2) Muitas dessas linhas de força estão condensadas naquilo que Ricardo Piglia chamou de "teoria do complô", passando por Borges e Roberto Arlt: a literatura força sempre diante do real uma narração alternativa, desviada e desviante, levando o fingimento à superfície de uma performance que se quer veraz, convincente (uma glosa de Fernando Pessoa: o poeta finge que é dor a dor que deveras sente). A partir da emergência da carta roubada de Poe, a interpretação passa a duvidar da condição imediata do mundo, refazendo permanentemente seus processos e suas escolhas: já não é mais sustentável tomar a realidade das coisas como fato, já não é sustentável acreditar que o que se mostra aos olhos está livre de suspeitas.
3) A cena da carta roubada de Poe (que mesmo abertamente visível insiste em sua invisibilidade; que mesmo acessível de forma até ingênua insiste em sua inacessibilidade) antecipa a clivagem entre as palavras e as coisas que Foucault comentará mais de cem anos depois (por baixo das palavras só existem palavras, como dirá Starobinski a partir das cadernetas inéditas de Saussure). Justamente porque é feita de "palavras" reveladoras a carta é perigosa e se constitui como "coisa"; sua condição de "coisa", de artefato perigoso, contudo, não é determinada pelo sentido específico das "palavras" que contém - sua existência como "coisa", portanto, está simultaneamente garantida e ameaçada pelo teor das "palavras" que a formam.