segunda-feira, 5 de agosto de 2019

Das duas às sete

No início de 1923, ainda dando aulas para crianças no interior da Áustria, Wittgenstein entra em contato com Frank Ramsey, o jovem matemático responsável pela tradução do Tractatus do alemão para o inglês. Wittgenstein escreve uma carta convidando Ramsey para uma visita à cidadezinha na qual ele mora, Puchberg. Em setembro desse ano a visita acontece e os dois leem o Tractatus juntos minuciosamente ao longo de duas semanas: palavra por palavra, linha por linha, todos os dias das duas às sete.
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Uma cena de leitura como essa é profundamente angustiante em um período histórico de abundância maníaca como o nosso. A leitura minuciosa - letra por letra, palavra por palavra, como Foucault fazia em seus cursos (embora nunca com um livro inteiro), ou Derrida em seus ensaios e conferências - é hoje praticamente contra-intuitiva. A leitura cerrada, além de ser difícil em si, carrega a dificuldade externa de remeter continuamente ao excesso de referências, de textos e livros que não estão sendo lidos.
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Como no caso de Wittgenstein, a minúcia da leitura por vezes toca a loucura - como acontece em Fogo pálido, de Nabokov, outro exemplo de uma cena de leitura intensa, exclusiva. O leitor passa a viver no interior de cada sílaba, assim como aquele que escreveu o fez. Nesse sentido, a leitura minuciosa gera um curto-circuito entre ação e reação, como se o tempo da leitura pudesse ser equivalente ao tempo da escrita (um livro perfeito para uma insônia perfeita, como queria Joyce, ou seja, um livro cuja leitura demore mais até do que a escritura). Penso na leitura que Flaubert fez de A educação sentimental no salão literário da princesa Mathilde, prima de Napoleão III, que levou dezesseis horas, divididas em quatro seções; ou nas várias noites que Kafka passou lendo na íntegra seus textos para os amigos; ou Fernando Pessoa atravessando a noite de 8 de março de 1914 e escrevendo, em uma espécie de êxtase, toda a obra de Alberto Caeiro. 

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