quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Ignauré, Ignorância, 1

Howard Bloch também escreve, em Misoginia medieval

Deseje-se a dama inatingível ou a Santa Virgem, o objeto do desejo está sempre ausente para que o desejo se fixe nele. (p. 189). 

Outro desdobramento teórico que pode ser feito a partir do contato entre a cena medieval da poesia cortês e a cena intelectual do século XX leva em direção às ideias de Maurice Blanchot acerca da literatura e de seu "direito de morte", ou ainda, a tendência da literatura de se encaminhar ao silêncio e ao autocancelamento - estratégia que culmina em sua renovação, sua potencialização (é possível pensar nas obras correlatas de Enrique Vila-Matas sobre o tema, Bartleby e companhia e O mal de Montano, este último romance inclusive levando como epígrafe uma frase de Blanchot). A literatura (para Blanchot, mas também para Kafka, p.ex.) recusa seu espaço justamente em seu momento de reivindicação, de ocupação majoritária do imaginário, do cenário ou função social. 
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O objeto do desejo está sempre ausente para que o desejo se fixe nele: é exatamente o que vai dizer Alexandre Kojève em sua Introdução à leitura de Hegel: "o desejo é o desejo do outro". Kojève deixa a Alemanha durante a ascensão do nazismo e sucede Koyré na École Pratique des Hautes Études, em Paris. Ali, de janeiro de 1933 a maio de 1939, apresenta seu curso sobre Hegel, pelo qual passaram Raymond Aron, Georges Bataille, Pierre Klossowski, Jacques Lacan, Maurice Merleau-Ponty, Raymond Queneau, Eric Weil, e esporadicamente, André Breton.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Ignauré, Ignorância

Em determinado ponto de seu livro Misoginia medieval, Howard Bloch comenta um poema medieval de Renaud de Beaujeu, o "Lai d'Ignauré". Ignauré é um conquistador que tem doze amantes - esposas dos doze maiores pares da Bretanha. Ignauré é "o objeto do desejo universal apenas porque ele próprio é a corporificação da voz poética, as mulheres chamavam-no o Rouxinol, diz o poema", escreve Bloch, e continua: 

"Isto novamente sugere não só que a poesia parece menos meramente expressar do que engendrar o desejo sexual - de modo que o lai excita exatamente aquilo que sua lição de moral parece reprimir - mas também que o "Lai d'Ignauré" é uma alegoria da ignorância não sem parentesco com a alegoria da virgindade que vimos anteriormente. O conto não é simplesmente o registro inocente de um drama de revelação, denúncia e morte; a violência e o fatalismo que o assombram e são o seu tema estão em última instância ligados, na concepção medieval, a uma voz poética que revela o que finge ocultar em silêncio. O poeta não pode falar sem transgredir a discrição que ele ou ela prescreve; não pode falar sem contar o relato que ele ou ela supostamente ignora; não pode quebrar o silêncio, em outras palavras, sem quebrar um pacto implícito com a Ignorância, sem revelar o segredo. Este é o segredo do texto: o de que não pode contar sua história sem transformar algo universal e abstrato, como a Ideia da ignorância, em algo particular e concreto; que o conto não ser narrado sem sacrifício; que o texto, através da escrita, sempre silencia uma voz ou, como em numerosos exemplos medievais, mata o rouxinol"

(R. Howard Bloch, Misoginia medieval e a invenção do amor romântico ocidental, trad. Claudia Moraes, Ed. 34, 1995, p. 162)
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O comentário de Howard Bloch da poesia medieval faz pensar em uma série de elementos da paisagem teórica do século XX. A ideia medieval do verso como uma ferramenta dupla - que tanto conta uma história como chama atenção para sua própria emergência - é análoga à estratégia modernista de ruptura da forma, de atenção maníaca aos processos da linguagem (desde Chklóvski e os formalistas russos até Nabokov, Joyce ou Pound). Borges escreve que duvida que Funes fosse capaz de pensar - uma vez que pensar é abstrair, esquecer os detalhes, generalizar. Como alcançar a medida na analogia? Talvez não seja possível - como no caso, entre tantos possíveis, das relações assimétricas entre a poesia medieval (tal como lida por Howard Bloch) e o cenário teórico do século XX. Em vários momentos, ao falar da misoginia ou da noção de verdade e virgindade, Bloch traça um cenário de aporia - o esforço medieval de dar conta de contrários, de opostos, sem resolução (a novidade do cristianismo, escreve ele, é justamente a de manter em paralelo, sem resolução, a ideia de mulher como "Esposa de Cristo" e "Portão do Diabo"). A aporia é o caminho que leva de Nietzsche a Heidegger e deste a Derrida e Giorgio Agamben.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Artista, objeto

"Abelardo escreveu ao filho Astralábio que os que morrem vivem, todavia, na obra dos poetas; outros textos estão repletos de notações sobre como eram considerados poetas e artistas. Mas as formas com que a Idade Média manifesta essa consideração atingem, frequentemente, os limites da comicidade, como no episódio dos monges da abadia de Saint-Ruf, que, numa noite, raptaram um jovenzinho muito perito na arte da pintura (guardado pelos cônegos de Notre-Dame-des-Doms, em Avignon). Nesse tipo de fato, nota-se uma implícita subestimação instrumental do trabalho artístico, um entendimento do artista como objeto de uso e de troca. Episódios como esse reafirmam, sem dúvida, a imagem do artista medieval voltado para os serviços humildes da comunidade e da fé, diferentemente do artista da renascença, que tem muito orgulho da própria individualidade" (Umberto Eco, Arte e beleza na estética medieval, trad. Mario Sabino, Record, 2010, p. 238-239).

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1) Um trecho como esse mostra que não há fronteira histórica clara marcando a passagem do artista coletivo (respondendo a um conjunto de procedimentos compartilhados, cujo nome próprio é uma simples contingência) para o artista individual (mesmo no Renascimento os grandes artistas usavam o trabalho de outros artistas, anônimos, em seus ateliês). 
2) O rapto do pintor medieval, relatado por Eco, faz pensar, contudo, na relação entre arte e poder - poder político, poder bélico. De um lado, por exemplo, Napoleão e sua expedição ao Egito - espécie de ponto-padrão do imperialismo/orientalismo, para Edward Said -, na qual certamente se percebe um entendimento do artista como objeto de uso e de troca; de outro lado, o realismo socialista que Stálin prolonga e reforça, e os efeitos dessa outra objetificação do artista em escritores tão diversos como Isaac Bábel, Chklóvski ou Lukács. 
3) Um dos capítulos da Sinagoga dos iconoclastas, de Juan Rodolfo Wilcock, é também um comentário enviesado a essa situação ambígua do artista: conta a história de uma fábrica de romances, uma engenhoca monstruosa alimentada e manipulada por funcionários com o intuito de produzir romances em série durante o século XIX (Wilcock mistura aqui Balzac (1799-1850) e a surreal história da Patrologia Latina de Jacques Paul Migne (1800-1875)). Não é esse também o projeto, igualmente irônico e megalomaníaco, de César Aira? 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Rabelais, Montaigne

1) No capítulo 11 de Mimesis, Auerbach comenta a obra de Rabelais, alcançando quase ao final do texto um ponto de comparação com Montaigne (que será o foco do capítulo seguinte). Entre outros elementos envolvidos, o processo interpretativo de Auerbach abarca uma reflexão sobre o que acontece no período que vai de Dante a Rabelais/Montaigne - ou seja, o que acontece do ponto no qual a cultura medieval alcança seu clímax (a ligação estreita entre a vida terrenal e a vida metafísica, a organização metódica dos níveis, intensidades e qualidades dos sentidos, sentimentos e responsabilidades) até o ponto no qual essa cultura ainda é utilizada, mas de forma ambivalente, caótica e desregrada (a partir daquilo que Auerbach chama de realismo criatural).
2) Montaigne, 1533-1592; Rabelais, 1494-1553... No capítulo 10 de Mimesis, sobre Antoine de la Sale (1386-1462), Auerbach faz um juízo muito direto acerca das diferenças das literaturas da França e da Itália - a última já mostrando alto nível técnico-expressivo com Dante (1265-1321) e Boccaccio (1313-1375), enquanto a primeira ainda guarda certo ar medieval engessado. A própria ênfase que Auerbach dá a Rabelais e Montaigne já indica que ocorre uma mudança, tanto histórica quanto estilística, embora Auerbach não dê detalhes acerca dessa mudança de ênfase - no capítulo 13 de Mimesis, dedicado a Montaigne, Auerbach fala apenas que a Itália do período se dedicava cada vez mais a um retorno ao ideal clássico de separação dos estilos (algo completamente avesso a Rabelais/Montaigne e ao projeto do próprio Auerbach).
3) Bruno Migliorini, em sua Storia della lingua italiana (Sansoni, Firenze, 1971, p. 240), comenta esse período italiano vagamente referido por Auerbach falando de uma "crise quattrocentesca". A deriva em direção à língua vulgar é interrompida e surge um interesse renovado pelo latim clássico, com uma expansão inaudita da filologia a partir do resgate, leitura, interpretação e tradução de uma série de textos antigos (Coluccio Salutati (1332-1406) descobre as cartas de Cícero; Poggio Bracciolini (1380-1459) descobre Quintiliano e Lucrécio; é também a época de atuação de Lorenzo Valla).          

sábado, 12 de janeiro de 2019

Polifonia satírica

1) Em um ensaio de 1999 sobre Karl Kraus, "Otro pudor de la Historia" (reunido em El pase del testigo, Sudamericana, 2000), Edgardo Cozarinsky comenta a criação da revista de Kraus, Die Fackel. Não só um comentário acerca da revista e suas condições de produção, mas especialmente um comentário acerca do estilo e da capacidade de trabalho de Kraus. Cozarinsky aponta algo muito acertado acerca da visão de mundo de Kraus (algo que aparecerá também nos diários do contemporâneo Victor Klemperer): antes do político e do estético, existe a linguagem, o uso da linguagem; toda aberração política e estética, para Kraus, decorre de um uso estúpido da linguagem (conforme também a intuição do último Flaubert e seu dicionário de ideias feitas).
2) Há pelo menos um efeito de longo prazo nessa preocupação de Kraus com a linguagem, escreve Cozarinsky: o pensamento de Ludwig Wittgenstein - nascido em 1889, Wittgenstein cresce lendo a revista de Kraus, publicada de 1899 a 1936. Forma e conteúdo são indissociáveis na poética filosófica de Wittgenstein, assim como foram na produção intelectual de Kraus. Wittgenstein dá forma filosófica às intuições de Kraus, fazendo uso do aforismo e do paradoxo.  
3) Assim como Flaubert, Kraus tinha o dom de capturar a estupidez no discurso alheio, especialmente aquele de ampla circulação - jornais, espetáculos populares, populismo político. Esse ouvido apurado é posto em atividade máxima na escrita de sua última obra, a peça teatral de 700 páginas Os últimos dias da humanidade. "Sua técnica de citar discursos, editoriais e declarações públicas", escreve Cozarinsky, "em uma espécie de polifonia satírica não deixou indiferente, por exemplo, o jovem Brecht" (é justamente ao longo da década de 1930 que Bakhtin aprimora sua concepção de polifonia a partir de Dostoiévski - mas também Rabelais, por exemplo).