quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Ecologismo

Na página 32 de Primeiro como tragédia, depois como farsa, Slavoj Zizek cita José María Aznar, e este escreve que o movimento ecológico é o comunismo do século XXI: pela conta de Aznar, metade do ecologismo é "anticapitalista" e sua outra metade se divide em duas partes: a primeira, racional, se ocupa de soluções técnicas para problemas verdadeiros; a segunda, mística, revive certa "utopia pagã", de "culto à natureza", um culto "muito mais antigo do que o marxismo", e Aznar escreve que "por isso o ecologismo é tão forte na Alemanha, com sua tradição pagã e naturalista". Chama a atenção, primeiro, essa mistura generalizada de tempos na formação de um fenômeno (o ecologismo) que, muitas vezes, tira sua legitimidade da violência do presente, ou seja, posiciona sua emergência histórica sob o signo do Novo, mascarando sua feição (e sua função) de fantasma - de possibilidade de sobrevivência do paganismo, para dizê-lo com Aby Warburg. O ecologismo é a face negativa da destruição, da mesma forma que, segundo Walter Benjamin, temos o totalitarismo como a face negativa (não em termos de valor, mas em termos de imagem) de uma energia revolucionária desperdiçada.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

1564


18 de fevereiro de 1564: Michelangelo morre em Roma.
18 de fevereiro de 1564: Galileu nasce em Pisa.

Shakespeare nasce no mesmo ano.

Isaac Newton nasce no ano da morte de Galileu.


David Markson. This is not a novel. Counterpoint, 2001, p. 38.

domingo, 23 de outubro de 2011

Leitura e rigor

Nabokov era, sem dúvida, um pavão - na definição de Saer -, mas o rigor de sua leitura crítica é inigualável: mesmo diante de Gógol, um dos escritores que mais admirava, Nabokov conseguia estabelecer limites, delimitando pontos de excelência e pontos de superficialidade. Em uma entrevista para a Paris Review, Nabokov relembra a primeira vez que teve contato com Ulysses, de Joyce: ele diz que foi por volta de 1920, quando estudava em Cambridge e um amigo seu, voltando de Paris, levou uma cópia do livro - juntos, leram trechos do monólogo de Molly, que Nabokov, na entrevista, diz ser the weakest chapter in the book. Somente quinze anos depois é que ele leria o livro integralmente [há, contudo, algo de errado nessa história: Ulysses teve algumas partes publicadas, de março de 1918 a dezembro de 1920, na revista literária norte-americana The Little Review; o amigo de Nabokov pode, talvez, ter levado um exemplar dessa revista, cujo conteúdo fosse um trecho do monólogo de Molly; não poderia ter levado de Paris um exemplar do livro porque Ulysses só foi lançado como livro em fevereiro de 1922, e nessa data o jovem Nabokov era recém-chegado a Berlim, onde sua família estava exilada (o pai de Nabokov foi assassinado em março de 1922)]. Na sequência do comentário sobre Joyce, o entrevistador lhe pergunta sobre a influência de Gógol, e Nabokov responde: I was careful not to learn anything from him. As a teacher, he is dubious and dangerous. E aqui vem o rigor da leitura: At his worst, as in his Ukrainian stuff, he is a worthless writer; at his best, he is incomparable and inimitable. [em paralelo às histórias urbanas, como O Capote e O Nariz, Gógol realizou uma profunda incursão nas lendas e histórias populares da Ucrânia, o que rendeu uma série de histórias, especialmente no início da carreira - todo esse esforço de Gógol é, segundo Nabokov, sua Ukrainian stuff].

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Morte de animais

Escrever sobre a morte de animais tem sido um exercício sistemático da literatura argentina: desde o célebre tigre morto por Facundo, de Sarmiento, e Yzur, de Lugones, até as caçadas sexuais e alimentares dos tadeys em O. Lamborghini [a tradução está "...de tadeys em O. Lamborghini", o que fica completamente sem sentido, já que os tadeys são os "selvagens", como em o território dos tadeys, etc] e as lebres de O desperdício (2007), de Matilde Sanchez, a literatura argentina tem feito dos animais mortos uma matéria recorrente sobre a qual se questionam sentidos [aqui, a tradução coloca um "por sua vez"] estéticos, históricos e políticos. Isso não tem nada a ver com uma especificidade nacional - como se a frequência de animais mortos nas ficções da cultura fosse o índice de uma violência argentina -, mas sim os traços de uma história e de uma política dos corpos, nos quais se exibem certas inflexões e particularidades locais. Nessa história e nessa política, por razões materiais evidentes, os matadouros sempre estiveram presentes: desde o texto clássico de Esteban Echeverría (mas também desde antes, nas cenas de sacrifício de animais no The voyage of the Beagle [que na tradução torna-se Voyage to the Beagle], de Darwin, ou no Lazarillo de ciegos caminantes, por exemplo [autor: Alonso Carrió de la Vandera; não sei porque a tradução manteve Darwin, arqui-conhecido, e não acrescentou o outro autor, mais obscuro]) até a cena da captura do touro fugitivo em Bajo este sol tremendo, novela [romance?] de Carlos Busqued, de 2009 (a qual reproduz a cena do touro do matadouro de Echeverría), passando por uma novela [romance?] de 1927, de título bastante óbvio, Los charcos rojos, de Gonzalez Arrilli, e por La hora de los hornos, o célebre filme de Fernando Solanas, em que uma montagem de imagens de matadouros e imagens publicitárias quer ilustrar a natureza da mercadoria. Os matadouros têm sido uma parte decisiva da paisagem das ficções e escrituras locais: um universo em que se costuram formas, sentidos, visibilidades e relações entre corpos.
*
Gabriel Giorgi. "A vida imprópria. Histórias de matadouros". Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica. Organização de Maria Esther Maciel. Editora da UFSC, 2011, p. 199-220 [a citação está na página 202, e vai aqui com algumas intervenções sobre a tradução - de resto, vale notar essa potência da enumeração, essa potência da série: uma imagem atravessa uma tradição literária e lhe dá um sentido provisório, armado para uma investigação específica, para uma inquietação particular daquele que vasculha o arquivo; neste caso, a imagem do matadouro, que é, na realidade, um feixe de imagens: o animal acuado, o animal agonizante, o animal morto, o gesto do assassino, a ferramenta do ato, a instalação do matadouro, seus galpões e acessos, seus sistemas sobrecarregados de escoamento, etc].

domingo, 16 de outubro de 2011

Sarmiento borgeano

1) Em seus escritos, Sarmiento pratica o que mais tarde seria um dos artifícios preferidos de Borges: as atribuições errôneas. Um exemplo está em uma das epígrafes de Recuerdos de provincia: es éste un cuento que, con aspavientos y gritos, refiere un loco, y que no significa nada. Trata-se de uma tradução muito própria da frase de Macbeth - it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing -, frase que Sarmiento erroneamente coloca na boca de Hamlet. Ou seja, melhor ser príncipe incompreendido do que um assassino mau caráter. Trata-se, afinal de contas, da imagem que Sarmiento promove de si em suas memórias.
2) Mas a mais famosa das atribuições errôneas de Sarmiento está, evidentemente, no Facundo, a biografia que escreveu de seu inimigo, uma figura ao mesmo tempo tão próxima e tão distante, retrato oblíquo do próprio Sarmiento. Em Facundo, portanto, temos a epígrafe - On ne tue point les idées -, a atribuição ao historiador Hippolyte Fortoul (1811-1856), e a tradução delirante: A los hombres se degüella: a las ideas no. A frase é atribuída por Sarmiento a Fortoul apenas no prefácio de Facundo, e muitos já se ocuparam de desmentir a informação: alguns dizem que a frase não é de Fortoul, e sim do conde de Volney (1757-1820) [o primeiro a estabelecer essa correção foi Paul Groussac], outros dizem que a frase, na verdade, é de Diderot, e dão inclusive a citação original: On ne tire pas de coups de fusil aux idées.
3) O curioso é que há uma passagem de Respiração artificial, de Ricardo Piglia, na qual os personagens discutem justamente a feição mentirosa da abertura de um dos textos fundadores da literatura argentina. Eles sabem que não é de Fortoul, supõem que seja de Volney e, finalmente, concluem que não vale a pena averiguar. O que lhes interessa é a ironia da cena: Facundo, texto que inaugura da literatura argentina, inicia por uma citação que, primeiro de tudo, é de um autor estrangeiro e, segundo, é falsa:
La primera página del Facundo: texto fundador de la literatura argentina. Qué hay ahí? dice Renzi. Una frase en francés: así empieza. Como si dijéramos la literatura argentina se inicia con una frase escrita en francés: On ne tue point les idées (aprendida por todos nosotros en la escuela, ya traducida). Como empieza Sarmiento el Facundo? Contando cómo en el momento de iniciar su exilio escribe en francés una consigna. El gesto político no está en el contenido de la frase, o no está solamente ahí. Está, sobre todo, en el hecho de escribirla en francés. Los bárbaros llegan, miran esas letras extranjeras escritas por Sarmiento, no las entienden: necesitan que venga alguien y se las traduzca - el corte entre civilización y barbarie pasa por ahí. Los bárbaros no saben leer en francés, mejor: son bárbaros porque no saben leer en francés. Y Sarmiento se los hace notar: por eso empieza el libro con esa anécdota, está clasísimo. (Ricardo Piglia, Respiración artificial. Seix Barral, 2003, p. 131-132).

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Como lidar com pessoas difíceis, 1

1) E não deixa de ser irônico que todas essas referências um pouco absurdas sejam utilizadas por um sujeito cuja fama é justamente a de ser, ele próprio, um sujeito difícil. Nas excelentes conversas que Zizek tem com Glyn Daly - que saiu como livro: Arriscar o impossível - Conversas com Zizek, pela Martins Fontes -, ele dá algumas pistas sobre suas manias e sobre como suas manias são, no fim das contas, seu próprio método de trabalho: há em meu trabalho um movimento dialético que penso ser semelhante ao de Lacan. O que é muito bom de observar, ao ler Lacan, é como ele usa certo exemplo e depois volta a ele, vez após outra. Há sempre mais num exemplo do que um mero exemplo. Friso a última frase: há sempre mais num exemplo do que um mero exemplo (p. 57). (A ideia de usar sempre o mesmo exemplo é como a imagem de Ruth Orkin fotografando sempre a mesma paisagem, através de sua janela, anos a fio).
2) E sobre a escrita:
Detesto intensamente escrever, não consigo dizer-lhe o quanto. No momento em que chego ao fim de um projeto, vem a ideia de que não consegui realmente dizer o que pretendia, de que preciso de um novo projeto - é um perfeito pesadelo. Mas toda a minha economia da escrita baseia-se, na verdade, num ritual obsessivo para evitar o ato efetivo de escrever. Nunca parto da ideia de que vou escrever algo. Sempre tenho de começar por uma ou duas observações que levam a outros pontos, e assim sucessivamente. (Slavoj Zizek, Glyn Daly. Arriscar o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 56)

3) E sobre suas referências:
Só me permito desfrutar das coisas quando consigo convencer-me de que esse gozo serve para alguma coisa, serve a uma teoria. Por exemplo, não posso desfrutar diretamente de um bom filme policial; só me permito usufruí-lo quando posso dizer: "Certo, talvez eu possa usar isso como exemplo". Assim, vivo sempre nesse estado de tensão: na verdade, ele existe quase que no cotidiano. Sou praticamente incapaz de me comprazer diretamente, ingenuamente, com um filme. Mais cedo ou mais tarde, fico com a consciência pesada, algo assim como "espere aí, tenho de ter uma serventia para isso, usá-lo de algum modo". (p. 58-59).

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Como lidar com pessoas difíceis

1) Uma das coisas mais interessantes de Primeiro como tragédia, depois como farsa, o livro de Slavoj Zizek, é a quantidade de referências que movimenta. Não apenas a quantidade, mas a quantidade aliada à heterogeneidade: é evidente que ele cita Kant, Hegel e Marx (além de Freud, o Apóstolo Paulo e Heidegger), mas, junto desses, articula filmes, textos literários contemporâneos e livros vagamente marqueteiros e de circulação um pouco indefinida, tais como Como lidar com pessoas difíceis, de Lilian Glass (um título, aliás, compartilhado por pelo menos seis livros diferentes), ou Vampiros emocionais: como lidar com pessoas que sugam você, de Albert Bernstein.
2) Em termos narrativos, essas aparições súbitas e inesperadas potencializam a própria eficácia da argumentação de Zizek, dando uma cadência mundana e prática ao pensamento - como diz Vilém Flusser, o pensamento, para ser fluido e penetrante, deve ter seriedade existencial e inseriedade intelectual. Está também envolvido na montagem de Zizek um procedimento de interrogação psicanalítica do mundo: o importante é estar atento aos detalhes banais, renegados, tomados como desimportantes ou corriqueiros; só assim a cena do crime pode ser retomada e, talvez, contar uma história diferente. Os artefatos culturais que Zizek coleta são tomados de forma não-hierárquica, como sintomas de um mesmo trauma (ou de um mesma cadeia de traumas). Daí a junção deliberada de Kung Fu Panda com Mozart.

domingo, 9 de outubro de 2011

Dez razões para escrever

"Como escrever não é uma atividade normativa nem científica, não posso dizer por que nem para que se escreve. Posso apenas enumerar as razões pelas quais imagino escrever:
1) por necessidade de prazer que, como se sabe, não deixa de ter alguma relação com o encantamento erótico;
2) porque a escrita descentra a fala, o indivíduo, a pessoa, realiza um trabalho cuja origem é indiscernível;
3) para pôr em prática um "dom", satisfazer uma atividade instintiva, marcar uma diferença;
4) para ser reconhecido, gratificado, amado, contestado, constatado;
5) para cumprir tarefas ideológicas ou contra-ideológicas;
6) para obedecer às injunções de uma tipologia secreta, de uma distribuição guerreira, de uma avaliação permanente;
7) para satisfazer amigos, irritar inimigos;
8) para contribuir para fissurar o sistema simbólico de nossa sociedade;
9) para produzir sentidos novos, ou seja, forças novas, apoderar-me das coisas de um modo novo, abalar e modificar a subjugação dos sentidos;
10) finalmente, como resultado da multiplicidade e da contradição deliberadas dessas razões, para burlar a ideia, o ídolo, o fetiche da Determinação Única, da Causa (causalidade e "boa causa") e credenciar assim o valor superior de uma atividade pluralista, sem causalidade, finalidade nem generalidade, como o é o próprio texto."
*
Roland Barthes, Corriere della sera, 29 de maio de 1969, publicado em italiano com o título Dieci ragioni per scrivere. In: Barthes, Inéditos, vol. 1, teoria. Martins Fontes, 2004, Tradução de Ivone Benedetti, p. 101-102.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

L'arc, 24

Dois números depois de René Char, era a vez de Nabokov (outra edição que eu gostaria de ter). A capa anuncia um inédito do autor. O índice registra um fragmento de Pale Fire e "Le nuage, le lac, le château", um conto cujo título em inglês é "Cloud, Castle, Lake" (mas que foi escrito originalmente em russo e publicado em 1937 - e pode ser lido aqui). A edição 24 de L'arc conta também com um estudo de Nabokov sobre Gógol (talvez um fragmento da biografia que publicou em 1944), "Notre représentent M. Tchitchikov". Há também um texto de Mary McCarthy sobre Pale Fire e um texto de Robbe-Grillet sobre Lolita ("A noção de itinerário em Lolita"). Essas publicações obscuras têm um ar conspiratório, um sabor de sociedade secreta. As junções às vezes um pouco esquisitas de nomes e trabalhos parecem documentos de um tempo que nunca se resolve plenamente, que fica sempre suspenso. Uma revista obscura parece não encaixar em seu próprio presente, parece ser feita para a descoberta posterior. Há algo de esotérico na raridade de uma revista obscura, algo que percorre simultaneamente sua materialidade (sua diagramação, suas cores, seu formato) e seu conteúdo. Essa potência da publicação artesanal está em toda ficção de Bolaño: a revista obscura é o marco iniciatório de suas conjuras e é também aquilo que permite, no futuro, o rastreamento fanático de artistas há muito desaparecidos. Ainda na edição 24 de L'arc encontramos um sujeito que poderia muito bem estar na seção final de La literatura nazi en América: chama-se Dieter E. Zimmer e publica um ensaio chamado "A Alemanha na obra de Nabokov" ("L’Allemagne dans l’œuvre de Nabokov"), uma das primeiras produções desse jovem professor que irá dedicar boa parte da vida à leitura dos livros do marido de Véra (continua dedicando: consta que Zimmer nasceu em 1934 e vive hoje em Berlim). Em 1978, Zimmer publica um livro sobre Bartleby; em 2001, sai seu primeiro livro inteiramente dedicado a Nabokov: um estudo ilustrado sobre sua relação com as borboletas; em 2006, mais um livro sobre Nabokov: uma fantasia transgenérica sobre uma viagem à Ásia; finalmente, em 2008, Zimmer lança o exaustivo Furação Lolita: informações sobre um romance épico.

domingo, 2 de outubro de 2011

Traduzindo Roth

Estou lendo Zuckerman libertado com o original, Zuckerman unbound, ao lado. O tradutor, Alexandre Hubner, utiliza bem as notas, explicando eventualmente algum termo em iídiche, referências a figuras obscuras como Albert Schweitzer ou Abner "Longy" Zwillman, entre outras miudezas. Há uma passagem, contudo, em que o tradutor optou por realizar o esclarecimento no corpo do texto, como se fossem palavras do próprio narrador:
He dialed the answering service again.
"Rochelle, I'm trying to locate the actress Gayle Gibraltar."
"Lucky girl."
"Do you have some kind of show-business directory there?"
"Got all a man could want here, Mr. Zuckerman. I'll take a look." When she came back on the line, she said, "No Gayle Gibraltar, Mr. Zuckerman. Closest I've got is a Roberta Plymouth. You sure that's her professional and not her real name?"
(Philip Roth, Zuckerman unbound. Vintage, 1995, p. 55)
A versão em português:
Tornou a ligar para o serviço de interceptação de chamadas.
"Rochelle, estou tentando localizar a atriz Gayle Gibraltar."
"Garota de sorte."
"Vocês têm algum tipo de lista telefônica do showbiz?"
"Temos tudo o que um homem pode desejar, Zuckerman. Vou dar uma olhada." Após alguns instantes, Rochelle voltou à linha e disse: "Não encontrei nenhuma Gayle Gibraltar. Com nome de base naval, só temos uma tal de Roberta Plymouth. Tem certeza de que é o nome artístico da moça? Será que não o nome real?"
(Philip Roth, Zuckerman libertado. Companhia das Letras, 2011, p. 172)
Em sua pesquisa para a tradução, Hubner provavelmente foi atrás da razão da telefonista ter aproximado Gibraltar de Plymouth - e deve ter encontrado bases navais com esses nomes. Quem poderia imaginar que uma frase tão rápida e banal poderia encerrar em si tanta decisão e, também, em última instância, um enxerto considerável no texto original (afinal de contas, não foi isso que Roth escreveu - talvez seja algum outro trocadilho, algo que nem passe pela ideia de base naval - além do mais, se Roth não quis explicar a piada, por que o tradutor deveria fazer isso em seu lugar?). Ainda mais tragicamente angustiante é pensar que nenhuma dessas palavras na segunda citação é de Roth, ele não escolheu sequer uma única dessas palavras - ele sequer conhece o significado de qualquer uma dessas palavras.



sábado, 1 de outubro de 2011

L'arc

Tudo começou com um livro de José Emilio Burucúa, Historia, arte, cultura: de Aby Warburg a Carlo Ginzburg. Entre muitas outras coisas, ele menciona o nome do talvez primeiro latino-americano a estudar no Instituto Warburg: o argentino Héctor Ciocchini (1922-2005), amigo e aluno de Ezequiel Martínez Estrada, professor de literatura, poeta, erudito. Na bibliografia do livro, Burucúa cita um artigo que me deixou intrigado: "La parole habitable", publicado por Ciocchini na revista L'arc em 1963. Assim como aconteceu com a revista Existences, que revelou alguns textos do jovem Roland Barthes, passei a sofrer de uma intensa curiosidade com relação à tal revista L'arc. O nome não me era estranho, ainda que a sensação pudesse ser falsa, dado o título tão corriqueiro da publicação - como não pensar em A arca russa, ou na arkhé, a origem, o início, o arquivo. O primeiro número de L'arc saiu em janeiro de 1958; o centésimo (e último) saiu em janeiro de 1986. Dizem que muito de seu fôlego e vitalidade estava no fato de estar longe de Paris: era editada por Stephane Cordier em Aix-en-Provance (6, rue Ancienne Madeleine). A edição de número 22, de 1963, em que Ciocchini publicou seu texto, era dedicada ao poeta René Char, o amigo de Heidegger - que contou também com um texto de Blanchot, "René Char et la pensée du neutre". Os dossiês temáticos eram comuns em L'arc: sobre Queneau (nº 28), sobre Bataille (32), Fellini (45), Duchamp (59), Cortázar (80), Henry Miller (97). Como Ciocchini foi parar em L'arc eu ainda não sei; sei apenas que Héctor e René Char eram amigos e que começaram uma intensa troca de cartas justamente nos inícios da década de 1960, um contato que só foi interrompido com a morte de Char, em 1988. Trocavam poemas, recortes de jornal, revistas, indicações bibliográficas, comentários sobre a amizade e a História.
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Aqui está um link para uma lista dos números publicados de L'arc (algumas com indicação do conteúdo e colaboradores).

Um homem e seus livros


Levar seus livros de uma vida para outra não era novidade para Zuckerman. Em 1949, ele saíra da casa dos pais e se mudara para Chicago levando na mala as obras anotadas de Thomas Wolfe e o Roget's Thesaurus. Quatro anos mais tarde, contando então vinte anos, deixara Chicago com as cinco caixas de papelão em que acondicionara os clássicos adquiridos a duras penas em sebos, e as levara para o sótão da casa de seus pais, onde ficaram durante os dois anos em que serviu o Exército. Em 1960, quando se separou de Betsy, foram necessárias trinta caixas para transportar os livros retirados de estantes que não lhe pertenciam mais; em 1965, ao se separar de Virginia, as caixas chegavam a quase sessenta; em 1969, mudou-se da Bank Street com oitenta e uma caixas de livros. Para abrigá-los, novas estantes de três metros e meio de altura haviam sido instaladas, de acordo com suas instruções, em três paredes do novo escritório; mas, embora já houvessem se passado dois meses e os livros geralmente fossem os primeiros de seus pertences a encontrar o devido lugar quando ele se mudava de um local para outro, dessa vez eles permaneciam nas caixas. Meio milhão de páginas abandonadas, intocadas. O único livro que parecia existir era o seu. E, sempre que ele tentava esquecê-lo, alguém se encarregava de refrescar sua memória.


Philip Roth. "Zuckerman libertado".
Zuckerman acorrentado.
Companhia das Letras, 2011, p. 168-169.