segunda-feira, 20 de abril de 2009

Cães.


O que diz o cão?
Um cachorro sempre olha para o lugar certo.
Ele diz: "Tira essa coisa da cara"
Ele pensa que é curioso uma fotografia e uma pintura ocuparem o mesmo lugar.
"Não chega perto do meu pai"
A coleira e a cordinha são antigas, olha ali.
De couro.
O dono dá as costas para a foto e o cão faz pose.
Como se dividisse um segredo com o fotógrafo.
"Esse ângulo me favorece"

terça-feira, 14 de abril de 2009

Um rancho de palha e barro



"Não existe nada simultaneamente mais real

e mais ilusório do que o ato de ler"

Ricardo Piglia





Era um velho encarquilhado, de muitas posses, que decidira, após um sonho perturbador, livrar-se dos livros. Começou pela própria biblioteca: lotou o carro com os volumes de seu apartamento na cidade e seguiu para o campo, onde estava a casa que abrigava sua biblioteca. No amanhecer do terceiro dia, com a ajuda de dois empregados, ergueu uma fogueira e lá queimou papel até a madrugada.

Entretanto, os sonhos voltaram ainda mais opressivos. Por vezes sonhava com memórias reais, de sua juventude, ainda estudante, formando sua biblioteca com os parcos recursos de que dispunha. Na última semana de cada mês, com sua mochila e suas reservas financeiras mensais, percorria a cidade, andando atrás de livros, nas lojas de usados. No sonho tratava-se de um dia interminável, em que ele refazia o percurso centenas de vezes, e sempre que passava pelos mesmos lugares, novos livros surgiam, e sua mochila abarrotava-se e tornava-se cada vez maior, ao passo que ele diminuía e era, por fim, esmagado.

Tratou de comprar bibliotecas de velhas viúvas e jovens herdeiros, em tudo ateando fogo. Em seu esforço biblioclasta fez com que o mercado de raridades se valorizasse e desse modo gastou grande parte de sua fortuna comprando lotes e estoques inteiros, em tudo ateando fogo. Os negociantes tomavam-no como um colecionador excêntrico, de nada sabiam.

Perdia a razão progressivamente, para a história de sua lucidez restavam poucas linhas vazias. Sua consciência ardia como a fogueira no pátio, inexorável, e o conteúdo dos sonhos crescia em malícia e perdição.

Alguns meses depois do primeiro sonho, diante da fogueira, abriu um volume prestes a ser queimado. Chamou-lhe a atenção a capa verde e as letras douradas no frontispício. Abriu numa página qualquer, ao acaso, e leu o breve relato de uma família queimada viva dentro de uma cabana de palha, de onde saíram os gritos que acordaram o narrador daquela história, um velho professor que procurara conforto e descanso para si e seus livros naquela aldeia afastada. No fim do relato, recorda-se do dia que ensinara as primeiras palavras em latim ao filho de seus vizinhos. Um aluno promissor, transformado em cinzas junto com seus pais e sua irmã recém-nascida.

Transtornado pela potencial queima daquela família, já mortalmente envolta pelas chamas uma vez, o velho mandou apagarem a fogueira e recolheu-se em seu quarto com o resto dos livros, de onde, segundo consta, nunca mais saiu.