terça-feira, 12 de agosto de 2014

Alma e visão

Van Gogh, Ressurreição de Lázaro, 1889-90
1) Para a imaginação medieval, atingir os olhos equivale a atingir a alma. Como no caso da visão de Túndalo, comentada por Borges no Livro dos seres imaginários, sua visita aos Infernos motivou sua transformação e seu desejo de registrar tal transformação. Dois eventos bíblicos vão aí condensados - e serão intensamente comentados, glosados e retrabalhados: a queda de Paulo no caminho de Damasco, cegado pelo brilho divino, e a volta de Lázaro do mundo dos mortos, ressuscitado por Jesus (João, 11; 1-46 - perceba como Jesus, deliberadamente, demora para visitar Lázaro, esperando sua morte para que possa realizar o milagre).
2) A relação entre alma e visão é bastante evidente no trovadorismo galego-português (influenciado pelo trovadorismo da Provença, que teria sido a região na qual Lázaro se estabeleceu depois da ressurreição). Aquele que não vê, não pode amar; a cegueira é um obstáculo para o amor, reza o Tratado do amor cortês. Porém, em certos casos, é precisamente essa distância, essa visão interrompida, que garante a manutenção do amor (um motivo que reverbera na Beatriz de Dante, na Dulcinéia de Cervantes). 
A que tenh'eu por lume d'estes olhos meus
e por que choran sempr', amostrade-mh-a, Deus
se non dade-mh-a morte (Bernal de Bonaval, p. 11).

Quando parti de onde parti,
logo privei aquestes meus
olhos de veer, e, par Deus,
quanto ben avia perdí;
ca meu ben tod'era en veer,
e mays vos ar quero dizer:
embora veja, nunca outra vez vi (João Garcia de Guilhade, p. 27, adaptado).

Fremosos cantares: antologia da lírica medieval galego-portuguesa. Lênia Mongelli (org.). WMF Martins Fontes, 2009.
3) O comentário de Mongelli segue assim: "A relação analógica entre mundo profano e mundo sagrado assoma quando a voz lírica reconhece a perda do bem como diretamente proporcional à perda do lume / luz, imagem religiosa de forte ascendência bíblica, comum, por exemplo, em textos hagiográficos - vale a pena lembrar o que diz Isidoro de Sevilha nas Etimologias: 'entre todos os sentidos, o da vista é o que está mais próximo da alma; nos olhos se evidencia a turvação ou a alegria do espírito. Por isso são denominados também lumina, porque deles emana a luz (lumen)" (p. 29). A ironia da cegueira de Borges certamente não passou desapercebida pelo próprio.  

sábado, 9 de agosto de 2014

Aqueronte

Visio Tnugdali, edição alemã, xilogravura de 1514
1) Quando fala do Aqueronte, no Livro dos seres imaginários, Borges sublinha o tema da "viagem vertical", da viagem às profundezas, o esquema vertical de revelação, de contato entre sagrado e profano, que ganhou sua realização máxima com a Comédia de Dante. A associação não é fortuita, pois o texto citado por Borges em seu verbete, A visão de Túndalo, do século XII, relato de uma visita aos Infernos, teria sido um dos textos-base para Dante - "Túndalo era um jovem cavaleiro irlandês, educado e valente", escreve Borges, que "adoeceu e durante três dias e três noites foi dado por morto. Quando voltou a si, contou que o anjo da guarda lhe mostrara as regiões ultraterrenas" (p. 151).
2) Em seu livro sobre Rabelais, Bakhtin também comenta a Visão de Túndalo, ressaltando sua importância não apenas para Dante e Rabelais, mas para todo o contexto literário da Idade Média - a Visio Tnugdali, de Tnugdalus, ou Tundulus, ou ainda Tondolus, e também Tundale, e na versão francesa, Les Visions du chevalier Tondal. Bakhtin comenta que a verticalidade inerente ao tema da visita às profundezas é muito mais do que um artifício retórico, é uma visão de mundo. Essa concepção espacial do mundo é ainda bastante ambivalente em Túndalo, argumenta Bakhtin, mas aquilo que em Dante é resolvido como hierarquia e rigidez, em Rabelais transforma-se em anarquia celebratória.
3) Bakhtin escreve que isso ocorre porque Rabelais é o primeiro a mesclar a verticalidade da concepção de mundo da Idade Média com a horizontalidade da cultura popular. Mais do que isso, Rabelais utiliza a verticalidade não como um indício de hierarquia, mas como uma via de troca e contato entre o alto e o baixo (assim como a morte já não assusta, passa a ser celebrada como parte da vida). "Na época de Rabelais", escreve Bakhtin, "o mundo hierárquico da Idade Média ruía. O modelo do mundo unilateralmente vertical, extratemporal, com o seu alto e o seu baixo absolutos, estava em plena desorganização. Um novo modelo começa a reformar-se, no qual o papel dominante passava às linhas horizontais, ao movimento para frente no espaço real e no tempo histórico" (A cultura popular ... O contexto de Rabelais. Trad. Y. F. Vieira, Hucitec, 2010, p. 353).    

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Contágio

1) O Livro dos seres imaginários de Borges é um livro sobre livros, um livro que se refrata em múltiplas posições simultâneas, descontínuo - elementos heterogêneos postos em contato (Lewis, Homero, Hsao H'sie, Confúcio, Martínez Estrada) como num experimento que não chega a lugar algum, que gira em falso (algo que Borges fez também em suas antologias). 

2) Nesse Livro, Borges faz do contágio tanto uma imagem, uma ilustração (naquilo que diz respeito à combinação de elementos que torna possíveis os seres imaginários), quanto um procedimento literário, um método de questionamento da tradição. Em breves frases, Borges tenta dar conta do processo que leva de uma imagem arcaica a uma imagem mais recente de um mesmo mito ou ser - "poucos mitos serão tão difundidos quanto o da fênix", escreve ele, por exemplo, falando de Heródoto, Tácito, Plínio, Ovídio, Dante, Shakespeare, Pellicer, Quevedo e Milton. Mas esse é um contágio superficial, referencial, que é, no entanto, aprofundado em certos verbetes, e aprofundado a partir dos próprios elementos imaginários postos em ação: a Hidra teve seu tempo e seu terror, mas sobrevive nas "flechas que Hércules molhou" em seu fel (p. 120); um caranguejo, amigo da Hidra, é esmagado por Hércules, mas Juno o faz subir aos céus, "onde hoje é a constelação e o signo de Câncer" (p. 121); a visão de Ezequiel ("quatro animais ou anjos") será decomposta nos emblemas dos quatro evangelistas (p. 114-115); o mito da salamandra "o desse animal esquecido", a pyrausta, "que vive dentro do fogo das fundições de Chipre", relatado no livro XI da História de Plínio.

3) O contágio é também uma transformação consciente, um deliberado enfrentamento com a tradição - como no verbete sobre os "monóculos", aqueles que possuem apenas um olho. "Num soneto redigido no início do século XVII", escreve Borges, "Góngora se referiu ao 'monóculo galanteador da Galatéia'", referindo-se a Polifemo e nesse ponto Borges cita os versos de Góngora. "Esses versos", comenta Borges, "exageram e debilitam outros, do livro III da Eneida (louvados por Quintiliano), que por sua vez exageram e debilitam outros do livro IX da Odisséia. Esse declínio literário corresponde a um declínio da fé poética; Virgílio quer impressionar com seu Polifemo, mas quase não acredita nele, e Góngora só acredita no que é verbal ou nos artifícios verbais" (p. 149-150).
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Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, O livro dos seres imaginários. Tradução de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.