Os primeiros parágrafos de A terra onde o tempo parou, livro de Bohumil Hrabal originalmente lançado em 1985 - um dos poucos livros de Hrabal lançado na Tchecoslováquia comunista, e não de forma clandestina, no exterior, pela editora de Josef Skvorecky no Canadá -, dão uma noção luminosa da poética de Hrabal: um menino, sempre que volta da escola, dá um jeito de visitar o porto, onde se encanta com a coreografia dos marujos que descarregam as mercadorias dos barcos. A linguagem fluida de Hrabal, sempre um pouco febril e rapsódica, frequentemente encontra os temas brutos, a crueza do cotidiano dos trabalhadores braçais, que se divertem de forma obscena com as risadas, as prostitutas e as bebidas. Em Hrabal, nunca estamos apenas na contemplação, apenas na brutalidade da ação ou no torpor da embriaguez: as frases oscilam por esses distintos estados de espírito, como um barco em uma tempestade. O menino que inicia A terra onde o tempo parou pede para ajudar os marujos: pega uma pá e tenta carregar as pilhas de sal que chegaram ao porto. Seu fracasso é premiado com uma série de risadas por parte dos trabalhadores - e o menino começa a chorar. Mas ele avisa que seu choro vem de uma intuição, e o momento desconfortável das risadas se transforma em uma epifania: ele chora porque observa as tatuagens que cobrem os braços e os torsos dos marujos; chora porque compreende que seu destino é ser marujo e, com todo seu coração, ele afirma seu desejo de também ter um barco a vela tatuado no peito e, enfim, tornar-se marujo. A cena construída por Hrabal lembra um quadro de Monet, Os carregadores de carvão, de 1875 - com a diferença que é sal o que carregam os marujos de Hrabal, e usando carrinhos de mão. Mas as tábuas ligando a embarcação ao porto são bastante semelhantes. Hrabal, de forma incrivelmente sensível, constrói uma ekphrasis inesperada e, por isso mesmo, esteticamente muito forte: as tatuagens, essas imagens desbotadas gravadas nas peles dos marujos, começam a se movimentar diante dos olhos do menino - os barcos começam a navegar com o movimento dos braços, com o ir e vir das pilhas de sal nos carrinhos de mão. O marujo fuma, inspira e expira, e o barco tatuado oscila no ritmo das batidas do coração, escreve Hrabal.
Kelvin meu caro, como vais?
ResponderExcluirSim, já conhecia "biblioteca, à noite" (http://guinamedici.blogspot.com/2007/08/colees.html), e de fato ele é aparentado ao livro do Jesús Marchamalo. É dos poucos livros do Manguel que li, preciso procurar mais coisas dele. Li naquele livro que o Manguel tem uma espécie de castelo na França, onde guarda uma vasta biblioteca. Deve ser uma maravilha. De tempos em tempos acompanho teu blog. Você anda curioso com o leste europeu e eu aprendo um bocado com tuas postagens.
Obrigado pelas dicas.
Bom ano para ti.
Um abraço.
Aguinaldo