Meyer Schapiro e Martin Heidegger defendiam posições opostas com relação aos sapatos de Van Gogh. Uma das pinturas de sapatos desempenha um papel heurístico central no célebre ensaio de Heidegger de 1935 intitulado "A origem da obra de arte". Para Heidegger, os sapatos de Van Gogh são uma imagem da vida no campo, uma imagem da trajetória do homem na natureza, um equipamento impregnado de "ansiedade resignada com relação à certeza do pão". Schapiro acha que Heidegger escreveu tudo isso sem sequer olhar para os quadros de Van Gogh. Sobre qual versão dos sapatos Heideger está falando?, ele se pergunta. Se tivesse olhado, não seria difícil perceber que Van Gogh representava botas de duas maneiras inteiramente diferentes: quando pertenciam a camponeses, pintava botas claras, macias e em bom estado; quando pintava botas surradas, eram sempre as suas próprias botas. As botas surradas são parte de um auto-retrato, são dotadas de sentimentos do próprio pintor - sentimentos que incluem a percepção da vida como peregrinação, a inquietude, o desconforto ou o simples hábito de caminhar. Van Gogh está mais em suas botas do que em qualquer imagem de seu rosto.
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O confronto de perspectivas está dado desde o início, uma vez que o objeto em questão é justamente o pé, o limite do corpo, sua extremidade, seu clímax, seu ponto radical. Cruzando literatura e artes plásticas, Balzac também faz do pé o ponto máximo de sua reflexão e de sua problematização a respeito da representação. Em A obra-prima desconhecida, de 1837, tudo que resta de visível é o pé, um pé perfeito que desponta, que dissolve momentaneamente a cisão entre realidade e ficção. No outro extremo de um potencial arco interpretativo, está o ensaio de Bataille, Le gros orteil (escrito em 1929 para a revista Documents) - o dedão do pé mostra aquilo que no corpo (e na sociedade e no discurso) não pode ser mostrado, aquilo que é velado, escondido e que, em sua emergência, desvia o sentido e questiona a separação entre alto e baixo, real e ficção.