segunda-feira, 30 de abril de 2018

Imagem, palavra, ação

Sala elíptica, Hamburgo 1926-1933
1) Fritz Saxl tinha a intenção de contratar ou Le Corbusier ou Gropius para o projeto da nova Biblioteca Warburg em Hamburgo. O projeto, contudo, foi de Gerhard Langmaack. Segundo Edgar Wind (The eloquence of symbols, Oxford, 1983, p. 110), a forma elipsóide da sala principal da biblioteca teria sido determinada por Warburg, "em memória da troca esclarecedora de ideias que eles (Warburg e Cassirer) haviam tido nessa ocasião", ou seja, quando Cassirer foi visitá-lo na clínica psiquiátrica em Kreuzlingen, com referência à significação cosmológica da elipse.
2) Depois da morte de Warburg, em 1929, Saxl publica um artigo sobre a Biblioteca no qual esclarece o objetivo desse instituto de pesquisa (o estudo de um problema, o da sobrevivência do antigo), mas propondo outro ponto de vista: a sobrevivência do antigo torna-se o campo de experimentação através do qual é possível estudar o jogo das constantes/variáveis na memória coletiva da humanidade. Nessa perspectiva, todos os campos do saber estão ligados por um substrato arcaico comum: a reflexão do indivíduo sobre ele próprio e sobre o mundo, no mesmo momento em que faz penosamente emergir a química do casulo da alquimia, a ciência do casulo da magia, produz ideias filosóficas, que são como o destilado e o ponto de ancoragem desse processo.  
3) A sala elíptica é destinada a servir tanto de sala de leitura quanto de anfiteatro para as conferências. Os livros são organizados em quatro níveis, nos quatro andares do prédio. Cada nível corresponde a uma ideia-chave do pensamento de Warburg: Orientierung, Bild, Wort, Handlung - Orientação, Imagem, Palavra, Ação (a última, contudo, é complexa: às vezes aparece como Drômenon, expressão que vem da linguagem grega dos mistérios, em particular os de Elêusis; os textos antigos distinguem "o que é mostrado" durante os ritos, deiknumenon, "o que é dito", legomenon, e "o que é feito, cumprido", drômenon. O jogo consistiu provavelmente em fazer alusão a Bild e a Wort pela evocação implícita do que é "mostrado" e do que é "dito"). 

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Vodu de Paris

1) Relendo París no se acaba nunca, de Enrique Vila-Matas, reencontro a passagem na qual o narrador lê o livro de Edgardo Cozarinsky, Vodu urbano. A leitura que faz Vila-Matas desse livro específico de Cozarinsky só vai acontecer mais tarde, na década de 1980 - pois o curso temporal padrão de París no se acaba nunca corresponde aos dois anos (1974-1976) que o narrador de Vila-Matas mora em Paris. Nesse período ele também lê Cozarinsky, o livro sobre o chiste e seus ensaios sobre Borges e o cinema.  
2) Retrospectivamente, porém, escreve o narrador de Vila-Matas, Vodu urbano ilumina e esclarece certos procedimentos que circulavam no ar da década de 1970 mas que não eram definíveis ou definidos. "Cozarinsky parece ter levado bastante a sério", escreve Vila-Matas, "aquilo que dizia Godard sobre fazer filmes de ficção que fossem documentais e documentários que fosse como filmes de ficção. Vodu urbano parecia composto de narrações que eram como ensaios e ensaios que eram como narrações".
3) Vila-Matas defende a ideia que tanto ele quanto Cozarinsky beberam da mesma fonte, que é Godard (e também Borges, considerando outras seções de París no se acaba nunca nas quais Cozarinsky é associado a ele). A ideia do original que se arma a partir de um arranjo de citações, a própria noção do original como ficção de base, como irônico ponto de passagem em direção ao literário pensado como artefato a ser utilizado, e não essência a ser moldada. O que é interessante de observar é essa rápida cartografia que Vila-Matas apresenta em París, que fica um pouco obscurecida pelo tom rápido e despreocupado das memórias de Paris (ou seja, a cartografia que aproxima Godard de Borges e posiciona Cozarinsky como disseminador dessa "poética estrábica", como fala Alan Pauls em El factor Borges).  

terça-feira, 17 de abril de 2018

A máquina de escrever

Sam Messer
Quando um escritor recorre a uma língua diversa de sua língua materna, ele o faz por necessidade, como Conrad, ou devido a uma ambição ardorosa, como Nabokov, ou ainda para obter um maior distanciamento, como Beckett. Pertencendo a uma estirpe diferente, no verão de 1977, em Nova York, depois de viver cinco anos neste país, entrei numa pequena loja de máquinas de escrever da Sexta Avenida e comprei uma Lettera 22 portátil, passando a escrever (ensaios, traduções, ocasionalmente um poema) em inglês por uma razão que tinha muito pouco a ver com as mencionadas acima. Minha única finalidade na época, como continua a ser agora, era me sentir mais próximo do homem que considero a maior inteligência do século XX: Wystan Hugh Auden.

(Joseph Brodsky, Menos que um, trad. Sergio Flaksman. Cia das Letras, 1994, p. 129).

*

Três anos e meio depois, voltei para a América. Era julho de 1974, e quando desfiz as malas naquela primeira tarde em Nova York descobri que minha pequena máquina de escrever Hermes tinha sido destruída. A caixa estava quebrada, as teclas estavam retorcidas e não havia esperança de reparo. Eu não podia comprar uma nova. Estava particularmente duro naquela época. Algumas noites depois, jantando com um ex-colega de faculdade, contei a história da destruição da minha máquina de escrever. Ele disse que tinha uma no armário que não usava mais, que havia ganhado de presente de formatura do colégio em 1962. Se eu quisesse comprá-la, ele disse, ele ficaria feliz em vendê-la para mim. Concordamos com o preço de 40 dólares. Era uma Olympia portátil, fabricada na Alemanha Ocidental. Esse país não existe mais, mas desde aquele dia em 1974 cada palavra que escrevi foi datilografada naquela máquina.

(Paul Auster, "The Story of My Typewriter" (julho de 2000), Collected Prose. Picador, 2003, p. 291).

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Leis aduaneiras

1) O trecho da imagem acima pertence ao último livro de Georges Didi-Huberman, Aperçues, uma sorte de coletânea de fragmentos, ou de diário crítico-biográfico, observações em desordem, etc. São breves trechos de reflexões sobre política, história da arte, cinema, sociedade, literatura e mais. Já com Barthes se pensa a linguagem a partir de sua matriz fascista, que obriga a dizer, "a língua é fascista". Um esforço contínuo deve ser feito para confrontar tal natureza, e Didi-Huberman aqui retoma esse topos: quanto mais línguas o trabalho intelectual toca, menor sua tendência totalitária (o exemplo é Warburg, e podemos pensar também em Derrida, Benveniste, Agamben, todos pensadores abundantes em idiomas).  
2) Por conta dessas sincronicidades que costumam acontecer no trabalho do pensamento, o livro que estava lendo imediatamente antes de encontrar a citação de Didi-Huberman me impressionava por sua estreiteza idiomática. Trata-se de O julgamento de Sócrates, de I. F. Stone, uma veemente acusação daquilo que chama o "antidemocratismo" de Sócrates. Stone relembra muitas vezes seus esforços para aprender grego e poder ler Platão et alii no original, mas tal esforço é inexistente em direção a outros idiomas e principalmente outras bibliografias. Toda sua bibliografia é em inglês, un seul idiome, como escreve Didi-Huberman acima.
3) Até que ponto a ideia de "pensar entre múltiplas línguas", que Didi-Huberman pesca em Warburg, pode ser também uma ideia socrática? Não idiomas, mas certamente idioletos - Sócrates sempre absorvia essas variações da língua única dos sujeitos, usando e remontando as próprias palavras dos interlocutores. Algo que me faz pensar de imediato em Derrida e seu Limited Inc, de 1988: feito a partir da crítica que John Searle escreveu a respeito da interpretação de Derrida da obra de Austin; como Searle não autorizou a reprodução e republicação de seu ensaio, Derrida absorve sua argumentação com citações, incluindo quase a íntegra do texto de Searle no interior de sua argumentação.