1) Baseado sobretudo no Vidas dos artistas de Vasari, Marcel Schwob escreve sua versão da vida de Paolo Uccello - o pintor florentino é uma das vidas imaginárias que Schwob apresenta em seu livro Vidas imaginárias, publicado originalmente em 1896 (o ano que Oscar Wilde apresenta Salomé e Alfred Jarry apresenta o Ubu Rei, ambos em Paris). O livro de Vasari foi certamente um dos ingredientes fundamentais para Schwob configurar seu Vidas imaginárias, o que permite rastrear a presença de Vasari também em obras como a História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, e as Vidas minúsculas, de Pierre Michon (ou a vida dos homens infames, de Michel Foucault, ou mesmo a catalogação de vidas irrisórias que Georges Perec faz em Vida, modo de usar).
2) Vasari, no entanto, está interessado em historiografia, e Schwob está interessado em ficção - e há um trecho da vida de Paolo Uccello que exemplifica essa distância. Schwob e Vasari partem do mesmo fato, aquele que teria sido o último projeto de Uccello: "um São Tomé buscando a chaga de Cristo", escreve Vasari, e completa: "nessa obra empenhou-se muito; ela foi terminada em sua velhice (...) quis demonstrar tudo o que valia e sabia". Vasari também informa que Uccello "mandou fazer um tapume de madeira para que ninguém pudesse ver sua obra antes de terminada". Donatello, o conhecido escultor, amigo e vizinho de Uccello, "indo certa manhã ao Mercado comprar frutas para desenhar, viu que Paolo descobria sua obra". Depois de "olhar bem a obra", escreve Vasari, Donatello exprime seu descontentamento - Uccello se envergonha e deixa a obra de lado (Vidas dos artistas, tradução de Ivone Bennedetti, WMF Martins Fontes, 2011, p. 197).
3) A chave do desvio que ocorre entre Vasari e Schwob está na frase "ela foi terminada em sua velhice" e na presença de Donatello. Em Schwob, Uccello chama Donatello depois de terminar o quadro, certo de "que havia realizado o milagre". "Mas Donatello", escreve Schwob, "vira apenas um emaranhado de linhas" (Vidas imaginárias, tradução de Duda Machado, Ed. 34, 1997, p. 100). Donatello morreu em 1466, Uccello em 1475 (nascido em 1397, não chegou aos "oitenta anos" declarados por Schwob em seu conto); o escultor, portanto, não poderia ter visto a obra finalizada, o "São Tomé buscando a chaga de Cristo". Assim como as cenas da vida de São Francisco, também essa obra de Uccello não sobreviveu (o motivo de São Tomé e das chagas de Cristo seria explorado por Caravaggio mais de um século depois, em 1601).
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