Na Serrote de número 7, há um texto de Lucian Freud, o pintor nascido na Alemanha (1922) e radicado na Inglaterra, neto de Sigmund Freud, um texto escrito em 1954, ano em que Freud representou a Inglaterra na Bienal de Veneza. E neste texto Freud escreve que um segredo é revelado a qualquer um que olhar o quadro com a mesma intensidade com que ele foi concebido. É basicamente o mote daquela linda cena inicial de O túnel, de Sabato, em que Juan Pablo Castel está expondo seu quadro "Maternidade", em 1946, e aparece María Iribarne Hunter, a mulher que ele matará e que olha seu quadro, fascinada. Castel afirma que ela foi a única a reparar num detalhe que, para ele, era fundamental: uma cena vista por uma janela, no alto do quadro, à esquerda. O detalhe macabro é que, para Sabato, só há uma alternativa depois que o segredo é revelado e passa a ser compartilhado entre quem concebe a obra e quem a olha, e essa alternativa é a morte.
sábado, 30 de abril de 2011
sexta-feira, 22 de abril de 2011
Causos arcanos
1) "Dize-me, pois, por que a serpente na Helvécia, na Argólida, na Suécia, comprende as palavras gregas Osy, Osya, Osy... Em que academias aprenderam, já que, ao escutarem a palavra, viram em seguida sua cauda, a fim de não escutá-la de novo? Não obstante sua natureza e seu espírito, basta escutarem a palavra para permanecerem imóveis e não envenenarem ninguém com sua ferida venenosa. [...] Se escreveres, em tempo favorável, somente essas palavras em pergaminho ou papel, e a impuseres à serpente, esta não ficará menos imóvel que se as tivesses articulado em voz alta?" - Paracelso, 1493-1541.
2) "O rato da Índia é pernicioso ao crocodilo, pois lhe foi dado como inimigo pela natureza. Quando o violento animal se deita ao sol, o rato lhe arma uma emboscada de astúcia mortal. Percebendo que o crocodilo, adormecido em suas delícias, dorme com a goela aberta, entra por ela e desliza pela ampla garganta até o seu ventre. Uma vez localizado no interior do crocodilo, o rato da Índia rói-lhe as entranhas e sai enfim pelo ventre do animal morto. Seus inimigos, no entanto, também o rondam, pois está em discórdia com a aranha e, combatendo frequentemente com o áspide, morre" - Hieronymus Cardanus, 1501-1576.
quarta-feira, 13 de abril de 2011
Festa
1) Numa passagem belíssima de Nos penhascos de mármore, livro de Ernst Jünger publicado em 1940, há uma festa popular num pequeno povoado de um país sem nome. Estamos nas primeiras trinta páginas do livro, e tudo ainda é tranquilo, pacífico e acolhedor. A figura de um administrador tirano - o monteiro-mor - vai aos poucos se manifestando, mas a chegada do caos ainda demora - mas quando chega é de forma repentina e violenta.
2) Mas, antes de tudo isso, há a festa: os participantes circulam pelas "moitas de arruda verde-prata", grandes borboletas circulam pelo céu, é primavera e os pássaros cantam felizes. Os homens vestem batas coloridas, "cujo tecido esfarrapado luzia como a plumagem dos pássaros". Todos vestiam máscaras rijas em forma de bico, exaltando a produtividade da terra com danças circulares e bebendo "até o desatino, pois esse é o costume na terra".
3) A festa de Jünger é análoga àquela que vemos em O enteado, de Saer, Europa e América entrelaçadas pelo substrato mais arcaico e pela celebração mais primordial: a alegria pela continuidade da vida, pelos ciclos da terra. Todos pulavam feito bufões, mexendo os braços "como se fossem asas" - nesses cultos agrários milenares, as fronteiras se abrem durante a festa: o animal está no homem, o morto está no vivo e tudo está fora dos eixos. "As mulheres da terra são belas e cheias de uma força generosa", escreve Jünger. O narrador persegue uma delas até a moita e, depois de uma sonora gargalhada, retira-lhe a máscara e o resto é história. É isso: três páginas dionisíacas e depois o retorno à vida comum e regrada (mas aquele frenesi permanece, como um suave baixo-relevo, até o fim do livro).
2) Mas, antes de tudo isso, há a festa: os participantes circulam pelas "moitas de arruda verde-prata", grandes borboletas circulam pelo céu, é primavera e os pássaros cantam felizes. Os homens vestem batas coloridas, "cujo tecido esfarrapado luzia como a plumagem dos pássaros". Todos vestiam máscaras rijas em forma de bico, exaltando a produtividade da terra com danças circulares e bebendo "até o desatino, pois esse é o costume na terra".
3) A festa de Jünger é análoga àquela que vemos em O enteado, de Saer, Europa e América entrelaçadas pelo substrato mais arcaico e pela celebração mais primordial: a alegria pela continuidade da vida, pelos ciclos da terra. Todos pulavam feito bufões, mexendo os braços "como se fossem asas" - nesses cultos agrários milenares, as fronteiras se abrem durante a festa: o animal está no homem, o morto está no vivo e tudo está fora dos eixos. "As mulheres da terra são belas e cheias de uma força generosa", escreve Jünger. O narrador persegue uma delas até a moita e, depois de uma sonora gargalhada, retira-lhe a máscara e o resto é história. É isso: três páginas dionisíacas e depois o retorno à vida comum e regrada (mas aquele frenesi permanece, como um suave baixo-relevo, até o fim do livro).
terça-feira, 12 de abril de 2011
Retrato do viciado
1) Se pensarmos na relação da escrita com as drogas, logo encontramos uma tradição variada de textos - e reservo especialmente os de Baudelaire, Benjamin e De Quincey. A droga está para a escrita como um propulsor, um estimulante: o haxixe para Baudelaire e Benjamin, a cocaína para Freud e Holmes (que não escrevia diretamente no papel, mas ditava - ditador de Watson). Billy, o narrador do Retrato de um viciado quando jovem (Companhia das Letras, 2011), mesmo sem o saber, continua uma linhagem da consciência-droga, posta como procedimento de memória e não de esquecimento - ele escreve: ao contrário da maioria das pessoas, o crack aguça minha memória, tornando tudo ainda pior. Baudelaire já dizia que o haxixe não altera o indivíduo, não faz ser outro, mas o amplia, o exagera e desenvolve em excesso - o indivíduo é impelido ao extremo.
2) Mas o retrato de Billy viciado leva a uma experiência do abandono e da improdutividade que faz notar toda a distância histórica até Benjamin, por exemplo. O haxixe em Benjamin é um modo de viver improdutivamente, baseado no desperdício e na invenção, como se tudo fosse exterior, como se a vida do sujeito estivesse alhures (um cálido abandono). Billy, pelo contrário, é um trapo de carne absolutamente auto-centrado, que vê agentes federais em todas as pessoas e carros de vigilância em cada esquina. Ele atualiza Beckett e Blanchot de uma forma muito desconfortável: ele deseja, com força total, o desaparecimento, o esgotamento, o esvaziamento, a morte. A intensidade posta no ato de fumar uma pedra de crack atrás da outra funciona quase como um arrebatamento romântico da mais alta voltagem.
3) Baudelaire fala de uma indolência, de "carícias leves", e olhos cheios de lágrimas; Billy treme e aborda desconhecidos na rua, oferecendo sexo e pedras de crack; o humor jubiloso trazido pelo haxixe de Baudelaire vem dos deuses, como uma oferenda àqueles que abrem as portas da percepção; Billy pesa quarenta quilos e anda de quatro procurando raspas de crack pelo chão; Baudelaire escuta música; Billy escuta sirenes e batidas violentas na porta.
3a) Estavam lhe preparando uma refeição quando um êxtase súbito o surpreendeu. Ele contempla o céu aberto: desce de lá um objeto indefinível, uma espécie de pano imenso, vindo pousar sobre a terra por quatro pontos. Dentro dele, todos os animais quadrúpedes, todos os que rastejam e todos os que voam. Uma voz se dirige a ele e diz: "Vamos, Pedro! Mata e come!" (Atos dos apóstolos, 10, 10-16).
2) Mas o retrato de Billy viciado leva a uma experiência do abandono e da improdutividade que faz notar toda a distância histórica até Benjamin, por exemplo. O haxixe em Benjamin é um modo de viver improdutivamente, baseado no desperdício e na invenção, como se tudo fosse exterior, como se a vida do sujeito estivesse alhures (um cálido abandono). Billy, pelo contrário, é um trapo de carne absolutamente auto-centrado, que vê agentes federais em todas as pessoas e carros de vigilância em cada esquina. Ele atualiza Beckett e Blanchot de uma forma muito desconfortável: ele deseja, com força total, o desaparecimento, o esgotamento, o esvaziamento, a morte. A intensidade posta no ato de fumar uma pedra de crack atrás da outra funciona quase como um arrebatamento romântico da mais alta voltagem.
3) Baudelaire fala de uma indolência, de "carícias leves", e olhos cheios de lágrimas; Billy treme e aborda desconhecidos na rua, oferecendo sexo e pedras de crack; o humor jubiloso trazido pelo haxixe de Baudelaire vem dos deuses, como uma oferenda àqueles que abrem as portas da percepção; Billy pesa quarenta quilos e anda de quatro procurando raspas de crack pelo chão; Baudelaire escuta música; Billy escuta sirenes e batidas violentas na porta.
3a) Estavam lhe preparando uma refeição quando um êxtase súbito o surpreendeu. Ele contempla o céu aberto: desce de lá um objeto indefinível, uma espécie de pano imenso, vindo pousar sobre a terra por quatro pontos. Dentro dele, todos os animais quadrúpedes, todos os que rastejam e todos os que voam. Uma voz se dirige a ele e diz: "Vamos, Pedro! Mata e come!" (Atos dos apóstolos, 10, 10-16).
quarta-feira, 6 de abril de 2011
O humano em busca do humano
1) É possível afirmar, sem medo de errar, que Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas deve muito ao livro que reúne as conversas entre Dominique de Roux e Witold Gombrowicz. O título pomposo - Lo humano en busca de lo humano - é uma invenção mexicana; o título original é simplesmente Entretiens avec Gombrowicz. Trata-se de uma espécie de testamento, de uma última retrospectiva antes da morte: o livro saiu em 1968, Gombro morreu no ano seguinte. Talvez Vila-Matas tenha retirado seu procedimento um pouco esquizofrênico de responder às perguntas justamente de Gombrowicz - ele questiona e repensa seus termos ao longo da própria resposta: Dominique pergunta: E como você foi parar na Argentina? E Witold responde: Ah, por casualidade. Casualidade? Enfim, não sei bem. Quando estava no café Zodiac, de Varsóvia, um amigo me disse: 'vou à América do Sul', etc, deslizando para coisas que simplesmente não foram perguntadas.2) Os dois lado a lado, Dominique e Witold. Estamos em 1968, o entrevistador com 33 anos, o entrevistado com 64. Dominique alto e magro, parecendo uma cruza de Adrien Brody com Mr. Bean, afogado em sua gravata, com seu terno trespassado. Witold olha para outro lado, está no meio de uma palavra, é como se um travessão o impedisse de contin-. Todo de preto, lembra uma versão insone do guitarrista David Gilmour.
3) O início de carreira de Gombrowicz parece um trecho de Detetives selvagens: publica um livro delirante chamado Memórias do período de amadurecimento, faz amigos nos cafés literários de Varsóvia, publica em jornalecos como As notícias literárias (que nome péssimo), do grupo de poetas Skamander, que também editam uma revista chamada Skamander, na qual Gombro publica a peça Yvonne. Gombro faz amizade com Bruno Schulz e eles circulam por Varsóvia, sempre tensos por conta de seus respectivos passados rurais (nasceram e cresceram em fazendas, etc). Schulz inclusive realizou vários retratos de Gombrowicz, que não sobreviveram à guerra. Isso tudo aconteceu por volta de 1935.