sexta-feira, 30 de novembro de 2012

A crítica como intimidação

1) Gosto de: salada, canela, queijo, pimentões, pasta de amêndoas, cheiro de feno cortado (gostaria que um especialista fabricasse tal perfume), rosas, peônias, lavanda, champanhe, posições levianas em política, Glenn Gould, cerveja excessivamente gelada, travesseiros baixos, pão torrado, charutos Havana, Händel, passeios comedidos, pêras, pêssegos brancos ou de vinha, cerejas, tintas, relógios, canetas, penas de escrever, petiscos, sal cru, romances realistas, piano, café, Pollock, Twombly, toda a música romântica, Sartre, Brecht, Verne, Fourier, Eisenstein, trens, vinho de Médoc, champanhe tinto, ter dinheiro trocado, Bouvard e Pécuchet, andar de sandálias à noite nas estradinhas do Sudoeste, a curva do rio Adour vista da casa do doutor L., os Irmãos Marx, o serrano às sete da manhã saindo de Salamanca, etc.
2) Não gosto de: lulus brancos, mulheres de calças, gerânios, morangos, cravo, Miró, tautologias, desenhos animados, Arthur Rubinstein, casas de veraneio, tardes, Satie, Bartok, Vivaldi, telefonar, coros de crianças, concertos de Chopin, bailaricos da Borgonha, danças da Renascença, órgão, M.-A. Charpentier, suas trombetas e tímbalos, o político-sexual, as cenas, as iniciativas, a fidelidade, a espontaneidade, as noitadas com gente que não conheço, etc.
3) Gosto, não gosto: isso não tem a menor importância para ninguém; isso, aparentemente, não tem sentido. E, no entanto, tudo isso quer dizer: meu corpo não é igual ao seu. Assim, nessa espuma anárquica dos gostos e dos desgostos, espécie de picadinho distraído, desenha-se pouco a pouco a figura de um enigma corporal, atraindo cumplicidade ou irritação. Aqui começa a intimidação do corpo, que obriga o outro a me suportar liberalmente, a ficar silencioso e cortês diante de gozos ou recusas de que não partilha.
Roland Barthes por Roland Barthes
Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 
Estação Liberdade, 2003, p. 133.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A geografia e o mal

1) Foi Borges (mais uma vez) quem recuperou, na História universal da infâmia, uma antiquíssima linha de força da história literária: as relações entre a geografia (a topografia, a paisagem) e o mal. Os personagens da História universal da infâmia caem diante da tentação não apenas de suas próprias naturezas, mas também do apelo insidioso do ambiente: a vastidão do mar, a vastidão do deserto. A vastidão é perniciosa, alimenta o ócio e a inquietude, que alimentam, por sua vez, o vício do mal.
2) É durante a peregrinação pelo deserto que os israelitas alcançam o clímax do pecado e, abraçando as subterrâneas sugestões do Demônio, constroem o Bezerro de Ouro; Jesus também vai ao deserto, para jejuar, e é lá que encontra o Demônio, à espreita, pleno de argumentos lógicos, carregado de linguagem impecável. Exatamente como o Juiz Holden do Meridiano Sangrento de Cormac McCarthy: não sofre a ação do tempo (ou do tempo como o conhecemos), vasto como a vastidão do deserto, que dá mostras de conhecer de forma fisiológica - como se o deserto fizesse parte de sua condição ontológica, participando, evidentemente, de sua implacável tendência ao mal (materializada no colecionismo de escalpos, línguas e orelhas).
3) Certamente não é por acaso que Carlos Wieder apareça justamente na reescritura que Bolaño faz da História universal da infâmia, ou seja, na Literatura nazi na América. Wieder, o aviador assassino de mulheres, tem apenas a vastidão do céu diante de si, o espaço sem fim do horizonte, e é ali que escreve seus poemas, feitos de fumaça. Literatura e guerra aérea, literatura e história universal da destruição, como nos apresentou Sebald. "O mal, uma forma aguda do mal, que só pode ser expressa pela literatura", escreve Bataille em A literatura e o mal, "possui para nós um valor soberano".

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O crítico como ridículo, 1

Todorov já falou do crítico como criminoso e David Markson, em sua apropriação de uma declaração de Harold Bloom, esboçou aquilo que poderia ser considerado o crítico como ridículo, como figura da soberba. Voltando ao início, voltando a Todorov, uma passagem de A literatura em perigo que mostra como a mesma imagem - a cena de leitura, a cena do leitor que lê de forma ininterrupta - pode ser deslocada, ressignificada:
Por mais longe que remontem minhas lembranças, sempre me vejo cercado de livros. Como meus pais eram ambos bibliotecários, havia sempre muitos livros em minha casa. Logo aprendi a ler e comecei a devorar os textos clássicos adaptados para jovens, As mil e uma noites, os contos os irmãos Grimm e de Andersen, Tom Sawyer, Oliver Twist e Os miseráveis. Um dia, aos oito anos, li um romance inteiro; devo ter ficado muito orgulhoso com o fato, pois escrevi em meu diário: "Hoje, li Sobre os joelhos do meu avô, livro de 223 páginas, em uma hora e meia!"
Tzvetan Todorov. A literatura em perigo. DIFEL, 2009, p. 15.
Se Markson ridicularizava Bloom por conta do apelo midiático e performático de sua declaração, não é possível fazer o mesmo com a inocente anotação de uma criança de oito anos - ainda que se trate rigorosamente do mesmo conteúdo, do mesmo procedimento de quantificação da leitura. Como o Atlas, figura simultânea do saber sem fronteiras e do sofrimento sem medidas, o leitor ininterrupto é também uma imagem dialética: oscila entre a soberba e a inocência, entre o momento mágico da descoberta e o mecânico gesto da leitura técnica.

sábado, 24 de novembro de 2012

O crítico como ridículo

1) Depois do crítico como criminoso (uma metáfora elaborada pelo próprio crítico, Tzvetan Todorov), encontramos o crítico como ridículo, como figura da soberba, do filisteísmo, da arrogância e da confiança exacerbada, e também da vaidade e do deslumbramento. Essa vertente é brilhantemente captada por David Markson - em seu inconfundível estilo telegráfico e lacunar: 
Harold Bloom's claim to the New York Times that he could read at a rate of five hundred pages per hour.

Writer's arse. 

Spectacular exhibition! Right this way, ladies and gentlemen! See Professor Bloom read the 1961 corrected and reset Random House edition of James Joyce's Ulysses in one hour and thirty-three minutes. Not one page stinted. Unforgettable!

David Markson. This is not a novel. Counterpoint, 2001, p. 130-131. 
2) A cena é engraçada, irônica, um pouco ressentida talvez, mas cheia de possibilidades de leitura, cheia de não-ditos carregados de sentidos enigmáticos: a montagem feita de citação jornalística e aplicação ficcional dos acarretamentos da declaração de Bloom. A escolha do livro é importante - não apenas o absurdo de ler Ulysses em uma hora e meia, mas especialmente o posicionamento de uma obra-prima incontestável diante do procedimento "utilitarista" de Bloom. Como se a complexidade proverbial do livro de Joyce bastasse para denunciar a estupidez de um método de leitura baseado na quantidade de páginas lidas por hora (ainda que, para Bloom, não seja somente isso, estando em evidência aqui a escolha feita por Markson).
3) Está em jogo um antagonismo entre o método de leitura do crítico e o método de leitura do ficcionista: Markson ridiculariza a declaração de Bloom, reforçando de forma paródica a dimensão "espetacularizada" do crítico profissional. Esse poderia ser um ponto final, não fosse a complexidade do livro em questão - This is not a novel é puro mecanismo, concatenação maníaca de referências e citações, reflexo, finalmente, de uma ética da leitura ininterrupta, sobreposta à vida, aos afetos e aos desejos do "escritor-pessoal-real". O ridículo da performance de Bloom funciona como uma espécie de duplo fantasmático dos procedimentos ficcionais do próprio Markson, colocando todo o seu projeto diante de um abismo, diante de uma tessitura vertiginosa de indecidibilidades.
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"Telefonei para o Autor, marcando uma entrevista", é a primeira frase do conto "Intestino grosso", de Rubem Fonseca. Algumas linhas depois:

"Você lê diariamente? Quantos? Qual a velocidade?"
"Leio no mínimo um livro por dia. Minha velocidade, hoje, é de cem páginas por hora. Já li mais rápido."

Rubem Fonseca. "Intestino grosso" (Feliz ano novo). Contos reunidos. Companhia das Letras, 1994, p. 460-461.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Bellatin e seus rastros

André Kertész, MacDougal Alley, Nova York, 1977
1) Todos os livros de Bellatin operam por montagem - nos primeiros os cortes dão apenas um descanso do pesadelo compacto que prolifera e, simultaneamente, se concentra em cada interrupção (a opressão envolvente da doença e da morte em Efecto invernadero e Salão de beleza, a deriva alucinada de famílias desajustadas em Damas chinas).
2) A partir de Flores a montagem passa a se apresentar também através da disposição gráfica (vazios que recortam, enquadram e amarram as histórias). Em paralelo a isso, o autor se traveste de narradores que são copistas, antologistas, tradutores, investigadores, detetives, filólogos, até o limite da erosão da voz própria - como se o texto final fosse a gravação impessoal de um texto alheio. 
3) A geografia variada mencionada nas ficções de Bellatin também se desloca dentro de um conjunto móvel, formando um atlas mutante de identidades e fronteiras flexíveis (do Peru ao México, chegando à China, ao Cairo, ao império austro-húngaro e ao Japão). O espaço vazio (ou, eventualmente, a imagem enigmática, descolada do texto, como acontece em Jacobo el mutante), a voz impessoal e o delírio cartográfico são, portanto, as feições reveladoras da ficção de Bellatin, os traços e signos que permitem a leitura recíproca de texto e contexto
 

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Bellatin e o futuro

Juan Rulfo, México, 1947
1) Em uma das imagens incluídas em Cães heróis, de Mario Bellatin, uma das imagens que finalizam a história, vejo um mapa pendurado na parede - um mapa do México. Talvez seja a casa do homem gordo, do homem que se movimenta em uma cadeira de rodas, o "homem imóvel" do subtítulo do livro, o "homem imóvel e seus trinta pastores belga malinois". Certamente não é o México referencial e histórico de Sergio Pitol, e também não se aproxima da cartografia maníaca do Deserto de Sonora de Bolaño.
2) No correr do livro, Bellatin escreve que há "um grande mapa da América Latina" na parede, com círculos que indicam as cidades nas quais existem criações de pastores belga malinois. "Para certos visitantes", acrescenta Bellatin mais adiante, de forma enigmática, "a presença desse mapa os leva a pensar no futuro do continente".
3) Cães heróis é tudo, menos uma ficção que se ocupa das correspondências factuais e geográficas: o mecanismo que articula e desarticula as partes do texto (e os imensos espaços em branco entre elas) não está ajustado na lógica da representação, da mímesis. A banalidade que reveste a proximidade da voz narrativa com o homem na cadeira de rodas é tanto uma ilusão quanto um procedimento técnico: o que está em jogo não é o que se mostra, mas o que se esconde (por isso a insistência com o futuro - da literatura, do continente, da vida, da linguagem).    

terça-feira, 20 de novembro de 2012

O artista em seu caminho

1) É John Russell - na biografia cuja primeira edição é de 1971 - quem dá os detalhes do encontro de Francis Bacon com Van Gogh, ou, mais precisamente, o encontro de Bacon com a pintura de Van Gogh que mostra o pintor sozinho em uma estrada, ou, mais precisamente, o pintor acompanhado apenas de sua sombra em direção ao campo para pintar. 
2) Bacon manuseava um exemplar da primeira edição (1936) de um manual escrito por Wilhelm Uhde, e foi aí que encontrou e destacou a reprodução de O artista na estrada de Tarascon (também referido como O pintor em seu caminho ao trabalho), pintado por Van Gogh em julho de 1888. A tela era conservada no Museu Kaiser Friedrich, na cidade alemã de Magdeburgo, até ser destruída em um bombardeio durante a Segunda Guerra Mundial.  
3) Não é curioso que, em seu esforço progressivo e metódico de releitura das possibilidades convulsivas da tradição e do corpo, Francis Bacon tenha escolhido justamente uma imagem cuja materialidade (cujo corpo) foi destruída pela guerra? Entre 1956 e 1957, Bacon fez seis estudos tendo como base a reprodução do quadro de Van Gogh - reprodução datada de 1936. Será que Bacon sabia que, enquanto revisitava os traços de Van Gogh, a tela não existia mais? 

domingo, 18 de novembro de 2012

Os materiais de Francis Bacon

Francis Bacon, Estudo para retrato de Van Gogh, 1957
1) Os materiais de Francis Bacon e o caos de seu local de trabalho: fotos, recortes de revistas e de jornais, um manual sobre pequenas cirurgias, reproduções dos trabalhos de Muybridge, Leonardo da Vinci (especialmente os esboços sobre anatomia) e Van Gogh. Tudo sujo de tinta - as bordas de todos os papeis marcadas com as digitais multicoloridas de Bacon.
2) Muitas outras referências passam pelas mãos de Bacon e mesmo as três citadas são incorporadas com variados graus de intensidade. Mas é digno de nota, de qualquer forma, a sutileza dos cruzamentos e o constante exercício de leitura, releitura e montagem da tradição que faz Bacon. A arte de Bacon rastreia em poéticas alheias problemas que estejam ainda em circulação, atualizando-os e deformando-os.
3) Bacon, enquanto trabalhava, manipulava constantemente outras imagens, outros registros, outras temporalidades. Muybridge e Leonardo estão unidos, na visão de Bacon, por suas poéticas precursoras: o primeiro como radical pioneiro da fotografia e o segundo como o máximo dessacralizador do corpo - e ambos, assim como Van Gogh, preocupados não com a faceta harmônica do corpo e da vida, e sim com suas repercussões agônicas e convulsivas. É provável que, sem a pintura de Bacon, esses pontos não teriam possibilidade de ligação - e esse desenho específico do tempo e da história permaneceria ilegível.