domingo, 22 de janeiro de 2017

Língua-ferramenta

Mais tarde, pensaria na história da centopeia que, interrogada sobre a técnica da sua dança, atrapalhou-se instantaneamente nos movimentos, outrora instintivos, de seus numerosos membros.

Meu caso não foi tão desesperador. Mas, desde o dia do lapso, a questão da "técnica" se fez incontornável. Agora o francês se tornava uma ferramenta cujo alcance, ao falar, eu media. Sim, um instrumento independente de mim e que eu manejava percebendo de quando em quando a estranheza desse ato. 

Minha descoberta, por mais desconcertante que fosse, proporcionou-me uma intuição penetrante do estilo. Essa língua-ferramenta manejada, afiada, aperfeiçoada, eu me dizia, não era outra que a escrita literária. A literatura se revelava um espanto permanente diante daquela lava verbal em que o mundo se fundia. O francês, minha "língua-avó", era, agora percebia, por excelência essa língua do espanto.

(Andrei Makine, O testamento francês. trad. Eduardo Brandão. Martins Fontes, 1998, p. 238).

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Logo que recuperei a consciência, pude ler na prancha preta com seus dados a palavra GENERAL, escrita em maiúsculas abaixo do nome húngaro, como bem me lembro. Durante muito tempo, fixei minha atenção apenas naquela palavra, GENERAL, perguntando-me se a palavra GENERAL que eu lia na prancha o tempo todo era, de fato, a palavra GENERAL. Não lera errado, o homem era mesmo um general húngaro, um refugiado como centenas de milhares ou milhões de outros que, ao final da guerra, vindos sabe-se lá de onde, tinham ido parar em Salzburgo. Para mim, era inimaginável estar na mesma sala que um general de verdade, que, ademais, observando-se bem, tinha exatamente o aspecto de um general.

(Thomas Bernhard, Origem. trad. Sergio Tellaroli. Companhia das Letras, 2006, p. 361).

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Paul anotou num pedaço de papel o que um velho cigano, que tinha acabado de sair do hospital, podia comer. O homem não sabia ler. Paul leu para ele o que estava escrito no papel. Lá também estava escrito CARNE DE COELHO. Não posso ficar com esse papel, disse o homem, o senhor é distinto, o senhor precisa me escrever outro papel. Paul riscou CARNE DE COELHO com um traço, o homem balançou a cabeça. Continua escrito aí, disse ele, o senhor é médico, o senhor não é um homem distinto. Não entendeu como seu coração bate dentro do senhor. O coração que bate no coelho é o coração da terra, por isso somos ciganos, porque sabemos disso, meu distinto senhor, por isso temos de andar.

(Herta Müller, A raposa já era o caçador. trad. Cláudia Abeling. Biblioteca Azul, 2014, p. 34).

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