1) Um elemento que costuma passar irrefletido no que diz respeito à breve história de Paranoico Pérez, aquele personagem de Bartleby e companhia cujas ideias são roubadas por José Saramago, é justamente o caráter delirante de suas ideias. Pensamos muito nos efeitos e esquecemos a causa - ou melhor, pensamos muito no fim da equação (a coincidência absurda entre as ideias de Pérez e os romances publicados por Saramago) e esquecemos o início, que diz respeito à possibilidade de surgimento de tais ideias. O horizonte, como em boa parte da produção de Vila-Matas, é blanchotiano: não se trata de perguntar o que é a literatura, questão banal, mas de perguntar como a literatura é possível (o ponto de partida foi Agamben, em um comentário sobre Blanchot).
2) A inventividade de Paranoico Pérez, que é a inventividade de Saramago, o delírio de Saramago, leva a questão a um grau de intensidade radical - e talvez o que Vila-Matas tenha tentado com Paranoico Pérez seja justamente uma clivagem nesse delírio, o estabelecimento de um centro alternativo para a órbita do delírio de Saramago. Nesse ponto, Saramago se aproxima de César Aira (naquilo que Chklóvski chama de semelhança do dissimilar): grande quantidade de livros publicados, esforço de apresentar um ponto de partida instigante em cada um deles - e eu quase escrevo "original", "ponto de partida original", e me dei conta de que também isso está em questão em ambos: Aira problematiza o original a partir do automatismo vanguardista duchampiano; Saramago problematiza o original a partir do desejo de fazer ficção a partir da História, dos fatos sólidos da tradição portuguesa.
3) Nesse sentido, é importante notar que Paranoico Pérez não possui a memória de Saramago - como acontece com a memória de Shakespeare, tema borgeano que Vila-Matas também vai utilizar. Porque a inventividade de Saramago, seu delírio, tem, sem dúvida, raízes na História, mas é fundamentalmente um procedimento de intervenção no presente. A Península Ibérica que se desprende e vira uma jangada; uma epidemia que cega toda a humanidade; um copista que muda a História com um "não"; a viagem de um elefante; a morte.
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