terça-feira, 30 de março de 2021

A carta da Rainha


1) Não é por acaso que a "carta roubada" de Edgar Allan Poe (1844) contenha sensíveis segredos de ordem tanto pessoal quanto política (o Ministro rouba a carta do amante da Rainha): como será o caso também com Joseph Conrad algumas décadas depois, a história pessoal se mescla à história nacional/imperial, fazendo com que a dicotomia "público x privado" comece pouco a pouco a se esfarelar (nessa caminho estará também um contemporâneo de Conrad, nascido um ano antes, Sigmund Freud: sua investigação do inconsciente visa problematizar essa mesma naturalização impossível de uma separação entre público e privado). 

2) Muitas dessas linhas de força estão condensadas naquilo que Ricardo Piglia chamou de "teoria do complô", passando por Borges e Roberto Arlt: a literatura força sempre diante do real uma narração alternativa, desviada e desviante, levando o fingimento à superfície de uma performance que se quer veraz, convincente (uma glosa de Fernando Pessoa: o poeta finge que é dor a dor que deveras sente). A partir da emergência da carta roubada de Poe, a interpretação passa a duvidar da condição imediata do mundo, refazendo permanentemente seus processos e suas escolhas: já não é mais sustentável tomar a realidade das coisas como fato, já não é sustentável acreditar que o que se mostra aos olhos está livre de suspeitas.

3) A cena da carta roubada de Poe (que mesmo abertamente visível insiste em sua invisibilidade; que mesmo acessível de forma até ingênua insiste em sua inacessibilidade) antecipa a clivagem entre as palavras e as coisas que Foucault comentará mais de cem anos depois (por baixo das palavras só existem palavras, como dirá Starobinski a partir das cadernetas inéditas de Saussure). Justamente porque é feita de "palavras" reveladoras a carta é perigosa e se constitui como "coisa"; sua condição de "coisa", de artefato perigoso, contudo, não é determinada pelo sentido específico das "palavras" que contém - sua existência como "coisa", portanto, está simultaneamente garantida e ameaçada pelo teor das "palavras" que a formam.   

quinta-feira, 25 de março de 2021

Conceito e doença


1) O "mal de arquivo", forma com a qual Derrida retoma um longo debate (a história da filosofia como história da troca de cartas, mensagens: Platão, Sócrates e o cartão-postal; Sloterdijk lendo Heidegger) sobre a relação entre pensamento e corpo, conceito e doença: no livro sobre Michelet que publica em 1954, Barthes fala desse "comer a História", ou seja, dessa imersão de Michelet nos arquivos, cheirando os mortos, comendo seus resíduos, absorvendo materialmente esses restos (doença adquirida pelo risco do trabalho nos arquivos, algo ligado à frase de Stephen Dedalus no romance de Joyce: History, Stephen said, is a nightmare from which I am trying to awake).

2) Nessa perspectiva, o mal de arquivo é uma doença da possessão, da mescla entre o ser e algo que está para além dele (Carlo Ginzburg, nos vários momentos em que reflete sobre seu encontro com os arquivos - especificamente a figura do moleiro Menocchio -, fala dessa transformação do pesquisador diante do acaso). A reflexão de Derrida nos anos 1990 sobre Freud e o arquivo retoma aspectos da reflexão de quase trinta anos antes sobre Platão e o pharmakon, o veneno-remédio: o principal objeto de Derrida nesse texto é o diálogo Fedro, no qual Sócrates faz uma defesa da possessão como marca de definição do comprometimento do pensador com aquilo que o faz amar o pensamento (é desse "mal" do pensar de que fala Roberto Calasso em A literatura e os deuses; é sobre essa capacidade da possessão de atravessar tempos e espaços de que fala boa parte da obra de Aby Warburg).

3) Quando fala de Michelet em Meta-História, Hayden White ressalta a configuração metafórica que ele propõe da Bastilha, "emblema da velha monarquia", "símbolo da condição irônica em que um 'governo da graça' mostrava sua 'boa índole' concedendo lettres de cachet a favoritos por mero capricho e aos inimigos da justiça por dinheiro". Segundo Michelet, escreve White, o pior crime do velho regime era "condenar homens a uma existência que não era nem vida nem morte", mas um meio-termo entre vida e morte, uma "vida inanimada, enterrada": a Bastilha é um mundo organizado para o esquecimento, para o inorgânico. "A Revolução foi a ressurreição política e moral de tudo de bom e humano 'enterrado' pelo velho regime" (Meta-História, trad. José Laurênio de Melo, Edusp, 2008, p. 166-167).  

segunda-feira, 22 de março de 2021

Memória, registro


1) Quando Derrida fala do "mal de arquivo" nos anos 1990, o faz a partir de uma dupla perspectiva, duas camadas simultâneas e sobrepostas de uma mesma questão: Derrida fala do arquivo físico de Freud - sua casa-museu - e do arquivo intangível de Freud, ou seja, da repercussão de suas ideias, conceitos, teorias (mais especificamente, Derrida condensa as duas camadas ao privilegiar as ideias de Freud sobre o registro e o arquivamento - não apenas o "arquivo-Freud" de forma geral, mas as reflexões do próprio Freud sobre a capacidade da linguagem de registrar/arquivar os processos psíquicos; a capacidade da memória de, ao mesmo tempo, oferecer um acesso aos traços desse arquivo e uma ilusão da possibilidade de tal registro).

2) Nesse último sentido específico, a aventura de Freud espelha, para Derrida, a própria aventura da metafísica - ou seja, o "mal de arquivo", o desejo de sempre encontrar origens, pontos de início, fundações (nesse ponto, a autoridade de Freud como fundador da psicanálise é atravessada pela questão mais ampla da própria "autoridade", aquela responsável pelo princípio de organização do arquivo e de sua acessibilidade). Para Derrida, a psicanálise transforma a relação com o arquivo (não apenas o arquivo da psicanálise, mas a própria pulsão arquivística que marca tanto a memória quanto a linguagem), transformando a abordagem daquilo que pode ser lido mesmo quando é reprimido ou recalcado (pois o arquivo administra tanto a visibilidade quanto a invisibilidade).

3) O mal do arquivo, em outras palavras, é uma espécie de doença do tempo e da história, uma afecção da percepção do tempo e da história. Nesse sentido, a elaboração de Derrida a partir de Freud, do arquivo e da psicanálise é, mais uma vez, uma releitura das ideias (extemporâneas) de Nietzsche sobre a "utilidade" e "desvantagem" do pensamento sobre o passado (não é por acaso que tanto Nietzsche quanto Freud sejam identificados como figuras pioneiras de um discurso que questiona não só os próprios fundamentos, mas a necessidade que o discurso tem de sempre buscar fundamentos). 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Instabilidade do nome


1) Uma história da literatura cujo principal eixo seja a recusa do nome, a transformação do nome como estrutura de fundação de uma obra: antes de decidir por Stendhal, Marie-Henri Beyle tentou outros vários (Bombet, Serpière); Faulkner acrescentou a letra "u" ao nome de família; Freud retirou as letras "is" de seu nome Sigismund; na América Latina, a transformação do nome se articula com a questão do alter-ego, do espelhamento textual diferido de uma presença material, histórica - o caso paradigmático, reforçado com a publicação dos três volumes dos diários, é o de Ricardo Piglia transformado em Emilio Renzi (ele não corta o nome, ele desmembra e recompõe: seu nome completo é Ricardo Emilio Piglia Renzi). Mas o problema é central também em Roberto Bolaño (com Arturo Belano) e com Juan José Saer (com Tomatis ou Pichón Garay).

2) Em Cervantes a instabilidade do nome era uma questão central, começando antes, com o Lazarillo de Tormes (1554), cujo herói é sempre chamado de Lázaro, e não Lazarillo. Três aspectos contribuem para a instabilidade dos nomes na literatura desse período: desatenção dos autores com relação aos nomes que escolhem para os personagens; erro técnicos por parte de compositores nas prensas; percepção geral frouxa da identidade como atributo individual, estável. A esposa de Sancho Pança, por exemplo, no Quixote, recebe vários nomes ao longo da história: Juana Gutiérrez, Mari Gutiérrez, Juana Pança, Teresa Pança e, por fim, Teresa Sancha.

3) Cervantes, no entanto, amplifica o procedimento da instabilidade do nome: a história do Quixote começa quando o homem recusa seu nome cotidiano/social e adota o nome inventado, o nome da sua fantasia de cavaleiro - Alonso Quijano recusa seu nome e se declara Dom Quixote de la Mancha. O feitiço que inaugura a história é possível porque há a mudança de nome, o que é comprovado no final do romance, quando Dom Quixote mais uma vez recusa seu nome-fantasia para retornar ao nome-cotidiano, ou seja, quando antes de morrer ele decide interromper o encantamento, identificando-se como Alonso Quijano (interrompendo a suspensão da descrença que, de resto, torna a própria literatura possível). 

sexta-feira, 12 de março de 2021

Ao redor do inorgânico


1) Quando fala do sex appeal do inorgânico (o fascínio provocado pela morte, pela dissolução, pelo silêncio), Walter Benjamin aponta que o fetichismo (o fascínio por objetos ou detalhes) é seu "nervo vital". Em linhas gerais, Benjamin parte de Marx para refletir sobre o contato do orgânico com o inorgânico, ou ainda, do corpo humano com os objetos que o cercam (o capital inorgânico que absorve, sem descanso, a força vital dos indivíduos). Benjamin também encontra essa ambivalência (o objeto como esfera do uso e como esfera da absorção da energia vital) na poesia de Baudelaire, em seus recortes e seleções, seu cuidadoso desenvolvimento de uma "doença" do olhar poético, uma enfermidade da sensibilidade que, simultaneamente, faz do poeta um ser singular e um ser condenado.

2) Em paralelo à elaboração de Benjamin, Georges Bataille desenvolvia também uma reflexão não só sobre o sex appeal do inorgânico (embora a expressão não seja utilizada por ele), mas também sobre a relação entre objetos, capital e vida pulsional/imaginativa. Essa ambivalência diante do artefato é cultivada por Bataille em uma série de frentes, tanto no espaço do arquivo-museu (seu trabalho com moedas na Bibliothèque Nationale) quanto no espaço de corte e montagem que ele faz nas revistas em que trabalha (Documents, 1929-1930; Minotaure, 1933-1939; Acéphale, 1936-1939). Um dos mistérios investigados por Bataille (fundamental também para a poesia de Baudelaire) diz respeito à ambivalência do objeto, oscilando entre o profano e o sagrado, entre o excepcional e o cotidiano (a faca do sacrifício; o pedaço de vidro que se torna lente).

3) Os pares de olhos posicionados por Sebald no início de Austerlitz podem ser lidos como a representação da fixidez da morte, a rigidez cadavérica, o congelamento do animal empalhado, do corpo embalsamado ou do artefato no museu de cera. Os olhos estão inseridos em uma série de momentos de articulação entre texto e imagem ao longo de sua obra, série na qual Sebald expõe um desdobramento precisamente do sex appeal do inorgânico. Desde o molde de gesso da mão esquerda de Métilde, uma das mulheres por quem Stendhal foi apaixonado, apresentado em Vertigem; passando pelo crânio de Thomas Browne, que teria permanecido exposto no museu do mesmo hospital no qual o narrador se recupera de um colapso, crânio exposto também em Os anéis de Saturno, pouco antes do surgimento na narrativa dessa imagem, a Lição de anatomia de Rembrandt, que, assim como os olhos em Austerlitz, funcionará como epígrafe visual que dará o tom do restante da narrativa. 

domingo, 7 de março de 2021

A estátua


1) Em 1928, Walter Benjamin resenha um livro de Karl Blossfeldt, Formas originárias da arte: imagens fotográficas de plantas, um álbum com 120 imagens aproximadas de plantas, um procedimento de repetição e estranhamento que gera uma narrativa que Benjamin qualifica de “frutífera e dialética oposição à invenção”. Essa fixidez da imagem das plantas vai reaparecer no Livro das passagens, que Benjamin começa a desenvolver (e coletar material) no ano anterior, 1927. Logo no início ele fala do "sex appeal do inorgânico", indicando que o nascimento de algo novo entre coisas antigas é o “legítimo espetáculo dialético”. 

2) O conto de inverno, de Shakespeare (The Winter's Tale, primeira performance em 11 de maio de 1611), é uma história de ciúme: Leontes suspeita que Hermíone o trai com o melhor amigo, Polixeno; ordena a morte da mulher e do suposto fruto da relação, Perdita; ambas são salvas, Hermíone sendo levada para um esconderijo pela amiga Paulina, e retornando no final da peça, cerca de dezesseis anos depois de seu desaparecimento. No desfecho da peça, convencido da inocência da esposa, Leontes é levado a uma galeria de maravilhas na qual está a estátua de Hermíone - uma estátua que se revela como a própria mulher.

3) Com o "espetáculo dialético" da mulher que se transforma em estátua para se transformar em mulher, Shakespeare acessa também o "sex appeal do inorgânico", o fascínio diante de algo que, mesmo morto, dá a ilusão da vida (algo que Benjamin encontra também na caveira do barroco). Além disso, a estátua que ganha vida é uma estratégia intertextual da parte de Shakespeare: evoca tanto as metamorfoses de Ovídio quanto o legado do Romance da Rosa; faz pensar também na versão do mito de Helena de Troia (uma estátua teria sido raptada, e não a mulher) que Shakespeare conhecia através de Eurípides (o ciúme de Leontes, por exemplo, é análogo ao de Menelau). O sex appeal do inorgânico na peça de Shakespeare serve a um procedimento típico de sua poética: a revelação se dá dentro de um espaço de representação, uma "peça dentro da peça", uma cena teatral em miniatura.