segunda-feira, 26 de julho de 2010
Escarafunchando Bolaño
sexta-feira, 23 de julho de 2010
A história da arte não existe
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Quando Georges Didi-Huberman reflete sobre a afirmação de Walter Benjamin de que a história da arte (como disciplina, como processo e como arqueologia do tempo das imagens) não existia – e que continuaria não existindo –, ele avisa que Benjamin não estava decretando o fim de algo: estava incitando uma troca de pele, uma troca da cera que cobria o rosto de um cadáver. Estava expressando o desejo de que a história da arte recomeçasse. Esse recomeço passaria por uma reformulação dos problemas e dos métodos. Para a historiografia clássica as obras eram apenas exemplos, modelos, representações mudas, postas para lá e para cá. Isso, diz Benjamin, é exigir muito pouco da história, tão arredia em seus movimentos de doação (dar sentido, dar espaço). A história da arte, quando estabelece um modelo causal para a explicação da emergência das obras (escolas, influências), termina por negar a temporalidade do objeto artístico.
Susan Sontag, no primeiro ensaio de seu livro Sobre a fotografia (“Na caverna de Platão”), nota que, em seu início, a fotografia não existia. Por conta do peso e do valor dos equipamentos, a fotografia estava restrita a um uso congelado, burocrático, estranho – não fazia parte, não tinha utilidade, estava aquém do amador e do profissional. Era preciso fazer com que a fotografia recomeçasse, e isso só foi possível a partir da portabilidade que a industrialização permitiu. Quando a técnica tornou-se corrente (visível, possível), a fotografia tornou-se arte, nasceu a consciência coletiva dessa possibilidade.
A origem, portanto, é sempre diferente do começo, da gênese. Benjamin fala da origem como torvelinho para marcar essa falta contra a cronologia: já que o objeto carrega consigo sua própria temporalidade (a partir de uma condensação de múltiplas temporalidades) ele solicita um re-arranjo toda vez que é visualizado em uma cadeia (uma organização que é sempre artificial, arbitrária, protética: escolas, influências).
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quarta-feira, 21 de julho de 2010
Museu imaginário
Quando lemos imagens – de qualquer tipo, pintadas, esculpidas, fotografadas, edificadas, encenadas – atribuímos a elas o caráter temporal da narrativa. Ampliamos o que é limitado por uma moldura para um antes e um depois e, por meio da arte de narrar histórias, conferimos à imagem estática uma vida infinita e inesgotável. André Malraux, que participou como soldado, romancista e ministro da vida cultural e política na França do século XX, argumentou com lucidez que, ao situarmos uma obra de arte entre as obras de arte criadas antes e depois dela, nós, os espectadores modernos, tornávamo-nos os primeiros a ouvir aquilo que ele chamou de canto da metamorfose – ou seja, o diálogo que uma imagem trava com outras imagens, dispersas no tempo e no espaço. No passado, diz Malraux, quem contemplava o portal esculpido de uma igreja gótica só poderia fazer comparações com outros portais esculpidos, dentro da mesma área cultural. Nós, ao contrário, temos à disposição incontáveis imagens de esculturas do mundo inteiro que falam para nós em uma língua comum, de feitios e formas, o que permite que nossa reação ao portal gótico seja retomada em mil outras imagens. A esse precioso patrimônio de imagens reproduzidas e incorporáveis, Malraux chamou museu imaginário. Na foto está Malraux analisando as provas para as imagens de seu livro com o mesmo nome.
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terça-feira, 20 de julho de 2010
Aprender a rezar na era da técnica
segunda-feira, 19 de julho de 2010
Apoteose de Degas
sexta-feira, 16 de julho de 2010
O tempo nas entrelinhas de Borges
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A conclusão de Roberto Bolaño quando fala sobre ofício literário é sempre a mesma: é preciso reler Borges mais uma vez. Como naquele conto de Cortázar que a morte do protagonista nos trilhos do trem só se revela no título (“Manuscrito encontrado em um bolso”), certos títulos de Borges também são reveladores – especificamente sobre a questão do tempo o mais interessante talvez seja “Nova refutação do tempo”, paradoxal e múltiplo pelo simples movimento de posicionar uma possibilidade ficcional do tempo (tornar algo novo ou velho, arcaico, antigo ou moderno: “nova”) diante de uma refutação desse mesmo tempo, “nova refutação”, a impossibilidade no interior de seu próprio argumento. Mas o caso principal de refutação do tempo nas entrelinhas de hoje está em “Emma Zunz”, conto no qual a protagonista vinga o pai (matando seu chefe) e arma uma ficção para a polícia. Emma se deita com um marinheiro desconhecido para dar realidade a um alegado estupro e, além de matar o patrão por conta do que ele teria feito a seu pai (um desfalque e um suicídio que ela interpreta como assassinato), o mata também por conta da violência sexual que cria contra si própria (cuja função é conferir verossimilhança a algo que ainda não fez). Ou seja, passado e futuro se atravessam para justificar e construir uma ação que ainda não ocorreu. Emma reposiciona a “violência” do marinheiro no passado, transformando em causa o que era um efeito criado por ela. A vingança de Emma desarticula os meios dos fins. Emma começa a atuar com o propósito de vingar seu pai, mas, para realizar a vingança, deve se humilhar na relação sexual com um homem qualquer, ato que duplica o motivo de sua vingança: o homem que vai matar morrerá pelo que supostamente fez a seu pai e, também, por aquilo que a obrigou a fazer para dissimular o motivo do crime. O motivo, que é seu corpo, é transformado em atenuante, afastando a verdade em direção à ficção. Um único ato (o assassinato) condensa duas vinganças cujos motivos estão separados no tempo: 1916, a suposta traição de Loewenthal, o chefe, a seu pai; 1922, a entrega sexual de Emma. Como num sonho (ou numa metáfora) Emma condensa as ações e os atores. De resto, a leitura de mundo de Emma Zunz é muito semelhante àquela da personagem de Joan Fontaine em Suspicion, o filme de Hitchcock.
quarta-feira, 14 de julho de 2010
As mãos de Michael Caine
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É importante salientar, já de início, essa tendência de filmes de vingança da qual Harry Brown faz parte – em um tríptico completado por filmes de dois grandes diretores: Valente, de Neil Jordan, e Gran Torino, de Clint Eastwood. Michael Caine é Harry Brown, um idoso que leva consigo, soterrada por algumas décadas, a experiência de ter sido fuzileiro naval. Apesar do olhar trêmulo e cansado que apresenta desde o início do filme, suas mãos estão sempre firmes. Nas duas vezes em que segura um copo de cerveja, quando troca as flores no túmulo da filha e da mulher, quando passa geléia em uma fatia de pão, quando acerta um tiro na cabeça de um traficante a trinta metros de distância. Depois de perder a mulher e o melhor amigo, Harry Brown decide se vingar dos bandidos, traficantes, viciados e demais imundícies parasitárias da vizinhança. Volta aos túmulos da família e, ao se despedir, beija a ponta dos dedos (médio e indicador, como na mímica de uma arma) e toca as duas lápides. O primeiro movimento da limpeza de Harry Brown é um misto de acaso com emergência abrupta do passado: o viciado, em busca de dinheiro, o ameaça com um canivete e, quando avança, Brown dobra seu braço e, num átimo, crava a faca no peito do bandido. As mãos de Michael Caine são a imagem de um problema possível dentro do sistema da representação, porque elas não tremem, mas poderiam tremer. Quando uma pessoa com síndrome de Down entra em cena, ou uma pessoa que não possui uma perna, há um ruído, uma irredutibilidade, algo irreversível invade a representação, algo que permanecerá para além da ficção e que a antecede. Se Michael Caine tivesse Parkinson, por exemplo, não poderia ser inteiramente Harry Brown, pois suas mãos tremeriam, e não poderiam não tremer. No caso de Clarinha, a filha adotiva com síndrome de Down de Regina Duarte, o recurso utilizado para que o ruído não fosse tão evidente foi a gelatina. A menina estava sempre comendo, para que dessa forma o deslocamento, a impureza e a dislexia na representação ficassem de fora o quanto antes. Todo pacto serve a uma ética, e as fissuras desse acordo ficam mais rarefeitas quanto mais evidente é a exposição desse conflito. Se a ficção não é tomada por documento histórico isso se deve mais à ética inerente à leitura histórica do que aos procedimentos artísticos (que são sempre articulados historicamente – como na célebre constatação de Walter Benjamin sobre Kafka: O castelo é inconcluso porque atingiu os limites históricos do gênero). A abertura da quarta parede em Brecht nada mais é que uma vertigem do realismo de Flaubert e Balzac, que são, por seus campos e domínios específicos, vertigens do romantismo. As mãos de Michael Caine colocam o mesmo problema que a mão ausente (e sempre ficcionalizada) de Mario Bellatín, com a diferença de encontrar uma solução completamente distinta.
segunda-feira, 12 de julho de 2010
Homero: homem comum
Uma das missões de Giambattista Vico – pensador da arte do século XVIII e herói intelectual de, entre outros, Edward Said – era descascar a história até encontrar aquele que chamava o “verdadeiro Homero”, uma figura que pudesse desmontar o sistema representativo-idealista-aristotélico. Para Vico, os sentidos ocultos da fabulação poética eram sempre enxertados a posteriori – sua hermenêutica, portanto, está sempre atenta às condições de produção do poema e a relação do contexto com a forma e o conteúdo. Homero, a partir disso, não é um inventor de fábulas – ele não conhecia nossa diferença entre ficção e história. Suas supostas fábulas, para ela, eram a história, que ele transmitira tal como recebera. Homero também não é inventor de belas metáforas e imagens brilhantes – simplesmente vivia num tempo em que o pensamento não se separava da imagem, nem o abstrato do concreto. Suas metáforas e imagens são a linguagem da rua de seu tempo (como O idioma dos argentinos e Evaristo Carriego, de Borges). Ele também não é o inventor de ritmos e metros – é apenas testemunha de um estado da linguagem em que a palavra era idêntica ao canto. Tudo que foi determinado ao poeta-inventor pela tradição aristotélica como privilégios transforma-se, com Vico, em propriedade da linguagem e elementos que testemunham um estado de in-fância da linguagem, do pensamento e da humanidade. Uma linguagem que é de cada um na medida em que não pertence a ninguém. O fato poético está ligado a essa identidade de contrário, a essa distância entre uma palavra e aquilo que ela diz. O movimento de Vico com Homero é o mesmo de Freud com Édipo (com a diferença que esse é arquiconhecido).
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quarta-feira, 7 de julho de 2010
Manter a perspectiva da eternidade
Meu primeiro contato com um livro de Amós Oz aconteceu no mesmo lugar que o primeiro contato com um livro de Coetzee: a biblioteca do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro. Gostei da capa de A pantera no porão e fui atraído pelo nome de Dostoiévski em O mestre de São Petersburgo. O fato é que, enquanto eu regozijava com minhas descobertas, o próprio Amós Oz estava em algum ponto do deserto de Negev olhando o sol sumir no horizonte. Oz nasceu em Jerusalém e viveu mais de trinta anos num kibutz no centro de Israel, onde se casou e criou duas filhas e um filho. Foi para a cidade de Arad, rigorosamente cravada no meio do deserto de Negev, em 1986 – até aquele momento não possuíra nada além de alguns livros e das roupas que cabiam na mala (pequena). Os primeiros ganhos com direitos autorais foram direto para a conta coletiva do kibutz. Seu escritório, onde trabalha e guarda os livros, fica no porão da casa. Oz visita o deserto em dois momentos do dia: no nascer e no pôr do sol. Caminha em linha reta por dez, quinze minutos e pronto, eis o deserto. Oz afirma que dessa forma, e aí vem a linda frase, consegue manter a perspectiva da eternidade, que é, em outras palavras, a perspectiva da literatura. Se Oz morasse em qualquer outro lugar, a frase seria como qualquer outra, como se eu subisse no telhado do meu prédio e concluísse que ali a perspectiva da eternidade aparecia. Mas naquele deserto, em cuja margem está a casa de Amós Oz, 3 mil anos atrás (e a história está no livro bíblico de Números) um rei cananeu resistiu à passagem de Moisés e de sua turma, vinham todos da fuga do Egito, e o Deus Todo-Poderoso havia ordenado: “não deixem pedra sobre pedra”, e a trupe de Moisés arrasou a cidade e os habitantes e, descartando as roupas e a tecnologia, nada parece ter mudado muito por lá, o que mantém consideravelmente a perspectiva da eternidade.
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segunda-feira, 5 de julho de 2010
Walter Benjamin pegando no batente
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No fim de julho de 1939, Walter Benjamin escreve a Gretel Adorno, mulher de Theodor Adorno, dando notícias sobre os ajustes finais em seu trabalho sobre Charles Baudelaire. Uma passagem específica da carta não é só irônica e humorística como também revela até que ponto o pensamento de Benjamin considerava a vida humana, e a vida social de forma específica, como um decalque de suas próprias construções metafísicas e teológicas. “Estou permitindo que meu cristão Baudelaire seja levado aos céus por nada menos que anjos judaicos. Providências já foram tomadas, contudo, para que no último terço da ascensão, imediatamente antes da entrada na glória, eles o deixem cair – como por acidente” - Benjamin, o teólogo judaico, levado adiante por companheiros cristãos (gentios, comunistas) durante a árdua jornada pelos Pirineus, em setembro do ano seguinte, no último terço da fuga encontra a fronteira fechada e comete suicídio, se deixa cair, como por acidente (e como acidente ficou registrado: o médico em Port Bou não assinala o suicídio para que Benjamin pudesse ser enterrado, como por acidente, no cemitério cristão da cidade fronteiriça).
Um ano antes do suicídio, um mês depois de escrever a carta para Gretel, em setembro de 1939, Benjamin é mandado para uma temporada de dois meses de trabalhos forçados: os homens entre 18 e 49 anos são convocados e reunidos em um estádio em Paris, passando em seguida por uma seleção e uma divisão e enviados aos camps des travailleurs volontaires, que de voluntários não tinha absolutamente nada. Foram dez dias no estádio, comendo apenas fatias de pão com uma tênue camada de patê de fígado rançoso. Os detentos tiveram que cavar latrinas e não havia cobertura suficiente para todos; eles tiveram autorização para levar apenas um cobertor de casa. Muitos ficaram ao relento, entre eles Walter Benjamin, que tinha 47 anos e problemas cardíacos. Mas o pior ainda estava por vir. Depois dos dez dias iniciais, o grupo de Benjamin (um total de 300 homens) foi designado para trabalhar na área do castelo abandonado de Vernuche, na região de Nevers. O primeiro trecho foi feito no trem; o último terço foi com marcha forçada, levando o coração de Benjamin ao limite, que, após a chegada, ficou prostrado durante dias. Benjamin foi cuidado e protegido por alguns jovens intelectuais que também estavam entre os 300 de Nevers, Max Aron e Hermann Kersten entre eles. Pelo meio de outubro Benjamin já estava recuperado. Jogava xadrez, organizava leituras e seminários, recebia cigarros e chocolates de suas amigas Sylvia Beach e Helen Hessel, tudo isso dentro do campo de detenção, que foi transformado por um curioso sentimento de companheirismo por parte dos 300 de Nevers. Uma das leituras feitas por Benjamin aos colegas de campo foi sobre o conceito de culpa. Estimulado pela vida comunitária, Benjamin propõe aos companheiros a criação de um periódico: o Bulletin de Vernuche: Journal des Travailleurs du 54e Régiment. A ideia animou a todos e Benjamin reuniu um time de escritores e editores de primeiríssimo padrão. Os esboços para a primeira edição, que estão hoje arquivados na Academia de Arte de Berlim, incluem estudos sociológicos acerca da vida no campo, críticas de eventos artísticos do campo (corais, teatro amador, etc) e um estudo sobre os hábitos de leitura dos detentos. O periódico, infelizmente, nunca chegou ao papel. Em 20 de novembro de 1939 a soltura de Benjamin já estava assinada e no dia 25 ele já estava em Paris. Foi a experiência de Benjamin mais próxima à vida em um kibutz, a despeito das tentativas de Gershom Scholem de o levar para a Palestina durante a ascensão de Hitler.
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sexta-feira, 2 de julho de 2010
A dialética do detetive
Em muitos momentos Ricardo Piglia aproxima a figura do crítico da figura do detetive. E muitas vezes a figura do escritor com a figura do criminoso. Está posto principalmente em Nome falso, a reportagem sobre Roberto Arlt. E todo trabalho latino-americano sobre a oscilação do detetive entre o crime e a lei está no “Tema do traidor e do herói” de Borges. A história literária como a cena de um crime, um crime que se espelha no tempo, deixando uma nova cifra a cada refração. A partir de uma concepção ampla do contexto, é possível dizer que o detetive está simultaneamente ao lado do crime e ao lado da lei. Atravessa os dois mundos sem gerar uma síntese. Alguns livros operam dessa forma, e digo livros, e não autores, porque essa mobilidade não é permanente: Austerlitz já não é mais híbrido, já não emperra a síntese, porque já é lido de forma distinta, já não é um elemento isolado, já está incorporado a outros elementos (Soldados de Salamina, O passageiro Walter Benjamin) que diluem sua heterogeneidade. Mas Sobre a história natural da destruição ainda está para ser lido, por exemplo. Não há síntese para o detetive também em Walter Benjamin, para o qual o detetive é o homem na multidão, que atravessa o alto e o baixo, o erudito e o popular, a drogadição e os altos salões. O detetive em Bolaño é ainda mais indecidível: é a dupla de imbecis conversando na viatura, no conto “Detectives”; são os detetives que vão ao deserto em busca de Cesárea Tinajero; são os detetives que buscam, ao longo de vinte anos, o paradeiro dos detetives que foram ao deserto; é o detetive de Estrela distante, um reles pistoleiro de aluguel – um estudo sobre a natureza do mal, como diz Bolaño, o mal que migra, que muda de lado, que dissemina, que transforma o torturado em assassino; o detetive do Noturno do Chile, que organiza reuniões literárias em casa para identificar os subversivos. É o contrário de um cenário onde tudo se equivale; nesse contexto de indecidibilidade cada cena cria e demanda dispositivos próprios, ficções.
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