quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O discurso amoroso

1) Ontem, olhando o mar, pensei na recorrência desse momento enigmático em que interior e exterior se mesclam em um dado ponto arbitrário do tempo e do espaço. Em De amor e trevas, Amós Oz fala dos dez a quinze minutos que passa por dia caminhando em direção ao deserto, não para vê-lo ou vivenciá-lo diretamente, por si, mas "para manter a perspectiva da eternidade"; ou, talvez, para testar e comprovar que ainda tem a capacidade de extrair sentido, anos a fio, de uma mesma paisagem - mostrando com isso que a paisagem se transforma em direta relação com a carga de pathos que o artista leva em seu olhar. 
2) Nas primeiras páginas de O que vemos, o que nos olha, Didi-Huberman resgata um trecho do Ulisses de Joyce: Stephen Dedalus olha o mar e o mar lhe devolve uma lembrança - como se tivesse sido preciso fechar os olhos de sua mãe para que sua mãe começasse a olhá-lo verdadeiramente, escreve Didi-Huberman. Stephen Dedalus diante do mar - e diante do mar não se pode confiar nos sentidos (a cor da água se transforma, os sons perdem a profundidade), mas talvez seja o caso de confiar nessa particular articulação entre sentidos e imaginação (ou ainda, a articulação entre o treinamento dos sentidos - a capacidade de ler os elementos - e a carga de pathos que o indivíduo carrega consigo e que, ao mesmo tempo, mostra a ele que parte da equação do sentido sempre escapa ao controle). Homero cego diante do mar, contando o bater das ondas, calculando a maré. A frota de Agamenon e todos os signos que o mar leva àquele que sabe ver: pedaços de madeira, vegetação - a terra firme está próxima. 
3) A carga de pathos que ao mesmo tempo interfere no e potencializa o treinamento dos sentidos é amorfa e fluida, oscila no tempo e no espaço em múltiplas e simultâneas posições - una esfera infinita, cuyo centro está en todas partes y la circunferencia en ninguna, como escreve Borges sobre Pascal. O pathos, sendo paixão e excesso, se cristaliza eventualmente naquilo que Barthes chama "discurso amoroso" (e note o caráter fugidio da matéria: ele só pode ser apreendido em "fragmentos", e esse discurso só pode ser "um discurso", Fragmentos de um discurso amoroso (1977), um entre vários, na oscilação da linguagem e consequentemente do inconsciente, já que Lacan também dizia - no seminário 11 - que o inconsciente se estrutura como uma linguagem, não a linguagem, mas uma linguagem, como um discurso amoroso). A carga de paixão com que se olha o mar (ou o deserto, ou a página de um livro) é tanto o que desafia quanto o que legitima o treinamento - ou, como escreve Barthes, "forças das estruturas: talvez seja isso o que nelas desejamos" (Fragmentos de um discurso amoroso, trad. Márcia Valéria de Aguiar, Martins Fontes, 2003, p. 172). Não é justamente o que se vê no mar revolto do poema de Bolaño/Cesárea Tinajero?   

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Cocteau, Brecht

Uma passagem no Diário de trabalho de Brecht me faz pensar na morte de Proust, em sua foto com barba e o esforço de Jean Cocteau de fabular a respeito. Brecht escreve, em doze de junho de 1940: "Cocteau insiste em que a ideia de camuflar os tanques veio de Picasso, que sugeriu isso a um ministro de guerra francês antes da Grande Guerra como meio de tornar os soldados invisíveis. Cocteau também imagina que os selvagens pintam a pele não tanto para se mostrarem ameaçadores, mas principalmente para ficarem invisíveis. Essa é uma boa ideia. A gente torna as coisas invisíveis destruindo-lhes a forma, dando-lhes uma forma inesperada, fazendo com que fiquem, por assim dizer, não indistinguíveis mas ao mesmo tempo impressionantes e estranhas" (Diário de trabalho: Volume I, 1938-1941. Trad. Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 72). Interessante como Brecht faz da fábula de Cocteau um meio para aprofundar suas questões, seu problemas - especialmente esse da forma e do formalismo, centro do seu desacordo com Lukács e centro também do seu posicionamento dentro das "vanguardas" e a partir das "vanguardas". Brecht vai escrever em 16 de outubro do mesmo ano: "querer o novo é antiquado, o que é novo é querer o velho" (p. 134).  

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Hegel e a citação

Johann Karl Friedrich Rosenkranz
De acordo com seu biógrafo e amigo Karl Rosenkranz, Hegel extraía excertos dos livros que lia, durante toda a sua vida, da seguinte maneira: tudo que lhe parecia digno de nota era escrito numa folha solta de papel, em cujo cabeçalho ele assinalava o assunto geral em que aquele conteúdo específico teria de ser inserido. As folhas eram arrumadas em ordem alfabética e, mediante esse recurso simples, ele conseguia usar constantemente os seus excertos. Apagando as referências bibliográficas, esses cartões de anotações de Hegel constituíam um arquivo de conhecimentos que permitia uma recuperação simples das informações, ao mesmo tempo que ocultava suas fontes. A Fenomenologia do espírito é um livro sem notas de rodapé. Até Kant só é nominalmente mencionado uma vez, de passagem. A Enciclopédia das ciências filosóficas contém um pequeno número de notas de rodapé, que se referem a livros de outros autores, mas é provável que elas tenham sido acrescentadas pelos editores de Hegel. Como resultado, os empréstimos e apropriações que ele buscou na ciência e no espiritismo de sua época tornam-se predominantemente invisíveis em seus escritos filosóficos.
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Lembro da rememoração que alguns alunos de Sebald fizeram, depois de sua morte, dos cursos de "escrita criativa" que passou a dar depois de se estabelecer como autor reconhecido ("Aparentemente, os dirigentes da universidade pensam que agora tenho algo a dizer a vocês a respeito da matéria", dizia Sebald no começo da primeira aula). Uma das "dicas de escrita" de Sebald era um claro eco do procedimento de Hegel, que Sebald provavelmente conhecia: "só posso dizer a vocês, roubem o máximo que puderem. Ninguém vai notar. Vocês devem manter um caderno de anotações, lançando aí citações, mas não indicando as fontes. Um tempo depois, vocês voltarão ao caderno e poderão tratar o material como sendo de vocês, sem culpa".

sábado, 5 de novembro de 2016

Leitores de Puig

Existe uma coincidência interessante nos diários de Susan Sontag e Ricardo Piglia, uma coincidência dupla, que envolve tanto Edgardo Cozarinsky quanto Manuel Puig. Em 21 de novembro de 1966, Emilio Renzi anota em seu diário, no primeiro volume de seus diários:
Ayer con Beatriz Guido, siempre estrambótica y divertida. Vertiginosa en su casa barroca, muebles antiguos y conversaciones circulares. Estaba Edgardo Cozarinsky, que me pasó el original de una novela de Manuel Puig (p. 268).
No ano seguinte, 1967, em 28 de junho, Emilio Renzi volta ao tema e ao local:
El domingo en la casa de Beatriz Guido conozco a Juan Manuel Puig, autor de una novela que Edgardo Cozarinsky me había conseguido (Los diarios de Emilio Renzi, Años de formación, Anagrama, 2015, p. 320).
(Não deixa de ser digno de nota que essa espécie de história subterrânea da leitura da obra de Puig envolva Cozarinsky, que, com seu Museo del chisme, a partir sobretudo da leitura de Barthes, fez da "anedota", da "curiosidade", elemento historiográfico. Renzi não especifica, mas tem em mãos o original de La traición de Rita Hayworth, que sai primeiro em francês, pela Gallimard, na tradução de Laure Guille-Bataillon, em 1969).

Susan Sontag, por sua vez, em 15 de março de 1975, faz a seguinte anotação (o que vai entre colchetes é um acréscimo do editor);
Peça radiofônica [SS estava colaborando com o escritor e cineasta argentino Edgardo Cozarinsky nesse projeto]:
Carreira de Eva Perón como atriz de rádio
Programa que ela fez - as grandes mulheres na história (Joana d'Arc, Florence Nightingale, Mme. Chang Kai-Chek)
A mãe dela
Termina com ela sendo apresentada a Perón (na época, coronel) numa festa beneficente em favor das vítimas de uma enchente em San Juan (o norte)
Rivalidade com outra atriz, uma estrela de rádio na época, também chamada Eva (p. 423-424).
Dois meses depois, Sontag define Cozarinsky como um "afável amigo maternal". Quatro anos depois, em primeiro de fevereiro de 1979, Sontag escreve:
Linguagem como um objeto encontrado: [o escritor argentino Manuel] Puig. Ele não consegue criar sua linguagem própria. É tudo encontrado. Ele é um mímico extraordinário - converteu sua dívida como escritor num sistema (Diários II, trad. Rubens Figueiredo, Cia das Letras, 2016, p. 534).
Será Puig uma indicação de leitura de Cozarinsky, assim como havia feito com Piglia quase 10 anos antes? (em 1971 La traición de Rita Hayworth aparece em inglês como Betrayed by Rita Hayworth, traduzido por Suzanne Jill Levine).