quarta-feira, 28 de abril de 2021

A sedução do rastelo


1) Ainda em Na Colônia Penal, de Kafka, no momento em que o oficial tem seu longo monólogo, explicando ao explorador o funcionamento da máquina de tortura: o ponto central da exposição equivale ao ponto central da performance da máquina, a sexta hora (dentro de um processo geral de funcionamento de doze horas). O oficial diz que o entendimento ilumina até o mais estúpido, "começa em volta dos olhos e a partir daí se espalha": "Uma visão que poderia seduzir alguém a se deitar junto embaixo do rastelo" (p. 44). Essa frase é decisiva, pois prepara sutilmente o terreno para a grande surpresa da narrativa, a substituição do corpo do condenado pelo corpo do oficial.

2) O oficial, no fim da novela, se rende à sedução que sempre o ligou à máquina de tortura - ele investiu forte carga libidinal nessa máquina, como fica evidente em seu esforço para convencer o explorador que a máquina não só faz parte da cultura do lugar, mas também é parte constituinte da evolução humana. O que tinha acontecido com o condenado, escreve Kafka, "agora acontecia com o oficial" (p. 64). Ele se despe e vai em direção à máquina - percebendo o que vai acontecer, o condenado se vê "vingado até o fim", e aparece no seu rosto "um sorriso amplo e silencioso que não desapareceu mais".

3) A entrega do oficial à máquina precisa do olhar do condenado para acontecer, ao menos no nível da narrativa construída por Kafka - nessa perspectiva, a entrega de um depende do olhar do outro, um jogo de submissão e abjeção que liga a Colônia Penal a um precursor célebre como o Marquês de Sade, por exemplo, e a um contemporâneo de Kafka como Georges Bataille (que dedicará boa parte de sua obra a descrever essa zona cinza entre desejo, abjeção, violência e sagrado). A máquina de tortura é tanto um novo dispositivo (algo que diz respeito à elaboração kafkiana da técnica e de suas relações com o sujeito, como fará também Heidegger) quanto uma reconfiguração do milenar conflito entre carne e espírito, obsessão de Kafka. 

domingo, 25 de abril de 2021

Ar estúpido


1) Outro aspecto da poética de Sebald que pode ser lido em contraste com a obra de Kafka é sua preocupação com as "vidas infames", com os personagens menores da História movimentados, mobilizados e violentados pelo Estado, pela Ciência, pelos dispositivos de manutenção dos corpos e assim por diante. A questão está posta, por exemplo, desde o início de Os anéis de Saturno, com a discussão sobre o corpo do ladrão (Aris Kindt, Adriaan Adriaanszoon), aberto e exposto na "lição de anatomia", diante de uma plateia ávida que faz pensar na plateia que precisava ser contida com um firme corrimão, como escreve Kafka em Na Colônia Penal (o oficial está relembrando os bons tempos da máquina de escritura/tortura para o explorador, agente do progresso).

2) Contudo, aquilo que em Rembrandt é ordem, controle e organização, em Kafka é desordem e confusão - o mundo já não é mais o mesmo, a divisão cartesiana clara entre sujeito e objeto (o Discurso sobre o Método é de 1637, o quadro é de 1632) está em processo de esfarelamento. O condenado em Kafka é "uma pessoa de ar estúpido, boca larga, cabelo e rosto em desalinho", vivendo uma "sujeição canina" (p. 29) (embora saibamos que todo recurso ao animal em Kafka envia em direção a outra camada de sentido, mais da resistência do que da opressão - o condenado da Colônia penal aparece no início da narrativa pela perspectiva do oficial que manipula a máquina e do soldado que o acompanha).

3) O oficial diz ao explorador: "O mandamento que o condenado infringiu é escrito no seu corpo com o rastelo" (p. 36). O sujeito levará inscrito no corpo o mandamento transformado em sentença, transformado em destino (serve de lição coletiva, já que toda a comunidade vê a máquina em funcionamento, exatamente como na cena de Rembrandt). O processo de tortura leva 12 horas. Na sexta hora, algo acontece, diz o oficial: "O entendimento ilumina até o mais estúpido" (p. 44), Verstand geht dem Blödesten auf. Esse esclarecimento faz da tortura uma espécie de evento sagrado, na perspectiva do oficial, que interpreta a derrocada do corpo do condenado na sexta hora como um êxtase (é possível pensar como o corpo de Aris Kindt em Rembrandt evoca a figura do Cristo morto).  

quinta-feira, 22 de abril de 2021

O soldado que ri


1) Se o humor em Sebald muitas vezes surge de situações absurdas e de personagens excêntricos, é possível interpretar esse traço característico como um dos tantos que Sebald elabora a partir de Kafka (e, no caso do humor enviesado, também de Thomas Bernhard, cuja obra está repleta desses tipos involuntariamente cômicos - ou ainda, de tipos cuja mania é tão enfatizada e martelada que chega a tocar o humor a partir do exagero, do absurdo).

2) Em Na Colônia Penal, por exemplo, dois pares muito rapidamente se formam - um procedimento que faz pensar também em Beckett, que trabalhará muito em suas peças esse recurso cômico das duplas envolvidas em diálogos insistentes e absurdos (é possível pensar em Sancho e Quixote, em Cervantes). O viajante conversa com o oficial; o soldado se aproxima do condenado, prestes a ser executado pela máquina de tortura, mas libertado na última hora.

3) Depois de libertado, o condenado permanece próximo ao soldado, enquanto este pesca suas roupas do fundo do fosso usando sua baioneta (roupas que foram rasgadas quando o condenado foi posicionado na máquina de tortura). "Talvez o condenado se julgasse na obrigação de divertir o soldado", escreve Kafka, "com a roupa rasgada girava em círculo diante do soldado, que agachado no chão ria batendo nos joelhos" (p. 62). O riso do soldado certamente não é contagiante - não faz o leitor rir a partir de seu riso; mas o humor sem dúvida existe, está posto na cena, e uma de suas funções é intensificar o absurdo de toda a situação (a pantomima do condenado que recupera as roupas; o soldado que ri, absorto em sua alienação, em seu automatismo).

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Sebald, humorista


1) Em seu ensaio sobre o humor em Sebald, James Wood seleciona uma passagem de Os anéis de Saturno: o narrador, sozinho no salão, se prepara para jantar no hotel Albion; o peixe que chega no prato tem um aspecto deprimente, e provavelmente ficou anos no congelador. Segundo Wood, o humor funciona nessa passagem a partir do paradoxo que aproxima o exagero (como se o ato de destrinchar o peixe fosse aproximado do ato de "arrombar um cofre" ou resolver um "enigma filosófico") e o paciente cuidado com que a operação é descrita (os exemplos de humor em Sebald dados por Wood em geral envolvem comida e o esforço de adaptação de uma alemão à cultura inglesa). 

2) Essa visão simplista do humor é logo deixada de lado por Wood, que passa a aproximar Sebald de figuras como Kafka e Thomas Bernhard, buscando uma sorte de vivência humorística indireta, impura, atravessada pelo trágico (às vezes aparecem figuras estranhas, excêntricas, como a criada Elaine do Dr. Henry Selwyn, em Os emigrantes; ou por meio da incerteza diante da realidade, como na desorientação do narrador em sua viagem pela Itália, em Vertigem). Nesse ponto, Wood fala que Sebald explora uma espécie de "pastiche gótico", um excesso dos gestos e das sensações que dá uma impressão de irrealidade a certos pontos da narrativa (algo que as imagens, argumenta Wood, reforçam, por conta da baixa qualidade e nitidez).

3) É digno de nota que Wood inicie e finalize seu ensaio fazendo uso do encontro "face-a-face", do recurso à materialidade e ao verificável ou testemunhal: no início, Wood fala de quando jantou com Sebald em Nova York em 1997, depois de uma entrevista no PEN American Center; no final, fala de como teve a oportunidade de ir aos Arquivos Sebald em Marbach e ver de perto o cartão-postal que gerou a imagem de Jacques Austerliz quando criança. A conversa com Sebald no jantar serve para iniciar a questão da adaptação de um alemão à cultura inglesa; a visita ao arquivo, por outro lado, serve como comprovação de que a poética de Sebald leva mais à digressão ficcional do que à certeza documental (o cartão-postal foi provavelmente comprado por Sebald em um mercado de pulgas, já que ainda carrega a inscrição Stockport: 30p). 

terça-feira, 13 de abril de 2021

Gaio saber visual


1) Em seu ensaio de 1919 sobre a "tradição e o talento individual", T. S. Eliot fala da poesia do presente (da arte do presente) como um evento multifacetado que não atua exclusivamente sobre seu contexto imediato, mas reorganiza também a tradição, o passado e a releitura das obras já lidas (quase vinte anos depois, Benjamin apresenta o revés dialético dessa ideia com a frase da Tese VI: também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer). O artista é um medium atuando como condutor das forças heterogêneas de distintas temporalidades; consequentemente, a arte do presente interfere criativamente sobre o panorama social, político e afetivo imediato enquanto reorganiza "agonísticamente" as experiências diante do passado.

2) Dez anos depois do ensaio de Eliot, em 1929, Bataille inicia a revista Documents - um projeto no qual se percebe claramente esse jogo de reconfiguração da arte do passado a partir da arte do presente, em um jogo de remontagens que não se dá cronologicamente, mas a partir de saltos e contrastes (falando precisamente desse contexto Didi-Huberman escreve que "o anacronismo fabrica a história"). Documents coloca em circulação pela primeira vez obras de Picasso, Miró e Giacometti e, ao mesmo tempo, "todo um corpus de obras de arte antiga até então recusadas pelos estudos tradicionais, inclusive no domínio ocidental (penso nos artigos sobre Giovanni di Paolo, Piero di Cosimo, Antoine Caron)".

3) A citação iniciada acima é do livro que Didi-Huberman dedica ao "gaio saber visual" de Bataille, e ele continua mostrando o peculiar método de montagem de imagens da revista Documents: "Um desenho de Delacroix reproduzido a algumas páginas dos hediondos ex-votos de Notre-Dame de Liesse, por exemplo; ou uma paisagem de Constable mostrada não longe de uma fotografia de acidente de estrada; ou ainda um quadro de Fernand Léger próximo à múmia de um cachorro..." (p. 26-27). O contraste entre "Belas-artes" e "Etnografia" em Documents, por exemplo, permite não apenas o comentário crítico sobre a arte do presente (Picasso e as máscaras africanas), mas também a interferência sobre aquilo que se convencionou como estabelecido no que diz respeito à arte antiga ou à arte do Renascimento (o contraste entre o homem acéfalo e o homem vitruviano). 


quinta-feira, 8 de abril de 2021

Despersonalização


1) No ensaio sobre Bataille e o "paradoxo da soberania", Giorgio Agamben escreve: "Naquele instante, entre as imagens que ele [Pierre Klossowski] tinha ainda bem vivas na memória, havia também aquela de Benjamin com as mãos levantadas em um gesto de advertência (Klossowski naquele momento ficou de pé para imitá-lo) que, a propósito da atividade do grupo Acéphale e, em particular, das ideias expostas por Bataille no ensaio sobre a Notion de dépense (que havia saído três anos antes na Critique sociale), repetia 'Vous travaillez pour le fascisme!'".

2) Para além dos numerosos aspectos discutíveis da perspectiva épater-le-bourgeois e extremista de Georges Bataille, o ponto de contraste mais claro com relação ao fascismo é sua reiterada afirmação do valor da heterogeneidade e sua valorização do sacrifício não pela via da incidência sobre um conjunto de vítimas expiatórias "abjetas", e sim sobre o próprio grupo ou indivíduo. Contudo, a ideia de comunicação ou abertura ao outro que requer gasto excessivo e transgressão é sintomática de pressupostos individualistas de ordem quase autista, que só podem ser desbaratados através de alguma forma de descolamento extremo do "eu".

3) É possível pensar essas questões a partir da obra/vida de Bataille pelo viés do ensaio "Tradição e talento individual", de seu contemporâneo T. S. Eliot, publicado originalmente em 1919: o talento individual do artista não está ligado à inspiração, mas ao trabalho de despersonalização (como a heteronímia em Fernando Pessoa) - o artista é um medium, escreve Eliot, um circuito de passagem que liga passado e presente (trata-se de desviar o interesse "do poeta para a poesia", escreve ainda Eliot, antecipando aquilo que Borges escreverá alguns anos depois em "La flor de Coleridge", de Otras inquisiciones: "Hacia 1938, Paul Valéry escribió: 'La Historia de la literatura no debería ser la historia de los autores y de los accidentes de su carrera o de la carrera de sus obras sino la Historia del Espíritu como productor o consumidor de literatura. Esa historia podría llevarse a término sin mencionar un solo escritor'").

segunda-feira, 5 de abril de 2021

O anjo da guarda


1) Falar dos "anjos" na poesia é um gesto complexo, carregado de camadas que evocam desde Baudelaire até Rilke e o "anjo da história" de Benjamin (não é por acaso que Augusto de Campos fala de Coisas e Anjos de Rilke). O "anjo" carrega consigo a dimensão de uma entidade que oscila entre a proteção e a indiferença, espécie de elo entre a experiência mundana e uma projeção possível em direção ao inefável, ao invisível (O anjo silencioso de Heinrich Böll, por exemplo, é uma estátua despedaçada, uma ruína que assusta por sua imobilidade, por sua indiferença diante do que acontece ao seu redor).

2) Charles Simic publica, na coletânea The World Doesn't End (1989), um poema intitulado "My guardian angel is afraid of the dark", meu anjo da guarda tem medo do escuro (que dá título à coletânea brasileira). O anjo tem medo do escuro e nega: manda o "protegido" ir na frente e diz que logo ele chega (sends me ahead, tells me he'll be along in a moment); mas a escuridão é enorme, deve ser "o canto mais escuro do paraíso", como sussurra alguém (“This must be the darkest corner of heaven,” someone whispers behind my back). O anjo da guarda, apesar de existir, já não cumpre sua função, chamando a atenção para a própria inadequação (uma condição de inoperosidade que é tornada possível pelo medo, como se o sentimento forçasse o anjo a uma situação que ele não consegue aceitar ou assumir).  

3) Essa dimensão poética da linguagem permite a construção de imagens que falam, simultaneamente, da esperança e do desespero - exatamente como o anjo de Benjamin (que no enigma auspicioso de sua existência fala da destruição e das ruínas), o anjo de Simic é estimulante por sua própria existência, até o momento em que se revela inútil, medroso, omisso. O anjo é uma das figuras de acesso àquilo que Eric Santner, seguindo Rilke, chama de "vida criatural", On Creaturely Life, um estudo que parte de Heidegger para pensar as inscrições do poder e da autoridades nos corpos e nas vivências, ou ainda, a dimensão biopolítica da oscilação entre "experiência mundana" e "projeção possível do inefável", chegando à obra de W. G. Sebald (a parte autobiográfica de Nach der Natur pode ser lida como uma glosa indireta à ideia de um "anjo da guarda" que tem "medo do escuro").