quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O nome da mãe

Alois Hitler, 1837-1903
Como diríamos no estilo californiano, Kafka tinha um grave problema de atitude em relação ao pai. Quando se identificou com "Lowy", assumindo o sobrenome da mãe, Kafka colocou-se numa série que inclui Adorno (que também trocou o sobrenome do pai, Wiesengrund, pelo da família da mãe), para não citar Hitler (que era Schicklgruber) - ambos pouco à vontade para assumir o papel de portador do sobrenome paterno. É por isso que um dos pontos importantes da carta de Kafka ao pai é a afirmação de que poderia aceitar (a pessoa de) seu pai, estabelecer com ele uma relação não traumática, caso ele fosse seu amigo, irmão, chefe, até mesmo sogro, mas não seu pai.

Slavoj Zizek. Em defesa das causas perdidas. Tradução de Maria Beatriz de Medina. São Paulo: Boitempo, 2011, p. 101.
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O pai de Hitler, Alois, era filho ilegítimo de uma mulher que tinha quarenta e dois anos na ocasião de seu nascimento, Maria Anna Schicklgruber. Isso aconteceu em 1837. O espaço para o nome do pai em sua certidão de batismo foi deixado em branco. Quando Alois tinha cinco anos, um homem, Johann Georg Hiedler, chegou e casou com sua mãe. Cinco anos depois, Alois foi morar com o irmão de Johann Georg, Johann Nepomuk Hiedler. Ainda era Alois Schicklgruber, e assim foi para Viena, anos depois, trabalhar como sapateiro até se juntar ao Exército. Somente em 1876, aos trinta e nove anos, Alois Schicklgruber solicitou à Justiça a mudança de nome, declarando, com o auxílio de testemunhas, que o padrasto, Johann Georg Hiedler, era seu pai. No ano seguinte, 1877, seus documentos são renovados e Alois Schicklgruber torna-se Alois Hitler, embora não se saiba em que ponto do trajeto o Hiedler de origem transformou-se em Hitler. Um nome de tão amplas e tenebrosas ressonâncias nasceu não apenas de uma cena inaugural de ilegitimidade e bastardia, mas também de um lapso, de um equívoco ou desatenção de registro.     

domingo, 24 de novembro de 2013

Misericórdia e soberania

Nicolau I, 1796-1855
1) Duas cenas análogas de quase morte: Dostoiévski diante do pelotão de fuzilamento em 1849, Maurice Blanchot capturado pelos nazistas e salvo no último momento por uma explosão (eis o "instante da minha morte" que ele ficcionaliza em 1994). Um fio subterrâneo liga o regime repressivo de Nicolau I e a ocupação nazista da França (um fio que passa pelo 18 de brumário de Marx e pela Educação sentimental de Flaubert, ambos fixados no fevereiro de 1848 em Paris). Tanto a revolta de Dostoiévski quanto a repressão de Nicolau I foram em parte motivados pelos eventos revolucionários franceses. 
2) Essa cena de quase morte de Dostoiévski prefigura o nascimento da biopolítica segundo Foucault - a intensificação do "fazer viver" sobre o "fazer morrer", ou seja, a manutenção e coerção mais do que a eliminação. Não tanto a decisão entre um extremo e outro, a definitiva declaração de "condenado" ou "absolvido", mas esse espaço indeterminado de dúvida, esse espaço que contém Dostoiévski simultaneamente vivo e morto, em suspenso. É nesse espaço que o poder do soberano se ergue em triunfo, e segue reverberando mesmo depois do perdão, da misericórdia. Pois esse ato de perdão deve ser carregado, como um fardo, ao longo de todo o resto de vida do sobrevivente.
3) "A noção de Misericórdia é estritamente correlativa à de Soberania", escreve Slavoj Zizek, "apenas o portador do poder soberano pode conceder misericórdia" (O amor impiedoso, tradução de Lucas Mello Carvalho Ribeiro, Autêntica, 2012, p. 202). Há uma analogia estrutural também entre o par formado pelo regime pré-biopolítico e o regime biopolítico (e a zona cinza entre um e outro figurada na cena do perdão de Dostoiévski) e o par formado por Zizek entre "a rigorosa Justiça judaica" (pré-biopolítico) e a "Misericórdia cristã", uma misericórdia análoga àquela de Nicolau I, pois esconde sob sua generosidade uma carga imensa de culpa e dívida ("o nome freudiano para tal pressão excessiva, que nunca podemos quitar, é, claro, supereu", escreve Zizek). Talvez esse seja o caminho que permita uma sobreposição crítica entre a faceta religiosa e a faceta política (revolucionária) da ficção de Dostoiévski (e de discípulos contemporâneos seus, como Coetzee (o cruzamento entre política e religião em livros como À espera dos bárbaros ou A infância de Jesus, por exemplo) e Aleksandar Hemon (o projeto do Projeto Lazarus leva em conta justamente essa articulação entre destino (subjetividade) e revolução (História, sobreposição de temporalidades, contato entre os anarquistas de Chicago em 1908 e a guerra da Bósnia em 1992)). 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Lendo Goethe no Congo

André Gide no Congo, 1927
Em janeiro de 1928, com o objetivo de dar uma conferência, André Gide vai a Berlim. Ele se encontra com Walter Benjamin em seu quarto de hotel e eles conversam durante duas horas. Benjamin foi enviado pelo Die literarische Welt, e foi o único jornalista que Gide aceitou receber. A conversa aos poucos caminha em direção à figura de Proust, a amizade de Gide com Proust, a tradução que Benjamin está fazendo da Recherche, e, finalmente, o ato de traduzir. Benjamin escreve:
Gide fez o que pôde, como tradutor, para popularizar Conrad, também se engajando de forma crítica com Shakespeare. Ouvimos falar de sua tradução magistral de Antony and Cleopatra.
Citando suas palavras, Benjamin diz que Gide não encontrou em Berlim a tranquilidade necessária para elaborar sua conferência. "Mas eu gostaria de lhe dizer algo sobre minha relação com a língua alemã", diz Gide, escreve Benjamin. Depois de um "intensivo e extensivo" período de estudo do alemão, Gide abandona o idioma, abruptamente, durante dez anos. "Minha atenção foi totalmente capturada pelo inglês", afirma ele, e continua:
Então, ano passado, no Congo, eu finalmente abri um livro alemão, depois de tanto tempo - As afinidades eletivas, e me dei conta de uma coisa: a leitura não ficou mais difícil, como eu imaginava, mas mais fácil.
Benjamin escreve que o tom de Gide ficou "insistente" quando ele afirmou que não foi a afinidade do inglês com a alemão que produziu essa facilidade, mas o fato de Gide ter se sentido "dramaticamente repelido de minha língua materna". Para traduzir, afirma Gide, escreve Benjamin, ou mesmo para dominar uma língua estrangeira, não importa tanto a língua escolhida, mas a capacidade de abandonar sua própria língua, sua língua de origem (Walter Benjamin, "Conversation with André Gide", Selected Writings, vol. 2, 1927-1934, traduzido ao inglês por Rodney Livingstone, Harvard University Press, 1999, p. 91-97).

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Vasari, Schwob, Balzac

 1) Na Vida que escreve para Paolo Uccello, que é em grande medida uma reescrita da Vida feita por Giorgio Vasari no século XVI, Marcel Schwob acrescenta um desvio: a obra suprema de Uccello, que Vasari registra como finalizada e tendo como motivo Cristo e São Tomé, é "apenas um emaranhado de linhas". Schwob prepara o terreno dessa revelação afirmando que "o Pássaro envelheceu", ou seja, Uccello, e que "ninguém compreendia mais seus quadros", "viam apenas uma confusão de curvas". Aqueles que observavam as obras da velhice de Uccello "não reconheciam mais nem a terra, nem as plantas, nem os animais, nem os homens" (Vidas imaginárias, tradução de Duda Machado, Ed. 34, 1997, p. 99-100).
2) Vasari fala da fascinação de Uccello com a perspectiva e da quantidade de pequenos detalhes problemáticos (escorços, chapéus, colunas) que o pintor deliberadamente buscava em seu trabalho. Uccello, nesse sentido, foi uma espécie de precursor de Descartes, em seu fascínio com a ótica, a cartografia e a geometria. Existe um elo possível entre a sensibilidade de Vasari para o artista maníaco - como Uccello, que abandonou o mundo real e caminhou progressivamente em direção a um mundo ideal, mas que jamais abandonaria a figuratividade e a coerência das imagens (isso lhe era historicamente inacessível) - e a sensibilidade de Schwob para o mesmo personagem, e a ficção de Schwob indica que esse elo está na Obra-prima desconhecida de Balzac.
3) No conto de Balzac, existe a mesma "confusão de curvas", o mesmo "emaranhado de linhas" que Schwob apresenta na obra final de Uccello (que foi terminada, que era "visível", mas que se perdeu, conta Vasari). Mas antes desse momento final de identificação há uma série de pistas na ficção de Schwob que reforçam um vínculo mais subterrâneo, centrado na figura feminina. Isso é fundamental porque a loucura de Frenhofer, o pintor de Balzac, está ligada ao corpo de uma mulher, à carne, ao desejo impossível de criar a carne através da tinta (daí a ideia de "pintura encarnada" no comentário de Didi-Huberman). É nessa impossibilidade que nasce diante do corpo feminino que o Uccello de Schwob se une ao Frenhofer de Balzac: Uccello se apaixonou, conta Schwob, e levou Selvaggia (esse era seu nome) para casa; "não havia o que comer na casa de Uccello", escreve Schwob; "Selvaggia não ousava dizer a Donatello nem aos outros. Ela se calou e morreu".  
Giorgio Vasari, 1511-1574

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Sonhos de sonhos

Van Gogh, Descanso do trabalho, 1890
1) Em um de seus nove ensaios sobre Dante, aquele sobre a fome de Ugolino (que Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, seleciona como o ensaio emblemático do contato de Borges com a tradição literária italiana), Borges fala da incerteza, a incerteza que marca a imortalidade de Hamlet (louco e são, simultaneamente) e que marca a "estranha matéria" da qual é feito Ugolino, imortal no espaço entre devorar e não devorar seus filhos (a própria ideia da "estranha matéria da qual é feito Ugolino" é uma citação shakespeareana, que remete, também ela, como que reforçando o campo simbólico da ideia que Borges enuncia, ao sonho, à incerteza e ao caráter instável da percepção e da verdade). Borges escreve que Dante sonhou Ugolino entre duas agonias possíveis - comer os filhos, morrer de inanição -, e que esse sonho de Dante é sonhado pelas "gerações vindouras", um sonho que certamente nos alcança e certamente nos ultrapassará.
2) Vasari fala muito indiretamente dos sonhos dos artistas em seu Vidas dos artistas, porém, em paralelo a essa esquiva, existe a construção de um espaço simbólico que diz respeito à revelação, à visão diferenciada e à abrupta iluminação dos artistas (glória, grandeza, espanto, maravilha, entre muitos outros termos, funcionam para Vasari como essas marcas de passagem entre um estado inicial da arte e um profissional, estabelecido por Cimabue - na Vida de Cimabue Vasari cita Dante, o canto XI do Purgatório). Na Vida de Paolo Uccello, por exemplo, Vasari insiste no registro dos devaneios do pintor (signo tanto de sua capacidade de trabalho e de inovação quanto de sua incapacidade para os negócios), devaneios que levavam Uccello a um nível abstrato de observação do real, em busca das regras ocultas da perspectiva.
3) O sonho ainda não é para Vasari, como é para Borges, um veículo da transmissão cultural e artística. Na reescrita que propõe das Vidas de Vasari, Marcel Schwob, em Vidas imaginárias, dá um passo em direção a essa percepção, e a partir daí pode se perceber parte dos motivos que levaram Borges a exaltar a poética de Schwob. Quem recolhe todos esses fios e os encaixa em um único corpo ficcional é Antonio Tabucchi, em 1992, com Sonhos de sonhos. O livro é um inventário de verbetes biográficos (Freud, Caravaggio, Rimbaud, entre outros) que se resolve não na dimensão historiográfica (mesmo apócrifa, como acontece em Schwob ou Borges), mas na dimensão onírica, dentro da qual inúmeros pontos-chave das poéticas dos artistas biografados abandonam o rigor cronológico e se condensam em imagens delirantes (criadas por Tabucchi).  

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Schwob e Vasari

1) Baseado sobretudo no Vidas dos artistas de Vasari, Marcel Schwob escreve sua versão da vida de Paolo Uccello - o pintor florentino é uma das vidas imaginárias que Schwob apresenta em seu livro Vidas imaginárias, publicado originalmente em 1896 (o ano que Oscar Wilde apresenta Salomé e Alfred Jarry apresenta o Ubu Rei, ambos em Paris). O livro de Vasari foi certamente um dos ingredientes fundamentais para Schwob configurar seu Vidas imaginárias, o que permite rastrear a presença de Vasari também em obras como a História universal da infâmia, de Borges, a Sinagoga dos iconoclastas, de Wilcock, a Literatura nazi na América, de Bolaño, e as Vidas minúsculas, de Pierre Michon (ou a vida dos homens infames, de Michel Foucault, ou mesmo a catalogação de vidas irrisórias que Georges Perec faz em Vida, modo de usar). 
2) Vasari, no entanto, está interessado em historiografia, e Schwob está interessado em ficção - e há um trecho da vida de Paolo Uccello que exemplifica essa distância. Schwob e Vasari partem do mesmo fato, aquele que teria sido o último projeto de Uccello: "um São Tomé buscando a chaga de Cristo", escreve Vasari, e completa: "nessa obra empenhou-se muito; ela foi terminada em sua velhice (...) quis demonstrar tudo o que valia e sabia". Vasari também informa que Uccello "mandou fazer um tapume de madeira para que ninguém pudesse ver sua obra antes de terminada". Donatello, o conhecido escultor, amigo e vizinho de Uccello, "indo certa manhã ao Mercado comprar frutas para desenhar, viu que Paolo descobria sua obra". Depois de "olhar bem a obra", escreve Vasari, Donatello exprime seu descontentamento - Uccello se envergonha e deixa a obra de lado (Vidas dos artistas, tradução de Ivone Bennedetti, WMF Martins Fontes, 2011, p. 197).
3) A chave do desvio que ocorre entre Vasari e Schwob está na frase "ela foi terminada em sua velhice" e na presença de Donatello. Em Schwob, Uccello chama Donatello depois de terminar o quadro, certo de "que havia realizado o milagre". "Mas Donatello", escreve Schwob, "vira apenas um emaranhado de linhas" (Vidas imaginárias, tradução de Duda Machado, Ed. 34, 1997, p. 100). Donatello morreu em 1466, Uccello em 1475 (nascido em 1397, não chegou aos "oitenta anos" declarados por Schwob em seu conto); o escultor, portanto, não poderia ter visto a obra finalizada, o "São Tomé buscando a chaga de Cristo". Assim como as cenas da vida de São Francisco, também essa obra de Uccello não sobreviveu (o motivo de São Tomé e das chagas de Cristo seria explorado por Caravaggio mais de um século depois, em 1601).    

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Paolo Uccello

Paolo Uccello, A Natividade, detalhe, Igreja de San Martino Maggiore, Bolonha
Giorgio Vasari sustenta que Paolo Uccello se preocupava muito mais com a perspectiva do que com as figuras, e é precisamente por conta dessa preferência que "viveu tão pobre quanto famoso". Mas isso não impede que o mesmo Vasari afirme que Uccello era insuperável na representação dos animais - Vasari não explica a origem do nome, uccello, pássaro, mas Marcel Schwob, em suas Vidas imaginárias, afirma que o nome vinha do grande número de animais pintados em todas as paredes de sua casa em Florença. Vasari informa que Uccello pintou algumas cenas da vida de São Francisco (afrescos na igreja de Santa Trinità, em Florença, que já não existem mais), "belíssimas cenas de cavalos e outros animais" na casa dos Medici, com "a soberba dos leões enfurecidos", a "velocidade e o temor em cervos e gamos", "os pássaros e os peixes com escamas variegadas", fez o Dilúvio e a Arca de Noé, pintou um cavalo imenso em homenagem a um general inglês, em Santa Maria del Fiore, uma pintura que enganou os olhos de muitos florentinos e também de muitos estrangeiros que por ali passavam, acreditando se tratar de uma escultura (Giorgio Vasari, Vidas dos artistas, tradução de Ivone Castilho Bennedetti, WMF Martins Fontes, 2011, p. 194-198).
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Um desses estrangeiros passou pela cidade de Bolonha atrás dos rastros deixados por Paolo Uccello nessa cidade, uma passagem breve que aconteceu por volta de 1435. Como aconteceu com os afrescos das cenas da vida de São Francisco, o tempo foi cruel com os rastros de Uccello em Bolonha, mas não tanto: sobrou um pedaço daquele ciclo sobre A Natividade, num cantinho da igreja de San Martino Maggiore. E foram justamente os animais que sobreviveram, esses animais que não só eram de grande importância para Paolo como lhe deram o nome pelo qual é conhecido ainda hoje, Paolo Uccello, os animais que guardam o sono do bebê, que sobreviveram e que servem ao estrangeiro como uma espécie de portal, de limiar, não exatamente em direção ao passado, mas em direção a um tempo em suspensão.

sábado, 2 de novembro de 2013

Nota sobre os jornais

1) A utilização dos jornais na literatura: Pereira, em Afirma Pereira, de Antonio Tabucchi, personagem cuja própria trajetória de conscientização e emancipação política vai em paralelo ao seu uso cada vez mais anárquico das possibilidades de sua atividade jornalística (primeiro com a tradução de autores franceses, depois, antes de desaparecer e abandonar sua identidade, a derradeira peça de sabotagem que deixa no prelo).
2) Em paralelo, na mesma época histórica e com materiais semelhantes, O ano da morte de Ricardo Reis, de Saramago, em que Ricardo Reis vai pouco a pouco retornando ao mundo português e ao mundo europeu (estava no exílio carioca...) a partir das notícias do jornal - notícias que acompanha um pouco no piloto automático, pela força do hábito, uma força do hábito que Saramago de alguma forma consegue encaixar na própria dinâmica da narrativa, costurando milimetricamente o cotidiano, o histórico e o poético. Ricardo Reis como uma espécie de detetive involuntário que vai reunindo e montando as peças meio que à revelia de sua própria consciência, trajetória e desejo (muito como Pereira nesse sentido). 
3) A ideia do detetive involuntário faz iluminar imediatamente a analogia com Poe, com seu detetive Auguste Dupin, que jamais pisou numa cena do crime - resolvia todos os casos dentro de seu quarto, lendo as notícias dos jornais (não tanto aquilo que estava escrito, mas aquilo que faltava, aquilo que era eloquente em sua ausência - uma leitura das lacunas que é também o mote para o romance de Sabato, Sobre heróis e tumbas, baseado numa nota do La Razón de 28 de junho de 1955).  

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Tolstói e Shakespeare

1) George Steiner deu ao exercício da crítica uma feição quase agonística e quase trágica ao propor e investigar o seguinte dilema: Tolstói ou Dostoiévski, seu primeiro livro, publicado em fins da década de 1950. "A crítica literária deve brotar de uma dívida de amor", é a primeira frase do livro. Steiner defende a imperativa necessidade de marcar uma posição, confrontando duas obras e dois autores que, mesmo compartilhando aqui e ali alguns elementos, representam duas concepções de mundo e de literatura antagônicas - sem mediação, sem conciliação, sem caminho alternativo, o que Steiner postula, em Tolstói ou Dostoiévski, é a necessidade rigorosa de escolha, o tipo de postura radical que, segundo ele, fertiliza o exercício da crítica literária (algo que Susan Sontag vai explorar alguns anos depois com a ideia de "vontade radical").
2) Não parece ter passado pela cabeça de Tolstói sequer a possibilidade de se comparar a Dostoiévski. Sua dívida de amor, que era também uma dívida de ódio, de repulsa e de desespero, era com e contra Shakespeare. Harold Bloom afirma que a repulsa de Tolstói era fruto da consciência de um marco intransponível: Tolstói pressentia que era impossível ir além de Shakespeare, um pressentimento aliado a uma revolta um pouco irracional por conta do fato de Shakespeare ter chegado primeiro em termos históricos. Numa frase que parece não levar a lugar algum, Bloom escreve: "Shakespeare perturbava Tolstói porque o distanciamento deste, como autor, assemelha-se ao de Shakespeare e, nos momentos em que a arte suprema se afirma, o moralismo exacerbado cessa" (Gênio, tradução de José Roberto O'Shea, Objetiva, 2003, p. 92).
3) George Orwell, por sua vez, em ensaio publicado em 1947 ("Lear, Tolstoi e o Bobo"), é bem mais preciso. Orwell lê com cuidado o texto de Tolstói, escrito no fim da vida, no qual afirma que aos setenta e cinco anos decidiu reler mais uma vez as obras completas de Shakespeare e, mais uma vez, sentiu raiva e repulsa. Por que Tolstói escolhe para sua análise justamente Rei Lear, se pergunta Orwell. Seu resumo da peça é tendencioso, parcial, recortando trechos e enfatizando outros para defender sua tese de que Shakespeare é uma moda estúpida que durou tempo demais. Mas, para Orwell, o que Tolstói não pode suportar é o fato de se identificar com Lear, se identificar com a figura nobre que renuncia a tudo e que, como recompensa por esse gesto magnânimo, espera o respeito e a admiração daqueles que o rodeiam - mas Lear espera e não recebe, e Tolstói não pode aceitar esse fim trágico, porque é um fim que não deseja a si próprio (Orwell fala da visão anarquista de Tolstói, mas que é sustentada por uma sensibilidade autoritária, uma sensibilidade que não consegue sentir interesse por qualquer coisa que não seja ela própria - Dentro da baleia, tradução de José Antonio Arantes, Companhia das Letras, 2005, p. 173-194).