Ingmar Bergman, Smultronstället (1957) |
1) Já no início de Austerlitz, quando o narrador e Jacques Austerlitz se encontram no restaurante da estação de trens de Antuérpia, surge "um poderoso relógio, peça que dominava a sala do bufê, no qual um ponteiro com cerca de dois metros fazia sua ronda em torno de um mostrador antes dourado, mas agora enegrecido pela fuligem da estação e pela fumaça do tabaco" (p. 12). E Austerlitz declara, algumas páginas mais adiante: "eu nunca tive nenhum tipo de relógio, nem um relógio de pêndulo, nem um despertador, nem um relógio de bolso, muito menos um relógio de pulso. Um relógio sempre me pareceu algo ridículo, algo absolutamente mendaz, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo em virtude de um impulso interno que eu mesmo nunca entendi, excluindo-me dos chamados acontecimentos atuais, na esperança, como penso hoje, disse Austerlitz, de que o tempo não passasse" (Sebald, Austerlitz, trad. José Marcos Macedo, Cia das Letras, 2008, p. 103-104).
2) O tempo como relógio e calendário - um tema que Walter Benjamin elabora a partir de Marx e Baudelaire. A XV tese sobre o conceito de história fala da destruição dos relógios no início da Revolução Francesa; no Livro das Passagens Benjamin inclui uma série de citações e comentários sobre a uniformização do tempo que ocorre com o capitalismo (que desemboca no "paradigma 24/7" desenvolvido por Jonathan Crary), especialmente o trecho de uma carta a Engels na qual Marx fala que "toda a teoria da produção em larga escala" foi desenvolvida a partir da invenção e aperfeiçoamento do relógio (Z2); na poesia de Baudelaire, escreve Benjamin no mesmo Livro das Passagens, o relógio grita que é a vida, a vida implacável (J49,5), ocupando um lugar central em sua "hierarquia de emblemas" (J69,6), além disso, o próprio Baudelaire teria removido os ponteiros de seu relógio e escrito no mostrador: É mais tarde do que você imagina! (J90a,1).
3) No próprio conjunto de escritos de Sebald encontramos o exemplo oposto - um personagem que colecionava relógios de forma maníaca, ninguém menos que Joseph Roth. "Mostradores e relógios de todos os tipos têm particular significado na obra de Roth", escreve Sebald no ensaio "Um kaddisch pela Áustria: sobre Joseph Roth", e continua: "Há demasiados ditos irrefutáveis sobre o tempo e o fim. Ultima multis, última para muitos. Ultima necat, a última é fatal, entre outros. Bronsen conta que Roth colecionava relógios sem critério algum e que cuidar dos relógios se tornou uma mania sua nos últimos anos" (Sebald, Pátria apátrida (Unheimliche Heimat), trad. Telma Costa, Lisboa: Teorema, 2010, p. 101). Um dos últimos textos de Roth publicados em vida - em abril de 1939 no Pariser Tageszeitung - chamava-se justamente "No relojoeiro".
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