança a partir do exercício dessa comunhão, argumenta Ciocchini. Esse conhecimento alcançado pelo artista é desvelado pouco a pouco em sua obra a partir de “sinais mais ou menos evidentes”, como coloca Ciocchini, “belas visões e mitos” que funcionam como preparação para essa comunhão, “visões e mitos” que Saint-Exupéry tem acesso a partir da mediação de seu instrumento, o avião.
Quando vista do alto, de dentro de um avião, a terra apresenta uma lógica diversa. Os limites da terra podem ser reescritos e reinterpretados pelo aviador a partir de sua percepção, daí a ideia de uma reformulação do espaço latino-americano, por parte de Saint-Exupéry, a partir da configuração de um atlas especial, um atlas poético que inaugura seus próprios marcos de localização e significação. Como o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg, marcado pela convivência tensa e criativa de imagens provenientes de fontes, técnicas, temporalidades e geografias as mais diversas, também o atlas poético que Ciocchini reconhece em Saint-Exupéry faz do espaço latino-americano em geral, e do sul argentino em particular, um espaço de experimentação, um laboratório de articulação entre a criação estética e o pertencimento nacional.
Assim como no cotidiano do Instituto de Humanidades se reconhecia a marca do Instituto londrino, e assim como no estilo e nos temas de Ciocchini se reconhecia a marca de sua filiação estrangeira, da mesma forma o olhar de Saint-Exupéry transforma essa geografia doméstica a partir de uma ressignificação poética. Da mesma forma, o olhar estrangeiro do escritor francês é reposicionado a partir do contato com a terra alheia, uma vez que a dialética entre instrumento e objeto (ou seja, entre avião e terra, como visto acima) repercute também na dimensão da escrita, da elaboração ficcional da vivência e da experiência (sendo esse um aspecto fundamental, que Ciocchini, como vimos, resgata em seu endereçamento do ensaio às gerações vindouras).
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