1) Em seus escritos, Sarmiento pratica o que mais tarde seria um dos artifícios preferidos de Borges: as atribuições errôneas. Um exemplo está em uma das epígrafes de Recuerdos de provincia: es éste un cuento que, con aspavientos y gritos, refiere un loco, y que no significa nada. Trata-se de uma tradução muito própria da frase de Macbeth - it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing -, frase que Sarmiento erroneamente coloca na boca de Hamlet. Ou seja, melhor ser príncipe incompreendido do que um assassino mau caráter. Trata-se, afinal de contas, da imagem que Sarmiento promove de si em suas memórias.
2) Mas a mais famosa das atribuições errôneas de Sarmiento está, evidentemente, no Facundo, a biografia que escreveu de seu inimigo, uma figura ao mesmo tempo tão próxima e tão distante, retrato oblíquo do próprio Sarmiento. Em Facundo, portanto, temos a epígrafe - On ne tue point les idées -, a atribuição ao historiador Hippolyte Fortoul (1811-1856), e a tradução delirante: A los hombres se degüella: a las ideas no. A frase é atribuída por Sarmiento a Fortoul apenas no prefácio de Facundo, e muitos já se ocuparam de desmentir a informação: alguns dizem que a frase não é de Fortoul, e sim do conde de Volney (1757-1820) [o primeiro a estabelecer essa correção foi Paul Groussac], outros dizem que a frase, na verdade, é de Diderot, e dão inclusive a citação original: On ne tire pas de coups de fusil aux idées.
3) O curioso é que há uma passagem de Respiração artificial, de Ricardo Piglia, na qual os personagens discutem justamente a feição mentirosa da abertura de um dos textos fundadores da literatura argentina. Eles sabem que não é de Fortoul, supõem que seja de Volney e, finalmente, concluem que não vale a pena averiguar. O que lhes interessa é a ironia da cena: Facundo, texto que inaugura da literatura argentina, inicia por uma citação que, primeiro de tudo, é de um autor estrangeiro e, segundo, é falsa:
3) O curioso é que há uma passagem de Respiração artificial, de Ricardo Piglia, na qual os personagens discutem justamente a feição mentirosa da abertura de um dos textos fundadores da literatura argentina. Eles sabem que não é de Fortoul, supõem que seja de Volney e, finalmente, concluem que não vale a pena averiguar. O que lhes interessa é a ironia da cena: Facundo, texto que inaugura da literatura argentina, inicia por uma citação que, primeiro de tudo, é de um autor estrangeiro e, segundo, é falsa:
La primera página del Facundo: texto fundador de la literatura argentina. Qué hay ahí? dice Renzi. Una frase en francés: así empieza. Como si dijéramos la literatura argentina se inicia con una frase escrita en francés: On ne tue point les idées (aprendida por todos nosotros en la escuela, ya traducida). Como empieza Sarmiento el Facundo? Contando cómo en el momento de iniciar su exilio escribe en francés una consigna. El gesto político no está en el contenido de la frase, o no está solamente ahí. Está, sobre todo, en el hecho de escribirla en francés. Los bárbaros llegan, miran esas letras extranjeras escritas por Sarmiento, no las entienden: necesitan que venga alguien y se las traduzca - el corte entre civilización y barbarie pasa por ahí. Los bárbaros no saben leer en francés, mejor: son bárbaros porque no saben leer en francés. Y Sarmiento se los hace notar: por eso empieza el libro con esa anécdota, está clasísimo. (Ricardo Piglia, Respiración artificial. Seix Barral, 2003, p. 131-132).
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