1) O romance que Javier Cercas publica em 2017, O rei das sombras, sobre a morte de seu tio-avô na Guerra Civil Espanhola, apresenta em suas páginas três fotografias: em primeiro lugar, logo no começo, a fotografia do parente - com o uniforme militar, portando medalhas e insígnias -; algumas páginas depois, uma fotografia deteriorada mostrando uma turma de escola, treze crianças (todos meninos) e um professor; por fim, bem mais adiante, para além da metade do romance, uma fotografia de estúdio, em preto e branco, mostrando três mulheres, duas em pé e uma sentada, bem no centro (a da direita, Sara, foi assassinada pelos franquistas - o narrador só pode especular as razões, nada é certo).
2) Parafraseando o Fredric Jameson de Brecht e a questão do método, quando escreve que "o que chamamos 'eu' é em si um objeto da consciência, e não nossa própria consciência" (trad. Maria Sílvia Betti, Cosac, 2013, p. 84), podemos dizer que a fotografia no romance é um objeto (uma ferramenta) da representação (dos "fatos", da "realidade") e não a própria representação (que não existe fora do jogo da mediação). É esse apelo paradoxo da imagem que tanto fascinou Barthes (A câmara clara), Sontag (Sobre a fotografia) ou Alberto Manguel (Lendo imagens).
3) Mais do que ilustrar a narrativa escrita, a imagem conta uma história suplementar - mais do que isso, as imagens conversam entre si. A imagem da turma de escola de Cercas, as treze crianças e o professor, mais do que expressar seu conteúdo, seu tema, expressa sua condição material, sua deterioração, seus rasgos e remendos - como faz também Paul Auster na abertura de seu A invenção da solidão, livro inesgotável, especialmente na abertura de sua primeira seção, sintomaticamente intitulada "Retrato de um homem invisível". O rasgo da foto, sua deterioração, sua materialidade - mais do que a família diante da casa, mais do que seu tema, é o rasgo que comenta, indiretamente, a narrativa (relata a história por outras vias).
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