quinta-feira, 26 de março de 2015

Balões, 7

Um escritor está bebendo no balcão de um bar. Ele começou como escritor, costumava se definir como escritor, mas isso se acabou, se esgotou. Ele está contando ao atendente do bar - que está atrás do balcão e que estabelece a posição da câmera e a posição do nosso olhar - como tudo começou e como a bebida lhe servia como uma espécie de estimulante, de combustível. O escritor se chama Don Birnam, interpretado por Ray Milland em The Lost Weekend (Billy Wilder, 1945). Birnam diz que a bebida o faz sentir que pode pintar como Van Gogh, esculpir a barba de Moisés como Michelangelo, fazer versos como Shakespeare e imaginar a rua como se fosse o fluxo do Nilo, etc. Mas o mais importante é que ele diz que a bebida corta os sacos de areia e deixa o balão voar solto pelo ar. É claro que isso funcionou somente por um tempo, pois com o bloqueio veio o desespero e assim por diante. À medida que vai contando sua história, Birnam bebe, e cada dose é sinalizada pela marca do líquido no balcão - pequenos círculos que vão se acumulando, perfeitos e simétricos, e o copo cheio flutuando, espelhado no balcão como um balão que sobrevoa o oceano.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Balões, 6

O Gigante em construção
Existe outro lado da experiência dos balões, o lado que investe não no distanciamento da "realidade terrena", mas em sua reprodução paródica - ou seja, a reconstrução do ambiente burguês em meio às nuvens. Isso fica bastante evidente na descrição que Julian Barnes faz do balão projetado por Nadar:
Tournachon viajou com oito companheiros num aeróstato projetado por ele: "Eu vou construir um balão - o Balão Perfeito - de proporções extraordinariamente gigantescas, vinte vezes maior do que o maior". Chamou-o de O Gigante. Ele realizou cinco voos entre 1863 e 1867. Entre os passageiros deste segundo voo estavam a esposa de Tournachon, Ernestine, os irmãos aeronautas Louis e Jules Godard, e um descendente da família pioneira em balonismo, Montgolfier. Não foi registrado o tipo de comida que eles levaram. (...) Duzentos mil espectadores assistiram a sua primeira subida em que treze passageiros pagaram, cada um, mil francos; o cesto do aeróstato, que parecia um chalé de vime de dois andares, continha uma sala de refeições, camas, um banheiro, um departamento fotográfico e até mesmo uma sala de impressão para produzir folhetos comemorativos instantâneos. 
(Julian Barnes. Altos voos e quedas livres. Trad. Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 12-13).
A questão do interior burguês e sua fenomenologia é fundamental para a poética de Huysman, como se vê, por exemplo, em sua evocação de Odilon Redon. A mesma questão é fundamental para Baudelaire e comentada por Benjamin em Um lírico no auge do capitalismo. Poe, que se ocupou intensamente dos balões, também o fez com relação ao interior burguês e sua composição, chegando ao ponto de desenvolver uma "Filosofia da mobília" (No primeiro capítulo de La literatura nazi en América, Bolaño apresenta “Edelmira Thompson de Mendiluce”, autora do romance La habitación de Poe, de 1944, que “prefigurará o nouveau roman e muitas das vanguardas posteriores”, romance baseado precisamente nesse ensaio de Poe sobre a mobília).

quarta-feira, 11 de março de 2015

Balões, 5

A fascinação pelo voo e pelos balões entra pelo século XX e atinge, entre outros, Kafka ("Os aeroplanos em Brescia", conto publicado em 1909) e Robert Walser - Walser publica em 1913 o conto Ballonfahrt, "Viagem de balão". Num primeiro momento, a viagem de balão e o deslocamento aéreo não combinam com aquilo que Walser mostrava em sua vida e em sua poética - se há movimentação em Walser, ela é quase que exclusivamente pedestre, no rastro de Rousseau e dos andarilhos medievais. Em um dos ensaios de seu livro Logis in einem Landhaus, Sebald ressalta justamente esse aparente paradoxo, argumentando que é nesse momento de exceção que Walser mais se revela: "o único momento em que vejo o viajante Robert Walser livre do peso de sua consciência é nessa viagem de balão".
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1) Na história de Walser, três pessoas estão no balão: "o capitão, um cavalheiro e uma jovem moça". O balão é uma "estranha casa", abaixo deles está "o abismo arredondado, pálido, escuro", as casas parecem "brinquedos inocentes", e as florestas "parecem cantar canções obscuras e antiquíssimas". O cavalheiro, que talvez seja uma versão de Walser, usa, "por um capricho", "um chapéu de plumas dos tempos da cavalaria medieval". 
2) A viagem dura a noite inteira e mesmo assim não termina. Começa no entardecer, atravessa a noite, encontra o nascer do sol e segue. Certas passagens dão um tom quase ritualístico, como o de um pacto com a morte e com o vazio: "o rio noturno arranca da moça um leve grito de saudade. No que estará pensando? De um buquê que trouxe consigo, ela retira uma rosa escura, esplêndida, e a arremessa nas águas cintilantes. Belo, atraente abismo! Inúmeras porções de florestas e campos já ficaram para trás; é meia-noite".
3) "Como a terra é grande e desconhecida, pensa o cavalheiro com o chapéu de plumas", o que parece indicar que, para Walser, a viagem de balão é uma espécie de estímulo e confirmação de sua tendência deambulatória anterior e primordial - ainda há muito terreno a ser percorrido. E o final aberto: "o voo segue sempre adiante, o sol magnífico enfim surge, e, atraído por esse astro orgulhoso, o balão dispara rumo a alturas mágicas e atordoantes. A moça solta um grito de medo. Os homens riem".

Robert Walser. "Viagem de balão". Absolutamente nada e outras histórias. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Editora 34, 2014, p. 22-24.